A luz e a escuridão do Cristo de Kazantzákis
Por Alfredo Monte
Nikos Kazantzákis. A Última Tentação está entre um dos mais importantes (se não o mais) títulos que reclamam um Jesus mais próximo do homem. |
…e olha que
se encontrássemos o Diabo e ele deixasse que o abríssemos, talvez tivéssemos a
surpresa de ver saltar Deus lá de dentro (…) imagine-se o escândalo se
Pastor lembrava de abrir Deus para ver se o Diabo lá estava dentro...
José Saramago, O Evangelho segundo Jesus
Cristo
"O velho
rabino O conhecia, conhecia bem o Deus de Israel. Ele era impiedoso, tinha Suas
próprias leis, Seu próprio decálogo, é verdade que Ele dava Sua palavra e a
mantinha, mas não tinha pressa. Tinha Sua própria medida e mensurava o tempo,
gerações e gerações sucediam-se e Sua palavra permanecia ociosa no ar, sem
descer à terra. E quando finalmente descia, pobre, três vezes pobre do homem
que Ele escolhia para lhe confiar Sua palavra! Quantas vezes, de uma
extremidade a outra da Sagrada Escritura, os escolhidos de Deus foram mortos e
Ele não fez nem um gesto para salvá-los?! Por quê? Por quê? Eles não fizeram a
Sua vontade? Ou seria vontade Dele que todos os escolhidos fossem mortos? O
rabino interrogava-se, mas não ousava levar seu pensamento mais longe. Deus é
um abismo, refletia ele, um abismo, melhor não se aproximar!"
Nikos
Kazantzákis, A Última TentaçãoA cena de uma celeuma. Contra os crimes de homofobia travesti reencena crucificação durante a Parada Gay 2015. |
Há poucas
semanas, a imagem de uma transexual “crucificada” como destaque da Parada Gay
em São Paulo foi mais uma onda dentro do tsunami retrógrado que estamos
testemunhando na esteira das eleições passadas.
Por isso, é
bem oportuno o lançamento, pela Grua Livros, de uma nova tradução (dessa vez, diretamente
do grego) de A Última Tentação, de Nikos Kazantzákis (1883-1957)1. Desde
a sua publicação original, dois anos antes da morte do grande escritor grego2,
essa transposição literária da vida de Cristo (no meu entender, a mais poderosa
já feita — aliás, a única outra a chegar perto do seu impacto é a de José
Saramago, em 1991) vem sendo execrada, combatida, banida, colocada no Index de
livros condenados pelo Vaticano, fenômeno que se repetiu quando, nos anos 1980,
Martin Scorsese ousou realizar uma versão cinematográfica. O que me leva a
concluir que certas pessoas “de bem” não se revoltam contra a crucificação,
real ou metafórica, de outros indivíduos, todavia não conseguem engolir que se
faça do sofrimento de Cristo uma referência a preconceitos e atrasos os quais
vão de encontro aos mais básicos ensinamentos do mestre de Nazaré. Como diz, a
certa altura, o Judas kazantzakiano: "E você...perverso, fanático e teimoso que
contemplando a própria face molda um Deus perverso, fanático e teimoso,
atira-se ao chão reverenciando-O porque Ele se assemelha a você".
No capítulo
17 (são 33 ao todo)3, depois de ter sido batizado por
João, Jesus vai para o deserto (onde sofrerá as famosas tentações, após as
quais um derrotado Lúcifer diz: "Até logo, então, até logo, até um dia, em
breve!", o que acontecerá na crucificação, quando surge o ensejo para a “última
tentação”: uma vida como a de qualquer outro homem). Lá, encontra a
carcaça de um bode, não qualquer bode, e sim o proverbial (e aqui, bem
literal) “bode expiatório” que a população das aldeias enche com
amuletos e que é escorraçado e apedrejado até morrer no deserto: "Meu irmão,
você era inocente e puro, como todos os animais. Os homens, os covardes,
descarregaram sobre você seus pecados e o mataram. Decomponha-se em paz, não
guarde rancor, são homens, criaturas pobres e fracas, não têm valentia para
pagar os próprios pecados e põem essa carga sobre um inocente.... Pague por
eles, meu irmão, adeus!".
