José Saramago e a necessidade de termos olhos quando outros já os perderam
Por Pedro Fernandes
Toda a obra
de José Saramago é um apelo à visão. Somos um sistema construído pela combinação
de cinco sentidos, mas desses que nos definem, ver talvez seja o mais
importante de todos. Da leitura que fiz de um texto de Alfredo Bosi, espicaçada
no meio de Retratos para a construção do
feminino na prosa de José Saramago (Appris, 2012), disse enquanto comentava
sob o enigma do olhar numa das personagens mais enigmáticas, certamente, da
literatura saramaguiana, Blimunda (de Memorial
do convento), que o olhar tem a vantagem da mobilidade. É fronteira aberta
entre o sujeito e o mundo, pode perscrutar todos os ambientes e movimentações que
estiver ao seu alcance. Pelo olhar é que se distingue, conhece, reconhece, é
que se estabelece a explicação do mundo objetivamente. Enquanto expressão cognitiva
é definidor dos tons da subjetividade: ri ou chora, cala ou denuncia, admira ou
reprova, ama ou detesta. Base de uma plenitude da existência, sem a visão,
dificilmente alcançaríamos o estágio civilizacional que alcançamos.
Ainda para ficarmos no Memorial do convento, romance que projetou o nome do escritor português em seu país e fora dele, o olhar se institui como uma nova gramática de apreensão e compreensão do mundo. É pela ordem da visão que se estrutura entre Sebastiana Maria de Jesus e sua filha Blimunda, enquanto a mãe é condenada pelo Tribunal do Santo Ofício ao degredo, um código capaz de apalpar, como se numa telepatia, a voz de uma e outra. A cena que é narrada pela própria Sebastiana depois de tomar a voz da narrativa é um cruzamento de olhares, do ver excessivo de uma (Blimunda é a que vê por debaixo das coisas) e o ver visionário da outra (a mãe é acusada de prever o futuro); esse diálogo de olhos é a mola para todo o desenvolvimento do romance. Isto porque é do desejo de Sebastiana que o olhar da filha encontre o de Baltazar, um soldado que perdeu a mão na Guerra de Sucessão e foi mandado embora do exército por não ter mais serventia e vagueia entre a multidão que lota o Rossio no interesse de assistir ao espetáculo de horrores da Igreja. E é do encontro de Blimunda com Baltasar que Bartolomeu de Gusmão poderá dar pulso à sua invenção: a passarola, uma máquina de voar.
Ainda para ficarmos no Memorial do convento, romance que projetou o nome do escritor português em seu país e fora dele, o olhar se institui como uma nova gramática de apreensão e compreensão do mundo. É pela ordem da visão que se estrutura entre Sebastiana Maria de Jesus e sua filha Blimunda, enquanto a mãe é condenada pelo Tribunal do Santo Ofício ao degredo, um código capaz de apalpar, como se numa telepatia, a voz de uma e outra. A cena que é narrada pela própria Sebastiana depois de tomar a voz da narrativa é um cruzamento de olhares, do ver excessivo de uma (Blimunda é a que vê por debaixo das coisas) e o ver visionário da outra (a mãe é acusada de prever o futuro); esse diálogo de olhos é a mola para todo o desenvolvimento do romance. Isto porque é do desejo de Sebastiana que o olhar da filha encontre o de Baltazar, um soldado que perdeu a mão na Guerra de Sucessão e foi mandado embora do exército por não ter mais serventia e vagueia entre a multidão que lota o Rossio no interesse de assistir ao espetáculo de horrores da Igreja. E é do encontro de Blimunda com Baltasar que Bartolomeu de Gusmão poderá dar pulso à sua invenção: a passarola, uma máquina de voar.
Agora, além
do papel do olhar como elemento estruturador do romanesco, há outros desígnios para
o gesto de ver o que está por baixo das coisas que é captado pelas ações
desempenhadas por essa personagem ao longo do Memorial do convento; dentre elas, destaco a frustração de Blimunda
quando vai à missa em jejum (seu poder
só tem valia em dado tempo lunar e se estiver com estômago vazio) e não
encontra, certamente por desconfiar do que diz a Igreja aos fiéis, Jesus ou
que seria o corpo dele em glória ressurreto. O olhar é, então metáfora, sobre o
exercício da visão; não somente ver o que está embaixo da superfície do
mundo, mas de decifrar a aparência, ajuizar, testemunhar contra a verdade instituída,
produzir um apelo sobre, indagar-se
sobre os dizeres estabelecidos.
