Morreste-me, de José Luís Peixoto

Por Pedro Fernandes




Todos carregamos desde a expulsão do homem do paraíso a dor do luto. Ao compreender esse gesto do mito fundacional da colônia humana como uma perda da eternidade e a necessidade de convivência com o fim, a queda da criatura perante o Criador é situação da qual nunca nos recuperamos. Até hoje o que fizemos tem sido desprezar o fim e viver com se a vida fosse uma eternidade; a consciência da finitude só se abre quando atravessamos a possibilidade da morte ou quando nos aproximamos da velhice. Mas, a vida, fora dessas condições é, desde sempre, não mais que um estranho amontoado de perdas.

E as perdas não se findam a deixarmos de viver ou à morte dos entes queridos; também perdemos coisas pelas quais guardamos afetividades e cujo vazio deixado é capaz de nos produzir sismos tão fortes quanto a dor do luto. Mas, é bem provável que, a perda das coisas seja tragada pelo esquecimento, enquanto a dor da perda de uma figura muito querida torne-se uma marca indelével de nossa vida. Diariamente, teremos de enfrentar situações, marcas, sinais, vozes, que sempre nos trará os tempos em vida da pessoa. E lembrar-se é a única forma de eternidade que temos consciência. A memória não é apenas traços de uma imagem, a presentificação do ausente é uma forma de presença.

O livro de estreia de José Luís Peixoto insere-se nessa corrente de reflexão sobre a dor da perda; não chega a ser diretamente (como se a modo de um ensaio) uma tentativa de compreensão sobre a finitude. Ao dizer isso, recordo esse traço num romance de Inês Pedrosa, Fazes-me falta. A obra da escritora portuguesa é construída numa troca de correspondências entre uma morta e seu companheiro. Ainda que aqui aflore os aspectos de uma relação amorosa atropelada pelo destino, aí está o luto da perda, a profunda solidão, a lembrança sobre os encontros e os desencontros, a irrealização de amor sempre adiado. Elementos, alguns deles, que se repetem no texto de Peixoto, que, diferentemente do romance em questão, vigora apenas uma única voz. Alguns deles porque o amor assumido entre pai e filho (além de diverso do amor dos amantes no romance de Inês Pedrosa) é realizado em sua plenitude como fica notado na singeleza com a qual o narrador de Morreste-me trata de acontecimentos corriqueiros e o cuidado com as dores da doença.

Embora se refira a um episódio da sua própria vida, Morreste-me não é para ser lido como um registro biográfico dessa perda, assim como é, por exemplo, o romance do norueguês Karl Ove Knausgård, A morte do pai. O texto de Peixoto é como se uma interrogação ante a finitude e a vida que segue; é um fluxo de rememoração para lidar com a convivência da morte, o vazio da perda. Há uma consciência de que a morte não se constitui uma oposição à vida e vice-versa; há uma observação poética sobre o fim como um recomeço ou o fim como uma forma para o recomeço.

A saudade da figura que amamos – e mais que isso, da figura que nos ensinou a apreender o mundo e senti-lo com toda sua força, a encará-lo como uma constante de dias pelos quais havemos de lutar. Peixoto revela-nos a simplicidade da existência sempre cerrada num mesmo eixo de ora luz ora escuridão; eis um símbolo que cerze toda a narrativa. Revela-nos ainda a efemeridade da vida e faz dela forma para o texto que não alcança a dimensão dos romances de maior fôlego que escreverá depois. Aliás, Morreste-me é um pequeno conto; o seria um poema em prosa?



Morreste-me é a voz de um órfão. É uma voz no silêncio, que não se interroga, apenas revive. É uma narrativa sobre o desamparo, sobre está só e a necessidade de assumir propriamente a vida. É este um texto que se lê com lágrimas nos olhos tamanha sua profundidade existencial. É a voz de quem tenta apalpar a consciência do vazio deixado pelo outro e da posição que agora o órfão tem de ocupar ante o pai.

Peixoto une magistralmente a prosa à poesia como estratégia não de reconstrução do mundo, condição desde sempre coerente da narrativa de ficção. A união entre as formas textuais, aliás é um gesto por fazer valer outra noção mimética, não a da representação, mas a da interpretação. Morreste-me é uma interpretação sobre a perda, mas é também o desenvolvimento de uma consciência relativa ao lugar do pai. A orfandade paterna sempre cobrará do filho a vez de ser sua presença. É assim, por exemplo, que se apresenta no texto a recorrente ocupação do filho em vestir-se como se vestisse o pai, em usar o carro como que usava o pai.

A narrativa é, desse modo, como se a leitura de um quadro em que imagem invocada tem sempre seus vazios preenchidos por um passado que simultaneamente comum ao lembrado e a quem lembra. Isto, por exemplo, é coluna de sustentação para Não entres tão depressa nessa noite escura, de António Lobo Antunes. Mas, ao invés desse romance ora citado, Morreste-me tem o luto e sua face iluminada por uma presença contínua da vida; se ela é sucessão de perdas é também sucessão de inícios.

A vida é como se uma tentativa contínua sempre na esperança de alcançar-se mais perfeita. Parece nos querer lembrar o autor. Assim, se a escuridão é um símbolo que cerze a grafia da narrativa, a luz ocorrida com a mesma frequência, é outra recorrência. Dia-noite, sol-chuva, pares não antitéticos, mas continuações assim como o filho ver-se continuação do pai. Há nessa melancolia do fim, tênues fios que são encorajadores para a existência.

Morreste-me foi escrito para dizer que a lembrança (e ela gravada pela palavra) é uma maneira de eternização até quando já a memória se perder. Se a pessoa amada é marca numa biografia, a memória nunca é arquivo de se fiar; como tudo ela tem fim. A narrativa afinal é também uma inscrição cuja forma é a de postergar esse lapso ou o silêncio que pode tomar corpo e substituir a presença; narrar é uma das maneiras mais complexas e também significativas no grande mapa do não-esquecimento.


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Morreste-me 
José Luís Peixoto
Dublinense, 2015
64p.



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