Histórias de livros recusados
Marcel Proust e protagonista do caso de recusa mais famoso de histórias do gênero. O amigo André Gide sequer se deu ao trabalho de ler o primeiro volume de Em busca do tempo perdido e perdeu a chance de estrear uma das obras fundamentais de todos os tempos. |
Era um dia gelado
de 1996 e Tristan Egolf, descalço, tocava um blues acompanhado com violão, na
Pont des Arts de Paris. Uma jovem observou que tinha os pés roxos pelo
frio e o convidou para tomar um café. Tristan, entre outras coisas, lhe contou
que havia escrito um romance; nos Estados Unidos o livro havia sido recusado por
setenta e quatro editoras. A jovem era Zina Modiano, uma das filhas do escritor
galardoado com Prêmio Nobel em 2014, quem depois de ler o manuscrito de Tristan
levou-o ao seu pai, menino mimado da Editora Gallimard, que decidiu publicá-lo.
O livro se
chamava O proprietário do curral
(trad. livre a partir do título em espanhol El
amo del corral) e foi um sucesso no mundo inteiro (Egolf se suicidaria com
um tiro na cabeça em 2005, mas Modiano não tem nada a ver com isso). Dois anos
depois, Camilien Roy, um autor canadense nascido em 1963, publicou A arte de recusar um romance. O livro é
um exercício de estilo muito à Raymond Queneau; nele são compiladas noventa e
nova cartas de editores que, depois de receber o manuscrito de um romance
inédito, escrevem ao autor recusando sua publicação.
Os casos que
conhecemos de recusa editorial são muitos, mas talvez o protótipo seja dado por
André Gide quem recusou a publicação de No
caminho de Swan, o primeiro volume de Em
busca do tempo perdido, de Marcel Proust; Gide trabalhava para a Nouvelle Revue Française e como conhecia
o escritor francês sequer se deu ao trabalho de ler seu livro. “Foi um dos
erros mais graves da NRF e um dos ressentimentos mais agudos de minha vida”,
diria ele em carta a Proust. Ou Ítalo Calvino, então editor da Einaudi que recusou o
manuscrito de O comunista, de Guido
Morselli.“Permita-me
que o diga, eu que conheço esse mundo (...): nem as palavras, nem as atitudes,
nem as posições ideológicas são verdadeiras”.
“Sou único, só um, somente um. Um
só ser, uno em cada instante. Não dois, não três, só um. Só uma vida para
viver, só sessenta minutos em uma hora. Só um par e olhos. Só um cérebro. Sendo
só um ser humano com um só par de olhos e uma só vida por viver, não posso ler
seu manuscrito três ou quatro vezes. Nem sequer uma só vez. Dificilmente se
venderá um exemplar aqui. Dificilmente um. Somente um” – assim escreveu Arthur
Fifield, fundador da editora britânica A C Fifield, a Gertrude Stein depois de
haver recebido um (só um) de seus manuscritos em 1912.
Depois de
ser recusada durante nove anos por diferentes editoras, Eimear McBride, a
autora de A girl is a half-formed thing,
foi no ano passado premiada com o Baileys Women’s Prize, um dos prestigiados prêmios
literários do Reino Unido. Era o seu primeiro romance e muitos editores a
consideravam complicado demais; exceto uma pequena editora independente, a
Galley Beggar Press. Todos são casos bastante comuns: William Burroughs,
Gabriel García Márquez, J. K. Rowling e muitos outros escritores tiveram
finalmente muito êxito, mas inicialmente receberam cartas nem um pouco doces de
recusa de muitos editores.
À semelhança
do caso McBride e dos que acima enumeramos, o diário britânico The
Telegraph copiou algumas recusas célebres:
“Em grande parte é nauseabunda,
inclusive para um freudiano iluminado... é uma espécie de cruz instável entre
uma realidade horrível e uma fantasia improvável. Frequentemente se volta um
sonho com olhos abertos, neurótico e selvagem... Aconselho sepultá-lo debaixo
de uma pedra e deixa-lo aí ao menos por mil anos”. Vladimir Nabokov não sepultou
Lolita e conseguiu publicar o livro
na França em 1955 com The Olympia Press, uma editora especializada em
literatura erótica, depois de durante dois anos o romance ser recusado por
sucessivas editoras estadunidenses (Viking Press, Simon & Schuster, New
Directions, Farrar e Doubleday). A primeira edição saiu nos Estados Unidos três
anos depois.
