A tarde da sua ausência, de Carlos Heitor Cony
Por Rafael Kafka
Carlos Heitor Cony. Foto: Leo Ramos |
Conheci a obra de Carlos Heitor
Cony muito recentemente, menos de um mês. Neste período, já li dois livros (o
romance Pessach: uma passagem e a novela A tarde da sua ausência) e já tenho
mais um (o quase romance Quase memória) na fila de leitura. Até o presente
momento, tenho gostado demais da leitura de Cony por conta da simplicidade
aparente que reina em seus textos sempre à serviço de um
subentendido mais aprofundado, cheio de nuances e vida.
A sua narrativa se delineia por
frases curtas, certeiras, uma pontuação que aumenta a sensação de laconismo de
uma narrativa que se propõe a dizer muito com pouco e cujo maior foco é o tempo
e a memória. Em Pessach, o protagonista Paulo encara um panorama de quarenta
anos de vida por um novo prisma, a possibilidade de entrar ou não em uma luta
armada pela derrubada do regime ditatorial imposto pelos militares, com o nome
de revolução, no ano de 1964, e que já durava bem uns vinte anos na época em
que se passa o romance.
O tempo presente é todo visto a
partir do prisma de um passado que se contrapõe e mostra o personagem sem um
rumo certo em sua vida. Aquilo que até então lhe parecia liberdade, passou a
lhe parecer conformismo. Uma boa forma de se entender bem esse sentimento tipicamente
pós-moderno de nos questionarmos sobre se somos livres ou conformados em nossa
segurança é a leitura do artigo que abre a coletânea de textos Vida líquida de
Zygmunt Bauman. Nele, o teórico mostra como em uma época em que os conflitos
políticos e bélicos, ao lado da tecnologia da informação, modificam nossos
nortes o tempo todo, vivemos encurralados entre a necessidade de ter segurança
e a de ter liberdade, sendo bastante improvável, ainda mais para quem vive fora
da alta cúpula econômica da sociedade ocidental, manter as duas opções no mesmo
nível de intensidade em nossas vidas.
Paulo, por ser um escritor da
classe burguesa, podia fazer de sua segurança econômica, que não o fazia sentir
na pele a dura realidade do regime, uma espécie de liberdade muito similar à de
Mathieu de Idade da razão de Sartre. Bem como o herói sartreano, mas por uma
forma mais radical e ligada à privação de liberdade, Paulo se depara com o fato
de que nunca fora livre realmente. A memória aqui, o passado, surge como um contraponto
a um presente que passa a sofrer profundas mudanças estruturais em sua
existência: a escrita não engajada perde sentido e o que era motivo de auto
louvação até alguns dias antes, agora era apenas um motivo medíocre em uma vida
sem sentido.
Paulo parte do alheamento de si
mesmo que se refletia em um alheamento para com o mundo para um engajamento com
seu próprio ser e a coletividade humana da qual fazia parte. O mesmo tema do
alheamento, mas sem o mesmo grau de engajamento de Pessach, é o que vemos em A tarde da sua ausência, uma novela que desde o título já promete uma poesia
agridoce em suas páginas. Promessa que é cumprida a cada vez que nos vemos diante de um tempo fugidio que insiste em ir e voltar diante de nós.
*
Assim como Cem anos de solidão de
Gabriel García Márquez e Leite derramado de Chico Buarque, em A tarde da sua ausência o principal tema é a ruína de uma família. No caso, a dos Machado
Alves. O patriarca da família era português e se firmou na cidade do Rio de
Janeiro, onde após um começo difícil conseguiu criar uma grande fortuna por
conta dos negócios imobiliários. O tal patriarca mantém um ritual duplo para a
criação dos filhos, algo bastante patriarcal, por sinal: ele cuida ternamente
de todos os caprichos de suas filhas, porém com os homens é bastante severo e
os coloca na rua quando os mesmos completam quinze anos de idade.
Um de seus filhos é Álvaro que
assim como pai se torna extremamente rico após um começo difícil, mas usando
meios não tão honestos quanto os do patriarca. Nem a mesma rigidez para com os
filhos: todos, homens e mulheres, acabam ganhando bastantes regalias do velho
Álvaro, que tão apaixonado pelo poder concedido pelo dinheiro se decide a
cuidar, inclusive, de Henrique, esposo de sua filha Dalva, o qual não possui
nenhuma fonte digna de renda, exceto alguns bicos com editais forenses.
