O pensamento político de Fernando Pessoa
Fernando Pessoa. |
“Fernando
Pessoa (1888-1935) não era fascista. Nem admirador de Mussolini, Salazar,
Hitler, sequer de Primo Rivera, líderes de regimes autoritários com os quais
teve de conviver um dos maiores escritores do século XX e, sem dúvida, o mais
enigmático”, assim apresenta Francisco Javier Martín Barrio sobre a edição recém-publicada pela Editora Tinta-da-China Fernando Pessoa, sobre o fascismo, a ditadura militar e Salazar, de José Barreto.
Barreto é sociólogo e
historiador e tem se dedicado desde a última década a rastrear e descobrir os
escritos políticos de Pessoa ou aqueles que tenha certo traço que possa ser enquadrado nesse rol. É um extenso quebra-cabeças. Nunca é fácil lidar com uma obra levada ao auge do inacabado como a do escritor português. E, como se não bastasse, ele ainda multiplicou-se em tantos e com opinião muito diversa.
Mas, parte da extensa dedicação de Barreto já está registrada. A edição trazida pela editora portuguesa integra uma
coleção sobre Pessoa que colige o que o escritor não coligiu. Trata-se do trabalho cuidadoso e faraônico de Jerónimo Pizarro, um colombiano que tem trabalhado desde sempre na sistematização
da obra dispersa e desconhecida do escritor português. Reconhecimento seja feito: sem esse esforço, não saberíamos quase-nada de Pessoa. Agora, já se é, pelo menos possível reconhecer alguma sombra de seu projeto literário, se é que o tinha. Antes do livro de
Barreto, o pesquisador publicara uma edição da Obra completa de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Pessoa.
A edição de
Barreto se concentra em textos de Fernando Pessoa escritos entre 1923 e 1935, ano de sua
morte, e é apenas o primeiro de dois ou três volumes possíveis. Não ousando usar o pesado termo de fascista, o pesquisador prefere definir que essa extensa apresentação política do escritor é do perfil de um sujeito “individualista impenitente”, “nacionalista místico”, “liberal
radical na juventude”, “elitista intelectual”, alguém que “não apreciava a
multidão”, “não apreciava a mediocridade, o gregarismo – que beirava a
misantropia.” O pensamento e a vida do português, diz Barreto, “eram
absolutamente contrários ao unilateralismo e à intolerância”, duas das marcas mais ferrenhas dos regimes fechados como foram os de seu tempo. O escritor viveu o auge de todos eles na Europa.
Mas Pessoa
era ele e as mais de três centenas de heterônimos nos quais se desdobrou, muito
deles com uma vida e um pensamento completos, este, germe de muita confusão ou de má fé. É até suspeito para os que o disseram admirador do salazarismo que o regime não dado à mínima para sua obra durante largo tempo; só vista quando do aparecimento de Mensagem, único livro publicado em vida e que foi ganhador de um suspeito concurso literário. Uma trama para atraí-lo ao lado da ditadura? Pode ser que sim, mas o fato é que parece que o escritor apercebeu-se desde antes e também jogou com a própria esperteza do poder.
Publicou-se Mensagem e reduziu-se ao silêncio. Outra
edição de sua obra, o Livro do desassossego (atribuída a Bernardo de Soares) só foi publicada 47 anos depois de sua morte. Mas, seu caráter enigmático, esquivo e, sobretudo, a fama internacional a partir dos anos
1970 – com Portugal ainda embaixo da ditadura de Salazar –, deu margem às mais
diversas especulações; a mais forte, de que poeta tinha relações muito estreitas com regime e tinha admirações por Salazar.
Uma dessas especulações, fajutas, é bom que se diga, foi conduzida pelo ensaísta Alfredo Margarido; ele foi uma espécie de líder de uma campanha póstuma
sobre um Pessoa pró-fascista; divulgou Mensagem
como uma “exaltação nacional-fascista” e o seu autor “reacionário”
e “adepto convicto” do Estado Novo. Margarido tergiversou de opinião quando, a partir de 1974 (ano
da Revolução dos Cravos) começaram a se descobrir poemas satíricos anti-salazarista
como “Fado da censura” e outros textos críticos contrários o regime. Mas, não se deu por rogado: justificou o gesto como uma mudança tardia, e
que, na realidade, Pessoa era simpatizante mais de Mussolini.