A visão de Blimunda é a que tem a
capacidade de reparar, está,
portanto, para além da exegese do olhar-enxergar. É esse apelo sobre outra visão
o que se constitui a obra e o pensamento crítico de José Saramago; em vários
outros romances, os signos ver/reparar serão retomados – dentre elas, é Raimundo
Silva em História do cerco de Lisboa
quem nos oferece uma compreensão sobre as distinções: “Olhar, ver e reparar são
maneiras distintas de usar o órgão da vista, cada qual com a sua intensidade
própria, até nas degenerações, por exemplo, olhar sem ver, quando uma pessoa se
encontra ensimesmada, situação comum nos antigos romances, ou ver e não dar por
isso, se olhos por cansaço ou fastio se defendem de sobrecargas incómodas. Só o
reparar pode chegar a ser visão plena, quando num ponto determinado ou
sucessivamente a atenção se concentra, o que tanto sucederá por efeito duma
deliberação da vontade quanto por uma espécie de estado sinestésico
involuntário em que o visto solicita ser visto novamente, assim passando de uma
sensação a outra, retendo, arrastando o olhar, como se a imagem tivesse de
produzir-se em dois lugares distintos do cérebro com diferença temporal de um centésimo de
segundo, primeiro o sinal simplificado, depois o desenho rigoroso, a definição nítida,
imperiosa de um grosso puxador de latão amarelo, brilhante, numa porta escura,
envernizada, que subitamente se torna presença ‘absoluta’”.
E mesmo
muito antes de História do cerco de
Lisboa, já em Claraboia, o
segundo romance do escritor só publicado postumamente, assinala-se o debate
entre os termos. Numa das muitas conversas entre Silvestre e Abel, o rapaz,
sentindo-se incômodo para o trabalho do sapateiro, recebe dele uma afirmação
corriqueira – “Isto é coisa que eu já podia fazer de olhos fechados” – o
suficiente para provocar entre eles um debate sobre o ato de ver: “Se o faço
com os olhos abertos, é pela força do hábito [...] E também porque, se os
fechasse, o trabalho levaria mais tempo” – ratifica Silvestre, “[...] Isso
prova que até quando podemos fechar os olhos, os devemos conservar abertos...” E
tudo encontra sua síntese no romance Ensaio
sobre a cegueira, talvez o mais conhecido do escritor por causa, em parte,
da adaptação para o cinema em 2008 pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles.
Nesse
romance, todos os habitantes de um determinado lugar são atingidos por uma
epidemia de cegueira não-convencional: ao invés de caírem numa escuridão, como
é patologia das perdas de visão comuns, as pessoas são acometidas por um
excesso de luminosidade e mergulham num mar branco. Não se trata, portanto, de
uma perda do olhar, mas de uma impossibilidade de enxergar. Essa construção,
uma das mais geniais da literatura universal, não oferece outra saída ao leitor
se não a de interpretá-la como uma metáfora sobre uma condição específica ou um modo específico de ver (para
recuperar as palavras de Claraboia)
que é a perda da percepção produzida pelo excesso de imagem.
Se a metáfora é
uma das mais geniais, a compreensão sobre o tempo a que ela se refere é mais
ainda: Saramago constata outra dimensão daquilo que vimos nos tornando, a perda
muito rápida da capacidade de reagir ao mundo em nossa volta, a incapacidade de
reagir ao sofrimento do outro, de nos tornarmos transparências uns para os
outros. Saramago traduziu ainda todo um paradigma sobre o homem contemporâneo –
padecemos de uma cegueira moral, voluntariamente escolhida e imposta com resignação; dizemos isso pensando na mulher do médico, a que entre todos os tomados pela epidemia não cega. Imune? Não. A mulher do médico, qual Blimunda, é a que não aceita ser o que todos são. A cegueira é ainda o nome para todas as crises que são propagadas pelos do poder: ver
a si, negar a coletividade e os que padecem pela tomada das decisões individuais. Relacionando cegueira e crise encontramos um só nome: chama-se perda da moral.