Mais de duas dezenas de vezes e não fosse a persistência de um casal holandês não existiria o livro de Anne Frank |
“Na minha opinião,
a garota não possui uma especial percepção ou sensibilidade que eleve esse
livro acima do nível de curiosidade”. Esse foi o texto de um dos quinze
editores que consideraram que o Diário de
Anne Frank não valia a pena ser lido. O texto, revisado pelo pai de Anna,
Otto Frank, depois de muitas tentativas inúteis terminou nas mãos do casal de
historiadores holandeses Jean Romein e Annie Romein-Verschoor, que depois de
outras tantas tentativas de encontrar uma editora interessada em publicá-lo, no
dia 3 de abril de 1946, escreveram um breve artigo sobre o Diário na primeira página do jornal Het Parool. Foi quando,
finalmente, a editora Contact, de Amsterdã, resolveu publicar o livro, mas com uma condição,
que fossem suprimidas algumas passagens em que Anna Frank falava sobre sua
sexualidade. O Diário saiu em 25 de
junho de 1947 com o título de A casa de
trás. Diário pessoal de 14 de junho
de 1942 a 1º de agosto de 1944. Teve tiragem de três mil exemplares e o
resto da história todo leitor já sabe.
“Antes de
mais nada, para saber: tem que ser uma baleia? Entendo que seja ótima
ferramenta narrativa, em certos aspectos, inclusive esotérico, mas quiséramos que
o antagonista tivesse um aspecto potencialmente mais popular entre os jovens
leitores”. Isso foi o que disse Peter J. Bentley, editor do selo britânico Bentley
& Son, a Herman Melville, quem de todos os modos tentou um contrato para publicação
do romance em 1851. Moby Dick só foi
publicado dezoito meses depois do previsto. A antagonista segundo Peter ganhou protagonismo universal.
“Digo para
seu bem: não publique este livro”. O
amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence, foi publicado primeiro em Florença,
na Itália, em 1928, e foi logo considerado obsceno por causa das referências
explícitas de caráter sexual e de seu conteúdo (o romance conta a relação entre
uma mulher da burguesia britânica e um homem pertencente à classe operaria). Ninguém
quis publicá-la na Inglaterra, que passava pela época vitoriana, e isso só veio
acontecer em 1960.
Depois de vários livros, o mesmo editor disse para Sylvia Plath que A redoma de vidro não valia a pena ser publicado. |
“Sra. Play tem
familiaridade com as palavras e um olhar atento para as coisas inusuais e os
detalhes vívidos. Mas talvez, agora, se desfaça deste livro, a próxima vez
usará seu talento com mais eficácia. Na dúvida de que alguém queira ler este
livro, poderia ter uma segunda possibilidade”. O editor do selo nova-iorquino Alfred
A. Knopf recusou A redoma de vidro
pela primeira vez em 1963, quando Sylvia Plath apresentou o título com o pseudônimo
de Victoria Lucas. Depois que soube que sua autora era Plath e que já havia publicado
um par de livros de poesia dela, o mesmo editor releu o romance e
enviou-lhe uma segunda carta em que volta a recusá-la. Inclusive, com um detalhe
encantador, conseguiu escrever três vezes o nome da autora, de três maneiras
diferentes, todas equivocadas. Não houve “próxima vez”. Sylvia Plath se
suicidou em 11 de fevereiro de 1963, seis semanas antes de ser publicado seu
livro.
“Se me permite ser sincera, Sr. Hemingway – você, sem dúvida é na sua prosa – achei seu livro ao mesmo tempo chato e ofensivo. Você é seguramente um ‘verdadeiro homem’, não é assim? Não me surpreenderia que escreveu toda a história trancando num clube, com o lápis numa mão e um copo de brandy na outra”. O sol também se levanta foi o primeiro romance que Ernest Hemingway publicou em Nova York, em 1926, e em Londres no ano seguinte. Mas foi com essas palavras que Moberleu Luger, da editora Peacock & Peacock, recusou em 1925, sua publicação.
T. S. Eliot recusou publicar Revolução dos bichos, de George Orwell |
“Estamos de
acordo que é uma destacada obra literária: a fábula está construída com grande
habilidade e a narrativa mantém sempre o interesse do leitor, algo que poucos
autores conseguiram desde Gulliver. Não estamos convencidos de que seja o ponto
de vista correto criticar a situação política neste momento. É obrigação de
qualquer editora que tem interesse e motivos diversos dos meramente comerciais
publicar livros que vão contra a corrente do momento. (...) Depois de tudo,
seus porcos são mais inteligentes que os demais animais e, portanto, estão mais
capacitados para dirigir a fazenda – de fato, não haveria existido uma fazenda
dos animais sem eles: de modo que o necessário (poderia acusar alguém) não era
mais comunismo, se não mais porcos impulsionados pelo civismo. Sinto muito,
porque qualquer um publique este livro terá, naturalmente, a possibilidade de
publicar tua obra futuramente”. Revolução
dos bichos, de George Orwell vendeu mais de 20 mil exemplares quando foi
publicado, em agosto de 1945, mas antes, em 1944, foi recusada pela prestigiada
editora Faber & Faber, e por ninguém menos que T. S. Eliot, grande
escritor, ensaísta, poeta, mas péssimo editor. A carta da recusa foi publica no
Times em 1969, depois da morte dos
dois envolvidos nessa história na seção “Cartas ao editor” – material enviado
ao jornal pela companheira de Eliot, Valerie.
Sim, nada é fácil para ninguém.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma tradução livro para "Rechazo editorial", de Guillermo Piro publicado no site Perfil.
Comentários