Um Quixote para o século XXI




Acaba de vir a lume um Quixote para todo o mundo, com mais de 150 olhares, portas e rotas que se abrem para entrar no universo do mais ilustre cavaleiro andante. Situações inusitadas, armadilhas, embustes e mal-entendidos são salvados e esclarecidos na nova edição de O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, de Miguel Cervantes Saavedra, como nunca visto. Mais de cinquenta especialistas, pesquisadores e escritores amantes deste clássico universal estiveram sob o comando do filólogo e acadêmico Francisco Rico para dar forma a este projeto que levou 21 anos para ficar pronto. Criar uma obra que iluminasse e analisasse cada frase de Cervantes e estudasse cada passo do Cavaleiro da Triste Figura com o objetivo de fixar a obra, ainda que nunca possa existir uma versão definitiva do texto, esse foi o propósito desse projeto.

O trabalho foi executado com as técnicas mais modernas de filologia e o resultado é a revisão de quase uma centena de passagens sempre no interesse de reaproximá-las da versão original ou ao que queria dizer Cervantes e a troca de dezenas de palavras que dão um novo sentido ou visão mais limpa desses episódios. No fim, é um projeto executado em forma de homenagem rendida pela Real Academia Espanhola junto com o Instituto Cervantes e a Obra Social A Caixa.

A segunda parte do Dom Quixote chega aos 400 anos em 2015; foi publicada no outono de 1615 pela Espasa e Círculo de Leitores. E, a homenagem não poderia vir em melhor tempo. Trata-se de uma aventura fascinante que agora está ao alcance do leitor em dois tomos: à leitura da história do cavaleiro e seu fiel escudeiro vem repleta de notas de rodapé, cujo território se alarga, completa e complementa com o olhar que pesquisadores e escritores oferecem dos 129 capítulos e prólogos. Tornou-se um Quixote de 1.345 páginas com anotações e 1.967 de estudos, anexos, mapas e imagens.

Como definido pela equipe que cuidou desse árduo exercício: é um Quixote poliédrico para o século XXI, para todos os tempos e idades. A edição chega na mesma ocasião em que em Espanha, Andrés Trapiello, escritor e especialista na obra de Cervantes apresentou uma edição integral das duas partes do texto escrita no espanhol moderno, o que terá causado uma celeuma entre os estudiosos da obra. E, claro, no mesmo ano da empreitada forense de recuperar os restos mortais do escritor.

A edição atual, no entanto, está entre os trabalhos mais rigorosos de que se tem notícia sobre a fixação de uma obra; foi conduzido sob todos os instrumentos que pudessem colocar o leitor o mais próximo possível do original. Para se ter uma ideia desse trabalho, a equipe debruçou-se na análise da caligrafia de Cervantes, nos mecanismos de impressão das primeiras publicações e as futuras correções e emendas feitas pelo próprio autor desde a publicação do original. Antes da segunda parte, publicada em 1615, o espanhol havia publicado, dez anos antes, o primeiro tomo das andanças do cavaleiro. A equipe levou consideração não apenas essas edições, mas aquilo que deu origem a elas, bem como as edições subsequentes nesses mais de quatro séculos de existência da obra.

As dezenas e dezenas de correções e esclarecimentos dados a certas passagens da narrativa oferecem ao leitor novas possibilidades de leitura. Pequenas e grandes mudanças que tornam realidade o dito de que Deus e o Diabo se escondem nos detalhes. Desde a frase conhecida que diz “Só fazer / hacer o amor com impulso”, quando o correto é “Só nascer / nacer o amor com impulso” a “A tempestade de paus que vinha sobre ele / sobre él vía”, quando o correto é “A tempestade de paus que chovia sobre ele / sobre él llovía”.

Como apresentada, é uma edição monumental com todos os elementos necessários que reforçam esse caráter de uma obra de igual característica. Reafirma a modernidade e a erudição do Quixote, elementos cruciais no tom popular que a obra adquiriu nesses mais de quatro séculos de história. E, claro, reafirma o que disse Jorge Luis Borges, de ser esta uma obra infinita, estará sempre em reescrita; é um romance que nunca deixará de ser novo porque as perquirições desse cavaleiro andante são universais e atemporais.