No meio da multidão de filhos
que Álvaro, assim como seu pai, produz, há Vera, uma personagem de olhos verdes
e aquosos que ficará marcada ao longo do enredo como alguém ausente, mesmo que
com sua presença física marcante. Vera é descrita como uma moça precoce, de
curvas sinuosas e um jeito provocante, ainda mais provocante por conta de seu
estranho comportamento sempre distante de tudo e de todos. O gesto que mais
caracteriza Vera é o prazer solitário que ela concede a si mesma na rede da
varanda de sua casa todas as tardes, ritual que é interrompido quando um belo
dia ela ali encontra Henrique.
Após um pequeno conflito
silencioso no qual ela não consegue o objetivo de removê-lo da rede, ela se
deita com ele e diante do contato de um corpo mais velho e viril, mesmo sem
nenhum tipo de gesto lascivo, ela sente um novo tipo de prazer, mais concreto,
marcado pelo líquido que vem de suas partes íntimas inunda sua coxa grossa.
O que vemos a partir daí é o
absurdo presente em cada gesto do ser humano. Esperamos que Henrique e Vera
passem a ter algum tipo de envolvimento diferente, ou mesmo que Vera tenha isso
com seu professor de História, mas ela acaba viajando para o México após, repentinamente,
decidir-se a casar e a abandonar a escola, a casa e o país onde crescera.
Henrique, por sua vez, manter-se-á conformado a sua existência monótona ao lado
de Dalva e dela só sairá para manter-se no conforto econômico quando a ruína
econômica, e existencial, da família começa a se tornar evidente.
No decorrer da história, veremos
Vera, já com uns dezesseis anos, voltar para o Brasil e depois se envolver com
professor de História de sua juventude. Nós a vemos fugir desse mesmo
envolvimento para voltar à casa do pai, que a cada dia se afunda mais em uma
ruína física que culminará na venda do antigo sobrado para se transformar em um
prédio de apartamentos. E vemos uma série de pequenos outros fatos menores
narrados com uma precisão cirúrgica de um narrador que contempla tudo com um ar
impassivo ao mesmo tempo em que se interessa demonstrar, mesmo que em poucas
páginas, todos os desdobramentos tidos pelo tempo dentro da narrativa da
família Machado Alves.
*
A novela é narrada com um
realismo bastante sucinto, ao mesmo tempo em que temos diante de nós idas e
vindas ao tempo passado. O começo do enredo se dá quando Henrique recebe uma
mensagem de e-mail com a foto da antiga família de Álvaro Machado Alves onde se
vê todos os seus filhos e ele, Henrique, mas não se observa Vera. Henrique
chega a se questionar se fora ela quem tirara a foto, porém isso em si não
merece uma resposta simplória em sua precisão. Há ali, naquela foto, a rede de
Vera, indicando como um signo ambíguo essa presença ausente, ou ausência
presente, que caracterizará essa enigmática e transparente personagem.
Vera é a síntese de tempo na
vida do ser-para-si Henrique, que com seu olhar indiferente rememora toda a
história de glória e ruína dos Machado Alves. O curioso é que não há em momento
algum do livro uma declaração apaixonada de Henrique, nem que seja para si
mesmo, em relação a Vera. O texto tem justamente o caráter fugaz das coisas que
são ditas pelo não dizer e nos faz pensar nas imensas variáveis que afetam
nossa existência sem que nos questionemos como seria tudo se tudo fosse
diferente em certos momentos e pontos de nossa teia existencial e temporal.
O que fica da leitura de A tarde
da sua ausência é essa beleza agridoce que tão bem caracteriza a vida: somos o
tempo todo perturbados pela descompressão de ser sofrida em nosso âmago por
sermos o que somos: seres incompletos e invadidos a todo instante por sua
incompletude. A memória, mais do que um lembrete do que foi vivido e do que não
foi vivido, é o estigma que carregamos em nossa carne da plenitude de ser que
nunca obteremos, mas passaremos a vida toda a procurar.
Quanto ao sentimento de
indiferença presente tanto nos personagens quanto no narrador criado por Cony,
vemos nele a marca de nossa pós-modernidade, a qual com tantas exigências não
nos deixa viver plenamente nossa existência. É na memória que tendemos a
encontrar essa plenitude que as diferentes esferas de nossa realidade concreta
não nos deixam ter. A memória pós moderna, por isso, é muito mais do que
rememorar: ela é um lamento por aquilo que somos sem podermos ser.
Comentários