Barreto
concorda que a campanha dos anos 1970 e 1980 reforça mais um absurdismo do
regime cujas marcas são sentidas na sociedade até hoje. E destaca como prova de
que Margarido estava errado o poema irônico “Liberdade”, uma espécie de
resposta imediata ao discurso de Salazar sobre os benefícios da censura:
Ai que
prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...
Barreto, não
guarda nenhuma queixa sobre o ativismo político de Pessoa. Compreende que sua
crítica à ditadura é sempre a partir de sua intelectualidade; sua preocupação é
corporativista, nunca é com o sofrimento do povo. Pessoa escreveu: “Serve
melhor à pátria um grande poeta comunista ou imoral que um pobre diabo que
escreve poemas elogiosos sobre a batalha de Aljubarrota”.
O pesquisador reconhece o esforço do
Estado Novo em querer recrutá-lo. Mas, o prêmio que ganhou para a publicação de Mensagem, Pessoa não foi recolher. E permaneceu no seu exílio de sempre. “Me sinto velho no Estado
Novo” – escreveu. “Era um nacionalista-racionalista, absolutamente contrário à intromissão
do Estado na economia ou no espírito das pessoas, antiestado e anticoletivismo.
Era um elitista”, diz Barreto.
O livro ora
publicado está organizado em três partes: o fascismo e Mussolini; a ditadura
militar portuguesa e a figura de António de Oliveira Salazar como ministro de finanças
(1928 – 1932) e depois como líder do que chamou Estado Novo e que durou até os
anos 70. Também há referências ao nascimento do nacional-socialismo de Hitler e
à ditadura espanhola de Primo Rivera (1923 – 1930).
Fernando
Pessoa não tinha um pensamento político sistematizado, é verdade, ao menos até o último
ano de sua vida quando já não depositava nenhuma confiança em Salazar e escrevia
ao presidente do país, o general Carmona, “uma aristocrata da adaptação”, “a
maleabilidade dentro da dignidade”. Aqui, o escritor se declara “situacionista”.
Se não era
fascista militante, sem dúvida era contrário, e a dispersão de textos de suas personagens ajudam a polêmica. Barreto descobre três textos em inglês: num
deles coloca Salazar à frente de Mussolini e do incipiente Hitler, por ser mais
democrático e ter um parlamento fiscalizador.
Além disso, o
livro reproduz a entrevista ao antifascista italiano Giovanni Angioletti,
publicada no jornal português Sol em
1926. Ele qualifica o chefe de estado de seu país, Mussolini, como “um
paranoico genial”. A entrevista, supostamente, era de Fernando Pessoa e foi
toda inventada, exceto o nome da personagem, que fato, existiu.
O que
Barreto entrevê na análise de todo o conjunto de textos é que não dá para
rotular efetivamente Fernando Pessoa como uma coisa ou outra, não dá para
tê-lo como um sujeito amante da ditadura: “Muitos disseram já que não é necessário
gostar das ideias políticas de Fernando Pessoa nem de escritores como Ezra
Pound e Céline para gostar das suas obras literárias. Não é indispensável, de
facto, saber se Pessoa era liberal ou fascista para apreciar obras como 'O
Guardador de Rebanhos', o 'Livro do Desassossego' ou 'O Banqueiro Anarquista',
mas parece óbvio que um fascista jamais poderia ter escrito tais obras. Na verdade,
nem a poesia nem a prosa literária de Fernando Pessoa indiciam um escritor com
ideias ou valores favoráveis a regimes autoritários, por mais que isso tenha
escapado a certos críticos que o pretenderam fascistizar postumamente com base
em critérios extraliterários. Não se consegue imaginar um Caeiro a fazer a
saudação romana nem um Campos a dar vivas a Salazar, tal como não se concebe
qualquer dos heterónimos, nem o ortónimo, a dizer qualquer coisa simpática
sobre os sovietes. Se alguém pudesse ler toda a obra de Pessoa com olhos de
analista literário dobrado de sociólogo, talvez pudesse concluir mais ou menos
o mesmo do que lendo os seus ensaios sociopolíticos — que o seu autor era um
individualista impenitente, um nacionalista místico e um conservador liberal
com pozinhos de libertário.”
Polêmicas à
parte, a obra revela novas pequenas peças no extenso quebra-cabeças que é o
pensamento de Fernando Pessoa; é aguardar os próximos volumes.
Ligações a esta post:
Leia três poemas de Fernando Pessoa que são um afronta ao poder ditatorial, aqui.
* Parte deste texto se deve ao texto de Francisco Javier Martín Del Barrio publicado no jornal El País do qual traduzimos livremente algumas passagens e seguimos o roteiro original.
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