A imortalidade, de Milan Kundera
O título
publicado no final da década de 1980 e chegado ao Brasil no início da década de
1990 reaparece em 2015 no arrojado projeto editorial conduzido pela Companhia
das Letras desde quando trouxe-nos o mais recente romance de Milan Kundera, A festa da insignificância. O romance é
conhecido como um dos mais importantes na literatura do escritor theco, depois,
é claro, da obra que o projetou internacionalmente, A insustentável leveza do ser.
Na época de sua publicação, registra
a crítica, o romancista recusou as sabatinas, os eventos públicos de
apresentação da obra, enfim, qualquer aparição ou apoteose; tudo seria em razão da compreensão de que o livro sozinho se
basta; ou um tapa com luva pelica na cara da sempre hipócrita mídia que se
aproveita, em grande parte, do que o próprio autor diz sobre sua obra e
rescalda o discurso em críticas pífias para os cadernos de cultura, abrigando a obra, muitas vezes em estereótipos vazios ou irregulares e tolhendo a reflexão mais livre sobre os diversos temas suscitados pela sua escrita.
Mas, se
fôssemos resumir a densa obra – tanto na dimensão do conteúdo quanto na
dimensão do texto – diríamos, sem rótulos, que A
imortalidade trata uma das formas com que, na contemporaneidade, se apresenta o
mito da caverna, o desejo de imortalidade, como sugere, de entrada, o título.
Sim, leiam isso como uma sinopse superficial para uma obra de considerável complexidade de um
autor que disse certa vez, “Pretendo que meus livros sejam divertidos, fáceis
de ler e difíceis de compreender. Porque detesto os livros difíceis de ler e
fáceis de compreender”.
Kundera
começou a escrever a obra durante a estadia de um mês em Mallorca em 1986,
embora a gestação, evidente, tenha sido mais longa. Narrado em primeira pessoa,
um homem espera a chegada de um amigo com quem tem
convidado, com certa frequência, para conversar. Em certo momento observa uma velha que se despede
de seu professor de natação movimentando o braço como se se despedisse de muito
longe; esse acontecimento desperta a narração em que cada personagem do círculo de convivência desse narrador encarna um
mito e uma história, e todas têm em comum o tema da imortalidade.
O gesto da senhora
atrai sua atenção pela dissociação entre a não-seriedade e jovialidade do gesto e a
idade avançada da mulher. Desta primeira observação surge a reflexão. Muitos são
os gestos, mas por força, seu número é menor que o dos homens que os realizam. Daí
que os humanos sejam portadores dos gestos, mas estes não nos pertencem e não são definidores
de nossa personalidade. Esse estágio
contínuo de divagação chegará ao fim com a chegada o amigo Avenarius com quem o narrador inicia um
largo diálogo. Nesse intervalo de tempo enquanto se realizam as outras narrativas se constrói o largo exercício de reflexão que define a escrita de Kundera desde A insustentável leveza do ser.
Como uma
peça para orquestra, A imortalidade
tem um assunto geral – que dá título à obra – mas acompanha uma série de outras
questões: o amor, o sexo, a sorte, a morte, a existência, a aparência... No estrato de
diretor da orquestra se encontra esse narrador que não seria asneira dizer que
é o próprio Milan Kundera, ainda que ele negasse o posto de regente. E, no
outro plano, na realidade do romance, figura uma espécie de duplicado
seu feminino que se chama Agnes, a única realmente lúcida, que vê a inóspita
realidade em seu entorno (uma consciência já despertada) numa Paris barulhenta,
suja, feia e povoada por uma multidão progressivamente anônima e uniforme.
Nesse aspecto, ninguém oferece melhor, um painel sobre o complexo vazio que se
coloca na vida contemporânea do que o escritor tcheco, isso pela capacidade que tem
de se apropriar de algo cotidiano e universal e lapidar a partir de uma ideia
filosófica.
E é o cotidiano
que o escritor quer deixar desenvolver por si enquanto elabora sua compreensão
sobre sua construção e sobre os gestos que o enformam. Aqui, como dizíamos, cada personagem protagoniza uma
história e, por sua vez, encarna uma maneira de apresentação, entre as
diversas, do tema evocado; como por exemplo a generalizada preocupação com a
imagem: sou eu, sou o que pensam os outros, ou sou o que passo para eles?
O
companheiro de Agnes desenvolve a ideia de que quem constrói a imagem nos dias
de hoje são os jornalistas. Agora, se a imagem oferecida de alguém pelo
jornalista não é exata, o fato desse alguém aceitar a imagem oferecida se chama
traição, traição de si mesmo. Nesse ínterim, o escritor acaba por penetrar
noutro assunto de natureza complexa: o extensivo poder exercido pelos aparelhos
midiáticos na construção de um ideal de verdade, ou ainda a responsabilidade do
leitor de distinguir entre as imagens fabricadas pela mídia quais as não-reais
ou as que atendem apenas um interesse muito particular do grupo que veicula
tais verdades, algo que será pensado por exemplo, com maior clareza em Número zero, de Umberto Eco. Noutras palavras, eis de volta a pergunta: o que é a verdade?
Outras
personagens buscam a imortalidade através do amor, através do jogo ou pelo
sexo: a irmã de Agnes demonstra que está disposta a levar suas artimanhas
sexuais até o limite da vida; se o maior risco está nela mesma, o mais forte
que ela está no sexo. O tema atenta para a ideia de performance do corpo ou a
necessidade do desejo erótico contínuo imiscuído como a mesma dimensão que outras
necessidades humanas.
Por esses
dois exemplos é perceptível que A
imortalidade revela uma compreensão sobre o romance para Kundera: ser meio
de expressão sobre a realidade, um veículo nas mãos de seu autor quem, com sua onisciência,
determina uma compreensão sobre o seu entorno mediante a acumulação de
materiais diversos e os coloca em complexa relação. O leitor haverá de notar
que, sempre uma questão central irá, sem muito esforço, levá-lo a outras questões.
E é aí que reside o grau de profundidade do narrado. Seu trabalho é o de dizer
como cada coisa tem uma relação muito própria uma com a outra, ainda que pareça
distante.
Isso parece
ser o bom da leitura do Kundera: estamos sempre em contato com o próprio
escritor, suas reflexões (diretas ou pela voz da personagem) ao longo de todo
romance. Nessa prática deve escapar um jogo entre o imaginado e o realizado; daí
a desnecessidade de explicar a presença de Goethe e seu pior pesadelo, Bettina,
quem ameaçou de maneira direta a aspiração de gênio do alemão: sua fama eterna.
Eis outra forma de imortalidade; essa que alguns buscam por seu próprio mérito
e outros o fazem por uma posição cega de se sobrepor aos outros. Novamente
percebemos a questão da alteridade como tema dominante nessa relação sobre o
imortal.
Há, evidentemente, muitas outras leituras bem como outros temas possíveis de apresentação numa leitura destas, mas fiquemos com estas. Para o caso, já são suficientes. Agora, se em A insustentável leveza do ser havia
pessimismo, em A imortalidade o
pessimismo é generalizado e quase absoluto. Parece que nada nem ninguém poderá
escapar de suas próprias armadilhas e, talvez, sugere, se há algo ou alguém
imortal, esse não seria o criador, mas a obra de arte. De todas as reflexões
sobre o tema, esta talvez seja a de maior grandiosidade, não pelo que ela
enseja, mas pela necessidade de fazer da arte um dos princípios regentes de
nossa existência.
Ligações a esta post:
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