Desnorteio, de Paula Fábrio
Por Pedro Fernandes
Se este
texto merecesse um título deveria se chamar, talvez, “Paula Fábrio, um narrador
em trânsito”. Não recebe porque não esta uma reflexão sobre a escritora, nem
concebo uma prática de a escritora se imiscuir entre aquilo que narra, muito
embora, admita certa inclinação
memorialística logo na primeira página de Desnorteio, seu primeiro romance. Mas, é a ideia de trânsito tornada
experiência e por isso tomo nota depois da leitura e cismo que este deveria ser
um texto com este título.
Narrar tem se
tornado sempre mais experimentar-se (digo isso enquanto penso na experiência
mais radical com que tive contato nas minhas leituras recentes – o
português António Lobo Antunes). Agora, quem sou para dizer quando os
escritores notaram sobre a possibilidade da manipulação corriqueira tal como
fazem contemporaneamente com a narrativa. Alguma parte da crítica atesta que as
coisas começaram com as vanguardas. Desde os surrealistas, dizem estes, nunca
mais narrou-se como antes. Depois vieram as descobertas da psicanálise e os
escritores se sentiram cada vez mais inclinados a fugir do mundo externo para
averiguar os labirintos do eu.
Eu estou
entre os que preferem concordar que, desde sempre, os escritores estiveram num
grande campo de experimentação estética. Pode ser que Homero nem tenha
existido, como brigam uns, mas a Odisseia
é já uma grande experiência narrativa; se ausente de quaisquer psicologismos ou
piruetas do vanguardismo, mas é a epopeia um texto de construção extremamente elaborada,
principalmente quando percebemos os volteios para sustentar o desfecho do enredo e a execução de certa atividade manipuladora do tempo da narração.
Tudo isso
para dizer que Paula Fábrio, longe de se filiar a qualquer vanguarda ou grupo
de natureza experimental, redige uma obra com características bem singulares na
recente produção literária brasileira, mas que essas características encontram lugar na extensa atividade de reinvenção da narrativa. Digo isso, por constatar também que sua
obra dialoga com certas práticas consideradas comuns por aqui: penso,
sobretudo, em nomes como Hilda Hilst e Lygia Fagundes Telles, ou mesmo Clarice
Lispector. Concebo que, por mais inventor
que seja o escritor ele não pode recusar as forças que o antecedem e tem por
obrigação ser um leitor acurado e crítico delas. Isso é condição necessária não
apenas para solidificação de sua obra, mas renovação da tradição e
fortalecimento da cena literária nacional.
Há em Desnorteio ainda muito do que já experimentou
a literatura estrangeira; fruto evidentemente de uma abertura maior das fronteiras
entre as expressões artísticas. Também não é novidade; há Proust e Joyce em
Clarice Lispector, por exemplo. Alimentar-se das forças externas ao solo
nacional, não é decisão fortuita num contexto em que a literatura é cada vez
mais universal, isto é, integra-se às discussões, temáticas e aos exercícios
estéticos mais amplos. Assim, pela dicção teatral, lembrada pela voz principal
do romance, aquela que seria a de quem contaria a história, a obra de Paula
Fábrio enseja proximidades com a literatura de Samuel Beckett e o teatro do absurdo.
É um texto que beberica nas diversas fontes da literatura; há iluminações da
tradição desde a notinha colocada na abertura do livro ao modo do que faziam os
romances clássicos como os de José Alencar. Acontece que no tempo de Alencar as
tais notas tinham por interesse avivar a veracidade do narrado ou colocar o
escritor distanciado das penas de expor uma determinada realidade
não-autorizada. Nesse sentido, Paula subverte pelos dois lados a intenção do
pré-texto, substituindo a necessária verdade do narrado pela ilusão do imaginado,
e colocando-se responsável pelo exercício da criação de marca identificada como
impressionista. Narrar é uma experiência de impressão sobre a realidade.
E, por falar
em subversão, tudo é subvertido nessa obra; averiguamos a estrutura mais
próxima de um feixe de contos com mesmo eixo narrativo, mas assumido por pontos
de vista diversos, afinal, grande parte dos da família Oliveira, o núcleo de
personagens retratado pelo romance tem poder de voz. Também averiguamos o traço
teatral. Desnorteio é um texto
eminentemente de indicações; por vezes, esquecemos que estamos diante de uma
narração e estamos ante alguém a determinar, distanciadamente, sobre as cenas.
Não há ações no sentido tradicional da mobilidade da personagem; Desnorteio é um conjunto de cenas.
Da mesma
maneira que há esse distanciamento que imobiliza os sujeitos da narrativa, é a
aproximação extrema: quando essas cenas passam a ser contadas pela voz em primeira
pessoa. Paula Fábrio constrói uma história sem se ater a miudezas; é um texto limpo,
integralmente alinhavado com sentenças de cunho conclusivo como se buscasse
sempre alcançar uma síntese sobre o que narra.