Edição de A Última Tentação (Grua Livros) |
Como se
vê, aí já temos uma prefiguração do destino: boa parte de A Última Tentação é composta pelo
duro aprendizado de Jesus como bode expiatório. É o pressentimento
disso que faz com que ele se furte à sua “missão” durante 30 anos,
chegando ao ponto de degradar-se fazendo cruzes para os romanos executarem
seus compatriotas rebeldes.
Kazantzákis
escreveu uma história de Cristo sob o signo de Dostoiévski e Nietzsche. De Dostoiévski
temos a ideia perturbadora de Deus como um tormento na vida do homem,
espicaçando-o, testando seus limites e arrastando os demais nesse dilema (é o
que acontece no livro com os discípulos, Madalena, as irmãs de Lázaro: Marta e
Maria)4; de Nietzsche temos a superação do homem para um “além do
homem”, como acesso a uma nova forma de existência, através de
ensinamentos-relâmpagos que desestabilizam quem os recebe. É o Jesus-Zaratustra
incendiário, varrendo os princípios da nossa vida, e que pouco tem a ver com o
Jesus fraquinho de Frei Betto (no romance Entre
Todos os Homens, 1995), tão politicamente correto.
De certa
forma, temos uma arqueologia narrativa das raízes dos evangelhos, contrariando
o princípio moderno de deixar de lado os estratos mais incômodos, para realçar
seus aspectos mais “tolerantes”. O mesmo (guardadas as devidas proporções, é
claro) aconteceu com A Paixão de Cristo (2004), praticamente o único filme
até hoje a dar uma ideia do que foi realmente o sacrifício de Cristo pela
humanidade, sem concessões e sem desvios. Só que enquanto Mel Gibson nos torna
espectadores aterrados, porém ainda assim meramente espectadores, passivos, de
um evento portentoso e incognoscível, que nos supera e nos causa uma sensação
de insignificância, o objetivo de Kazantzákis é fazer cada leitor assumir como
sua a trajetória de Cristo, o seu processo de autoesclarecimento em meio a tantas
ambiguidades e contradições: "Para fornecer um modelo supremo ao homem que
combate, para mostrar que não é preciso temer o sofrimento, a tentação e a
morte, pois tudo isso pode ser vencido e já foi vencido, é que esse livro foi
escrito". Kazantzákis, é preciso dizer, como seus ilustres predecessores
russos, Dostoiévski e Tolstói, não se furta a amalgamar fabulação, pregação,
até mesmo doutrinação; ainda assim, faz-se o milagre e a literatura, no sentido
mais forte da palavra, prevalece5.
Daí sua
imensa profundidade filosófica, existencial e até teológica, sem falar na
autoridade estética (de que temos tantas outras provas, como os magníficos
romances O Cristo Recrucificado e Capitão Mihális, o autobiográfico Relatório ao Greco, o inclassificável Ascese, as amostras traduzidas da sua Odisseia). É por isso que a versão de
Scorsese, de que eu gosto muito, e cujas maiores qualidades derivam do
virtuosismo único do diretor, é relativamente insatisfatória6 porque
deixou tanta coisa de lado, entre elas a inimitável atmosfera das aldeias nas
quais Jesus viveu, perambulou e pregou, descritas por Kazantzákis com tal poder
de evocação que não é à toa que a suprema tentação de Cristo acabe sendo seu
apego telúrico: «Ele abaixou-se, pegou um punhado de terra e cheirou-a. O
aroma penetrou até o fundo do seu ser… esfregou aquela terra no rosto, no
pescoço, nos lábios. Segurava aquele solo na palma da mão e não queria se
separar dele nunca".
Cena de A Última Tentação de Cristo, filme de Martin Scorsese |
De fato,
quando pensamos no quadro geopolítico que forma o contexto do aparecimento do
Messias (a Judeia ocupada pelos romanos), mais do que a peregrinação do autor
de O Pobre de Deus (belo romance sobre a vida de São Francisco) por essas
mesmas plagas ressignificadas (como Terra Santa), evocada em Relatório ao Greco,
o que está em jogo aí é a alegoria do ambiente em que ele cresceu e se formou,
a da opressão de Creta pelos turcos:
"Essa foi a
semente. A partir dela, brotou,
encheu-se de botões, floriu e deu frutos toda a árvore da minha vida. Não foi o
medo ou a dor, nem tampouco a alegria ou as brincadeiras que despertaram meu
coração; e sim o profundo desejo de liberdade. Libertar-me de quê? De quem?
