As devoradoras palavras de Roberto Menezes
Por Alfredo Monte
«.… é pegar
pesado? Acho que não, sem sombra de dúvida, não...»
1
Fiquei tentado a enganar meu leitor,
enfatizando o lado “história de vingança”, com toques macabros à Stephen King,
de Palavras que devoram lágrimas, romance que faz parte da coleção digital
Latitudes (e-galaxia).
Não seria uma mentira nem algo
descabido. Roberto Menezes não tem medo de incorporar o universo de
King ou outras referências da indústria cultural («ops, fiz de novo, como diria a britney»); no
entanto, estaremos mais próximos da radicalidade e do efeito avassalador do
texto do autor pernambucano (mas de vivência predominantemente paraibana, salvo
engano) se o pensarmos na linhagem de um Paixão segundo G. H. (1964), de
Clarice Lispector, ou de alguns filmes bergmanianos (como Através de um espelho, 1961), no sentido de que derruba
as escoras, que escava as fundações, que põe a nu os tapumes que cercam nossa
condição humana.
A própria narradora diz que é «paleontóloga
de nascença», e esse exercício de escavação, de desnudamento, de despojar-se de
todos disfarces e libertar-se de todas as amarras, no verdadeiro palimpsesto
que é o relato, ironicamente é realizado através da digitação obsessiva; ou
seja, no uso mesmo da tecnologia mais presente, vamos ao recôndito do ser-aí,
ao “nada e nossa condição” (G.Rosa).
Assim como acontecia com G.H., o que nos
incita a penetrar nessa região sempre inóspita (essa dos confins da nossa
condição) é o incrível apelo da “voz” inconfundível do personagem, que vemos se
configurar na página em branco, e que é a isca de Menezes para nos arremessar
nos estratos da sua paleontologia narrativa trepidante e frenética1.
Portanto, vamos ouvir um pouco da “voz” de Palavras que devoram lágrimas:
«…por essas
horas eu já deveria ter falado de todas as camadas de tintas da parede do
quarto que fui retirando, uma a uma, com lixas e raivas diversas. Por essas
horas eu já deveria ter dito o dobro do que eu disse com essas palavras todas. Gastei
meu verbo fazendo muitas interrupções. Necessárias e pertinentes. No mais,
grande parte do que fiz antes de chegar aqui, hoje, no seu gabinete, foi de
caso pensado, premeditado, como você bem gostaria de dizer agora. Foi tudo
premeditado: desde as cordas de náilon que mandei trazer de campina até o
notebook que comprei semana passada em dez mil parcelas! Nem sei quando vou
pagar. Puxei pelo torrent a mais nova versão do Word, dizem que não dá tanto
bug quanto o outro. E esse tem, acho eu, a opção de não salvar automático. Estas
palavras todas só serão salvas se e quando eu quiser. Não posso ter pleno
controle sobre elas, mas são todas minhas e até posso contar quantas escrevi
até aqui no exato momento em que estou escrevendo. Agora que já passei de dez
mil, olha aqui embaixo—dez mil e o escambau—já escrevi essas tantas páginas e
nem parece tanto assim. Posso também agora passar pro próximo ato. Da maneira
que eu planejei, a primeira parte englobaria toda a história das camadas de
cores do nosso quarto. Olha, de agora em diante quando eu falar nosso é sobre
as que pertencem a mim e a você, ok? O nosso nosso banal que todo casalzinho
tem…»
2
Antes de levar a cabo seu plano de vingança
contra o ex-marido, um vereador, ela leva o leitor a uma «expedição aos motivos
reais», por meio de «joguinhos de altíssimo baixo calão»2. E
vai lixando aos poucos as camadas de tinta do quarto de casal no apartamento
que sobrou da relação (e cuja posse será transferida mais tarde a um mendigo).
O
achado que envolve essas sete camadas de tinta («… lembre da parede e das sete
camadas de tinta. Só arranquei a primeira, há seis níveis de solo neste
aconcágua para escavar…»), uma para cada ano, não é tanto o recurso
“paleontológico”, o efeito-palimpsesto (ou, para usar um termo do próprio
relato, «inomogeneidade»), que ele permite como estruturador do discurso da
narradora, mas as ressonâncias poéticas e imagéticas que ele proporciona ao
talento transbordante de Menezes (mantido sob controle por conta das situações
narrativas, bem entendido).
A cor de cada camada remete a toda uma gama
de associações. Por exemplo, a primeira camada é bege, meio “leite condensado”
meio “porra” (não esqueçamos, é a cor do estágio do final do casamento); tem
uma camada de um genial “verde-anágua”; tem a camada de um “vermelho
inespecificado”, que acaba sendo uma “cor natimorta”; tem ainda a camada
amarelinha, “com cor de casca de ovinho de patinha”; lixando mais fundo, uma
camada salmão: «… nosso terceiro ano, como eu vou esquecer? Como você vai
esquecer? O ano que finalmente eu dei o meu cuzinho quadrado pra você! ».
E chega-se à camada “azul inferno”,
momento de grande virtuosismo do romance, em que percebemos que a corda está
esticadíssima, num ponto onde pode arrebentar, ou permitir que o leitor passe
para estratos ainda mais perturbadores (por puro gosto de citar o texto, mais
duas passagens: «… por mim, eu ficaria neste azul inferno, mas prefiro,
assim, depois de muitas páginas, lixar de vez, outra vez…”; “… tenho dom
de lixar paredes e de me lixar…»; ah, essa voz hipnotizante e perigosa dos
personagens-narradores carismáticos!): chegamos então à última camada, “branco
gelo mais para a neve”, e concomitantemente «já entramos no último ato do
meu desabafo…».
A essa altura do texto, não há um
elemento que não permita associações inauditas, e por essa razão prefiro
terminar com mais uma citação do próprio livro (e acho que o ror de citações
demonstra bem o quilate dessas camadas e camadas de texto lixado), que nos
remete novamente ao seu toque stephenkinguiano:
«… remorso é
uma palavra úmida, não combino com palavras úmidas, combino com lixa, pó,
galho, ponta de faca, navalha, estilete…»
Notas:
1 Desde
que li pela primeira vez, aos 18 anos, O apanhador no campo de centeio, de J.
D. Salinger, permaneceu comigo a convicção de que se a voz do personagem me
hipnotizar, serei levado para qualquer lugar que o autor pretenda. Depois
recolherei os cacos, contabilizarei os danos, entesourarei os ganhos.
2 Não
falta aqui sequer o discurso ressentido nu e cru, no sentido do alpinismo
social: «não sou como você, que deve culpar sua mãe, que lhe ensinou a
escravizar cada nervo do seu rosto e só sobrou a sobrancelha esquerda…»; a
mesma mãe que «queria domar a menina candanga sem classe nem caligrafia
aceitável pra cortar um lombo parisiense com a faca de sete gerações»
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