Tanto é que
a cegueira ao se alastrar pouco a pouco entre todos é responsável por um
estágio de regressão à condição primitiva. Todo aparelho civilizacional
desmorona, uma clara anedota sobre a atual situação porque passa a atual civilização,
enterrando-se cada vez mais para o fim, para o caos, sem perceber que assim o
faz porque já é incapaz de sentir a realidade em sua dimensão “absoluta” ou
porque é incapaz de perceber a existência do outro.
Com Ensaio sobre a cegueira, Saramago avança na compreensão contemporânea
sobre o homem de um modo nunca antes pensado e só refletido pela primeira vez
por George Orwell em 1984 e Aldous
Huxley em Admirável mundo novo. Esses
dois romances oferecem uma visão articulada sobre o estágio de embrutecimento
do homem pela perda das condições de sensibilidade: a visão de Orwell é a antecipação
do Ocidente depois de entregue ao despotismo da dominação simbólica; a de
Huxley uma advertência sobre o levante de uma sociedade consumista e a escravização
voluntária do homem ao seu próprio aparelho social. E José Saramago pela compreensão
do homem entregue à farsa do aparente ou estágio de submissão plena ao excesso
da imagem e ao poder simbólico que ofusca a aproximação entre o eu e o outro. Ou a exegese da indiferença e perda da percepção.
Em entrevista
ao jornal Folha de São Paulo
publicada no dia 27 de janeiro de 1996, Saramago corrobora com que vimos dizendo ao afirma que “vivemos num mundo
que aparentemente nos comunica tudo – por sons, por imagens – mas a verdade é
que nos estamos cegando cada vez mais. É como se o mundo se estivesse tornado
um imenso videoclipe, em que as imagens se sucedem e que no fim a gente não
sabe o que é que aconteceu”.
Mas, a cegueira, ainda assim, não é o fim catastrófico da
humanidade. Pode ser que sim. Mas, não em Saramago. Ela se torna um meio de purgação ou um espaço de tomada
de consciência sobre a condição do fim. O humanismo do escritor o impossibilita
de jogar todas as cartas e não apostar numa ressurreição
do homem pelo homem. A cegueira adquire então a dimensão de uma hecatombe,
um passo de travessia entre um modo e outro de vida, que, afinal, nem poderá
ser outro, poderá ser o mesmo, porque fora do plano da ficção não estamos
lidando com a transformação do indivíduo, mas da coletividade – e uma transformação
coletiva, já vimos, é o mais improvável dos acontecimentos. Teríamos de ser movidos por uma vontade invisível capaz de atingir a todas as consciências assim como acontece em Ensaio sobre a lucidez.
Se há saídas
desse labirinto no ponto onde estamos, não nos é oferecido nenhum mapa, afinal,
não é função da literatura apresentar as respostas que buscamos encontrar. Mas,
Saramago, foi além de nos propor interrogações sobre a cegueira ou nos
apresentar outros sentidos sobre o exercício da visão; oferece-nos uma reflexão
lúcida sobre o nosso tempo e o apelo à visão, que é nisso no que se ajusta sua
literatura. E esse apelo está ao alcance de uma leitura, seja de qual romance
do escritor for, porque cada um deles, é ensaio sobre algum aspecto dos
sentidos humanos e modo diverso de dizer sobre a necessidade de outra forma de ver.
Saramago propôs-nos a formação de
consciências tais como Blimunda (desconfiar de todos os discursos); quis homens
desacomodados dessa posição sedentária que nos tornamos; libertos dessa miopia
ética. Ensaio sobre a cegueira e a
obra saramaguiana inscreve-se, apesar de todo o mal a nossa volta, no âmbito
das possibilidades de descoberta de pertencimento à ordem dos humanos, é alternativa viável à insensibilidade do
homem. A grandeza de Saramago se manifesta ao fazer pela humanidade aquilo que
todos deveriam fazer: engajar-se, que é o mesmo que ruminar sobre aquilo que nos
tornamos enquanto coletividade e não conseguimos realizar enquanto tal.
O apelo da
visão nesse território onde muitos já a perderam é ver o encoberto pelas
ideologias, ver o disfarçado pela história, ver o indivíduo das margens, aquele
que só aparentemente não participa da história, ver a totalidade do mundo.
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