Não entres tão depressa nessa noite escura, de António Lobo Antunes

Por Pedro Fernandes



Certa vez, Miguel Real, uma das figuras mais lúcidas da crítica literária portuguesa, afirmou que António Lobo Antunes trata-se de um caso singularíssimo e alguém não igualado por ninguém, nem antes e nem na contemporaneidade, no cenário das letras portuguesas; “seus livros revelam uma nova dobra na língua portuguesa, um novo horizonte estético para esta, uma nova forma de combinação de palavras até então nunca descoberta”, diz o crítico. Provam-no a extensa obra romanesca que tem escrito, o exercício da crônica, os mais singulares na literatura em língua portuguesa contemporânea. Muito recentemente, escreveu Caminho como uma casa em chamas, que certamente merecerá atenção por aqui, noutra ocasião. Este texto agora publicado é, no entanto, um conjunto de notas sobre um de seus romances mais conhecidos, e um dos mais densos e mais difíceis também (António Lobo Antunes não escreve para leitores comuns, aliás não escreve para, desafia-os).

Não entres tão depressa nessa noite escura foi publicado em 2000. E ao longo desse período tem já acumulado uma série de textos críticos, sobretudo teses de doutorado e dissertações de mestrado, parte delas certamente encantadas com o acurado fôlego com o escritor português dedica à língua e a destituição da natureza comum do romance ou ainda por certo hermetismo linguístico. É um texto que preferiu chamá-lo de poema (está como subtítulo da obra) e que amplia um exercício de interseção dos gêneros que já demonstrei noutras ocasiões, quando falei sobre Auto dos danados e Fado alexandrino, dois romances que incorporam na sua estrutura elementos definidores do gênero textual que dão título à obra. Bem, no caso desse livro ora comentado, tudo corrobora para ser uma espécie de longo poema em prosa (a escrita versicular, a predominância do uso das minúsculas para início de frase e, sobretudo, a construção linguística capaz de produzir no leitor o contato constante com blocos de texto que são exímia poesia).

Em Não entres tão depressa nessa noite escura o escritor quase se aparta do contexto histórico e ergue um universo que é mônada no universo cotidiano. É evidente que não deixa de vir a lume certos fluidos da história recente portuguesa, temas de predileção do escritor dos primeiros romances, mas, o que se amplia aqui é a capacidade de acompanhamento do travelling mental: uma linguagem surda, como disse certa vez, que aspira dizer tudo a uma só vez, assim como é cada vez mais impressionante a capacidade provocar no leitor uma aproximação com as movimentações do nosso interior. É um romance que se faz pela intercalação de uma diversidade de acontecimentos e cuja estrutura é fraturada, assinalada por interrupções bruscas, os cortes, elipses e entrecortar de vozes que ora aparecem ora se dispersam sem qualquer ligação aparente com um centro de comando de um fato principal.

O fato principal é a morte do pai da narradora. Situação do acaso, mas que ampliará a ruína da casa. Estamos, pois, diante de dois temas primordiais na obra de António Lobo Antunes. É o contato com o fim que levará Maria Clara, primeiro, a futricar o passado do pai, sempre guardado a sete-chaves e sempre apresentado como o que não tem nada a esconder seja pelo excesso de cuidado com a aparência seja pela imagem de homem sério e provedor do lar. Mas, a narradora de Não entres tão depressa nessa noite escura não é uma figura comum; tem parte com aquelas criaturas que diz confiar no que vê quando na verdade está em busca da primeira oportunidade para conseguir bisbilhotar o que não se revela a olho nu.

E todo romance finda por ser uma tentativa sua de buscar reconstruir o passado da família (e logo reconstruir a si), sobretudo, o desse enigma que é a figura paterna, olhando-a desde as provas (coisa pouca) que reúne sobre ele (algumas fotografias, um registro de nascimento rabiscado, uma agenda com uma ou outra anotação, e um baú de notas fiscais e restos de armas que a leva a perscrutar sobre o trabalho escuso de Luís Filipe com o contrabando de armas). No final desse parêntesis, gostaria de abrir outro para justificar uma posição contrária às acusações de que, por se aproximar demais de um subjetivismo António Lobo Antunes tenha, desde então produzido uma obra cujo interesse sobre a realidade histórica, social e política não se constitui em elemento para compreensão de sua obra.

A afirmativa corroborada muitas vezes por parte de uma crítica mesquinha é errônea, por vários fatores: um deles, já evidenciado pela própria teoria da literatura, a de que não há obra literária fechada em relação ao contexto a que pertence, sobretudo, porque a linguagem, seu instrumento é um aparelho histórico, político e social. Outro, evidenciado nessa suspeita costurada pela narradora de Não entres tão depressa nessa noite escura. Não seria Luís Filipe um modo de denunciar certa parcela do capital que vive às custas da dor e do horror alheio? Não seria Luís Filipe uma figura sobre o que foram as relações escusas entre as Forças Armadas, a Indústria Armamentista e o Governo sempre juntos a dizer sobre a utilidade do conflito armado em África?

Depois de Luís Filipe, a obsessão de Maria Clara, o leitor encontrará com Amélia, sua mãe, a irmã Ana Maria, a avó Margarida, sempre torrando o exíguo patrimônio com os jogos de roleta no cassino, Adelaide, uma figura das mais emblemáticas do romance e peça-chave no imbróglio narrativo que Clara tenta erguer e talvez uma das melhores figuras de empregada desde a Juliana de Eça de Queirós, entre outros. É um romance para envolver-se, não é dado para mentes preguiçosas. O romancista exige a presença do leitor na extensa bricolagem de situações a fim de construir uma linha de enredo que, desde então, o adote para compreender a obra sobre algum acontecimento, mesmo sabendo que a literatura antuniana não é registro, é provocação.

Por fim, e os romances que sucederam a esse cada vez mais provam isso, depois do lugar do crítico mordaz da realidade histórica e um revelador da hipocrisia que vela os mais variados recantos da sociedade e o torna para os indivíduos em pura aparência, António Lobo Antunes instala-se, agora, ao modo do que fizeram os escritores realistas, na mínima unidade institucional que é a família. Depois percorrer outras instituições, como as forças armadas e o aparelho médico, como já disse, esse núcleo parece servir de medida certa na elaboração de uma metonímia através da qual pode observar o pormenor de uma sociedade à beira de um colapso ou fim agonizante de uma civilização. 

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