Lentamente, com o passar do tempo, fui subindo a pedregosa ladeira da
liberdade; liberte-se, em primeiríssimo lugar, do turco, este é o primeiro
degrau; depois, mais tarde, começou esta nova luta, liberte-se do seu turco
interno — da ignorância, da maldade, da inveja, do medo, da preguiça, das
fantásticas e mentirosas ideias; e, por fim, dos ídolos, de todos os ídolos, até
dos mais amados e respeitados.
Com o passar
do tempo, à medida que eu crescia e minha mente se expandia, também a batalha
se expandiu, desembocou de Creta e da Grécia explodiu em todos os tempos e
lugares, apossou-se da história do homem; não eram mais Creta e Turquia que
lutavam, eram o Bem e o Mal, a Luz e a Escuridão, Deus e o Diabo. Sempre a
mesma eterna batalha, e sempre atrás do Bem, da Luz e de Deus, Creta; e sempre
atrás do Mal, da Escuridão, do Diabo, a Turquia. E assim, simplesmente porque aconteceu
de eu nascer cretense e em um momento tão crítico quando Creta lutava para se
libertar, desde muito pequeno, senti que existe no mundo um bem mais precioso
do que a própria vida, mais doce que a felicidade: a liberdade"7. Luz
e escuridão que, no entanto, deixam o protagonista de A Última Tentação em
eterno transe: "...Deus ou o Demônio? Quem pode distinguir? Eles trocam de
fisionomia, ora Deus torna-se a escuridão total, ora o Demônio torna-se cheio
de luz, e o espírito humano confunde-se".
Contudo,
para Cristo, o cordeiro que nasceu para ser abatido, o ciclo das estações e da
vida precisa ceder ao rito sobrenatural da Páscoa, no seu significado mais
agudo: "A Páscoa, meus fiéis companheiros, significa uma passagem,
passagem das trevas para a luz, do cativeiro para a liberdade. Mas a Páscoa que
celebramos nesta noite ainda vai adiante. Hoje a Páscoa representa a passagem
da morte para a vida eterna".
O
desalentador é que o bode expiatório ainda continua uma muleta para a
humanidade: ela nunca executa a passagem, ela nunca muda.
Notas
1
Já houve uma tradução indireta, realizada por Waldéa Barcellos & Rose Nânie
Pizzinga, e publicada pela Rocco (e, depois, pelo Círculo do Livro), com o
título A Última Tentação de Cristo, possivelmente em função da versão
cinematográfica de Martin Scorsese, lançada em 1988. No original, O Teleftéos
Pirasmós. Esse é o terceiro livro de
Kazantzákis lançado pela Grua, depois de Vida e Proezas de Aléxis Zorbás (antes,
conhecido como Zorba, o grego) e Capitão Mihális- Liberdade ou Morte, este até
então inédito.
2
A tradutora, Marisa Ribeiro Donatiello, em seu Posfácio, conta que o livro
primeiramente foi lançado em Oslo, em 1951, já em tradução norueguesa.
3
Além de ser esse o tempo de vida de Jesus, lembremos que Kazantzákis escreveu
uma versão moderna da Odisseia, com 33.333 versos
4
Tome-se como exemplo esta cena entre Jesus e Judas:
"– O que
está acontecendo com você? Por que se abateu? Quem o atormenta?
O jovem
esboçou um sorriso, fez menção de responder “Deus”, mas conteve-se. Esse era o grande brado em seu íntimo e não
queria deixá-lo escapar pela boca.
– Estou
lutando — respondeu.
– Com quem?
– Não sei, estou lutando."
5
Bom lembrar, também, que desde a mais tenra infância, ele foi fascinado pela
santidade (era um ávido leitor de vida de santos) e pelo heroísmo. Santo e
herói, o ideal humano kazantzakiano.
6
Mesmo assim, muito melhor do que a de Gibson, decerto. Mas o Cristo
cinematográfico mais expressivo continua sendo o de Pasolini, O Evangelho
Segundo São Mateus (1964).
7
Utilizo a tradução direta do grego de Lucilia Soares Brandão, lançada há poucos
meses pela editora Cassará.
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