O trabalho ora publicado iguala-se a outros dois momentos-chave das edições do Quixote: ao de 1780 e 1863. A edição de 1780 foi também produzida pela Real Academia Espanhola, em Madri, e consiste, não em dois, mas em quatro tomos, ilustrado e com especulações de diversos especialistas; além disso, trouxe uma biografia de Cervantes, a mais recomendável, diga-se. Já a edição seguinte, além de todas as novidades reunidas na edição anterior, foi a que incorporou as célebres xilogravuras de Gustave Doré. Foi impressa em Aragamasilla de Alba, na mesma casa onde, segundo é fama, Miguel de Cervantes esteve preso, conforme registra a carta anexada à edição. O projeto de 1863 começou em outubro do ano anterior e findou em fevereiro.

A edição de 2015 começou a ser pensada em 1994 quando o Instituto Cervantes encarregou a Real Academia um Quixote indicado para seu público em todas as partes do mundo onde iam estar suas sedes. Um Quixote mais informativo que interpretativo sem ofender aos cervantistas. Desde então, o coordenador dessa empreitada foi o Professor Francisco Rico. Em 1998 sob o selo de edição crítica veio a lume um tomo; em 2005, por motivo do quarto centenário da publicação da primeira parte, uma segunda edição ampliada e agora os dois volumes reunindo, respectivamente as duas partes do texto. No primeiro tomo, o romance com uma série de instruções e no segundo com estudos complementares que inclui análise dos especialistas e escritores sobre cada capítulo – nomes como os de Javier Marías, Alberto Manguel, Javier Cercas e Roger Chartier. O segundo volume fecha com uma série de mapas e planos da obra e uma galeria de ilustrações de pelo menos trinta artistas de todos os tempos que se debruçaram na aventura de traduzir o Quixote em imagens.

Os textos somados à exaustiva pesquisa bibliográfica resultam numa antologia que reúne o melhor da crítica cervantina da contemporaneidade. Nesse curso, é oferecida um desenlace de um dos mal-entendidos mais universais da obra, a que responde a pergunta sobre ser possível que o Quixote tenha nascido na mente do autor como uma ação contra os livros de cavalaria, muito em voga no seu tempo. Mais razoável, esclarece, será compreender que o romance se engendrou quando Cervantes, num cárcere, entreviu as características essenciais do protagonista, um fidalgo transtornado pela leitura das fábulas de cavalaria e disposto a revivê-las na Espanha de Felipe II e não porque o escritor se propôs rebaixar as tais novelas em voga e para tal fim tenha forjado a personagem de Dom Quixote.

É parte da riqueza de uma obra, que tem vida por si própria tais impasses. Passados mias de quatro séculos a pergunta segue sendo a mesma: que tem o Quixote que fascina a toda sorte de leitores e críticos? O ponto de partida decisivo parece ser aquele vislumbre da imagem do herói construído pelo próprio Cervantes. O êxito disso vem da fascinação com que esse herói existe, com uma singular humanidade. Talvez caiba aqui o ditado de que de sãos e loucos todos temos um pouco. Dom Quixote é alguém que está no intermédio da loucura e da lucidez. E entre uma e outra prevalece sempre o interesse pela plenitude da vida dos desvalidos. É uma figura capaz de despertar no leitor as mais diversas sensações: se dele temos orgulho, certas vezes, outras podemos nos escandalizar com seu desaforo, e mais, encantar-se com sua inteligência além da mesmidade das coisas. E isso, até que alguém volte da eternidade para dizer que é tudo diferente, é eterno.

Ligações a esta post:

* este texto é uma tradução livre de "Se publica la edición del Don Quijote más completa en sus 400 años" (Winston Enrique Sabogal) e excertos de "Un Quijote moderno" (Javier Rodríguez Marcos). As informações sobre as antigas edições são da página da Real Academia Espanhola.


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