O flerte da
autora de Desnorteio é com a saga de
família, mas, é tomada pela impossibilidade de realização de um forma de fôlego
como se aventurou um Erico Verissimo, por exemplo. Claro, as condições
contextuais são outras. Paula, ao invés de se interessar pela típica família
rica ou a que alcança certa posição social pelo esforço do trabalho, para citar
duas condições específicas da saga familiar, prefere contar a história dos que
nem sequer sabem que existe história: a família Oliveira, de três irmãos
loucos, cada um à sua maneira, e as irmãs que tentam compreender a sina da
família ou acobertá-la por incompreensão até mesmo de si nessa amplidão de
mundos em desfazimento. A família esfacelada é assim um dos temas do romance:
nasce desde a total falta de amor do patriarca pelos da casa, ou essa é uma
casa sem pai, só lembrado pelos filhos por ter aparecido duas vezes – quando
vinha espancá-los e depois levado preso para o Carandiru.
Como a saga
de uma família, o romance cobre amplo tempo da história do Brasil (passado que
muitas vezes se manifesta indiretamente entre os interstícios de organização
dessas peças soltas ou a partir das
reflexões contempladas por voz que seria a central do romance). Está aí os
desmandos da escravidão, raiz dos Oliveiras (ou de certo modo de todas as famílias brasileiras),
o trabalho a qualquer custo nas fazendas de algodão ou para os de grandes posses
na cidade, a bastardia, a perseguição imputada pelo Estado à diversidade de
credos, os grandes fluxos de êxodo dos das cidades interioranas para os grandes
centros urbanos e a constituição da marginalidade, a Ditadura Militar e o engodo
do milagre econômico, a era de ouro do rádio, ou mais recentemente o desemprego
e as exigências milimétricas do mercado de trabalho, tudo, aí se ajusta e
compõe um mosaico que é a sobreposição de instantes da formação do país. Não
seria exagero considerar Desnorteio
uma metonímia sobre a construção do Brasil, presa na circularidade dos temas a
que se filiam as histórias do romance.
Os tais
temas são a loucura, a morte e o amor (especificados desde os títulos que abrem
cada capítulo). Todas as vidas estão atravessadas, umas mais que outras, por
essas três condições. O tempo que quase não sofre variação no livro de Paula
Fábrio, porque este, pelo ponto de vista (o distanciamento ou aproximação) se
suspende numa presença quase-fixa de um eterno presente, é o solapado pela
tristeza, pela perdição, pela ignorância e pelos sonhos deixados pelo meio do
caminho. Mas, há laivos de uma beleza que alcança quase a vez de uma recordação
nostálgica, ou uma fotografia sépia, como a viagem dos parentes em melhores condições aos que ficaram no
interior para levar ajuda. Falo, evidentemente, do capítulo “O sobrinho e a viagem de fusquinha”, uma das passagens mais doces do livro, doces e carregadas de uma melancolia assim tão próxima da vida de tantos de nós.
Ao lembrar dos
títulos de cada capítulo, sei que são como bússolas norteadoras para o narrado e
que participam mesmo na compreensão de quem é quem nos enredos possíveis, mas
me parece que se não existissem o romance cumpriria plenamente o efeito que
anuncia desde o título: desnorteio. E esta é uma única ressalva que, nem é de
leitor crítico, mas de quem se atreve a dar pitaco no terreno alheio; terreno,
aliás muito bem desenhado. Sim, porque além de uma panorâmica sobre a história do Brasil, Desnorteio também insere uma gama de questões de cunho mais individual: as relações familiares, a ausência dos afetos; o desfazimento do amor, o labor feminino pela liberdade do corpo, entre outras questões.
O romance é uma galeria de retratos
construída não por uma única imagem reveladora, mas por uma variedade de imagens,
algumas colocadas mesmo diante de um espelho. Nada é revelado de um todo num
texto que se preza pela fragmentação. Assim como o que seria fio central de
narração vez ou outra baldeia a compreensão linear que ousamos formar a partir
desses fragmentos e de sua unidade temática, há sempre uma necessidade de o leitor se colocar
atento à mobilidade dos fotogramas.
É também
cada vez mais sintomático que quem diz a que gênero pertence uma obra é seu
autor; e novamente digo que talvez tenha sido sempre assim. Nós, os da crítica
é que temos insistido obsessivamente em seguir aquilo que reza a sabedoria
quase milenar da teoria literária para encaixar obras em gêneros específicos.
Se nos guiamos pela tradição filiaremos Desnorteio
não ao romance, nem à novela, quando muito numa antologia de contos que
versam sobre um mesmo eixo temático e ora recorre com frequência à um mesmo
núcleo de personagens, como disse. Por isso, na constante reinvenção da forma, Paula Fábrio
insere sua pequena colaboração que é (e isso deve ter ficado perceptível ao
longo dessas notas) integrar duas linhas distintas, a que prima pelo realismo e
tem tons sociais mais aguçados e a que zela pelo subjetivismo e é, portanto,
eivada de uma natureza mais psicológica.
Também não
há em Desnorteio a ambição em ser
um romance, pelo menos na concepção que se tem de aspiração do grande romance; essa expectativa parece ser recorrente
nos escritores contemporâneos – com raras exceções ou com uma revisão daquilo
que se compreendeu por longo tempo como grande
romance. O despojamento assumido pela forma, a incessante necessidade de encontrar
uma síntese que possa dizer tudo numa frase, numa palavra (tal como se expressa
no título), faz desse livro uma obra corajosa, cujo campo de interesse é, antes
de tudo, pela natureza humana cada vez mais solapada pela loucura de um tempo
que não deixa de ousar em atentar contra a nossa própria existência.
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