Eduardo Galeano como leitura de aeroporto
Por Alfredo
Monte
«Para muitos jornalistas estrangeiros, a
Bolívia é um país ingovernável, incompreensível, intratável, inviável. São os
que se enganaram de in: deveriam confessar que a Bolívia, para eles, é um país
invisível...»
(26 de
janeiro)
«...os
militantes que matam para castigar a divergência são tão criminosos quanto os
militares que matam para perpetuar a injustiça...»
(10 de maio)
Os filhos dos dias foi um dos últimos livros
de Eduardo Galeano (1940-2015), belo experimento da imaginação do prosador
uruguaio ao explorar a forma adotada pelo calendário (e que nos aprisiona em
sua teia), legada pelos romanos e aperfeiçoada pela cristandade: «A data foi
inventada por Roma, a Roma imperial, e abençoada pela Roma vaticana...»1.
Na verdade, ao abordar a “data universal” (no sentido de confraternização dos
povos), primeiro de janeiro, ele a ironiza como invenção de uma civilização
vencedora e que escreveu, até certo ponto, a História Oficial, prática ainda adotada
(em contrapartida, a epígrafe do livro, que justifica o título, é retirada de
uma civilização vencida, a dos maias).
Através de faits divers,
caleidoscopicamente indo e vindo no tempo e na geografia, esse
livro-calendário-almanaque-miscelânea fala de vencidos, fuzilados, executados,
exilados, muitas vezes silenciados (a língua e a memória de seu povo extintas),
em contraste com o discurso oficial («Não
acreditem em nada até que seja oficialmente desmentido») daqueles que dominam o
mundo, que exploram o trabalho, que destroem o meio-ambiente («O mundo diminui
quando perde seus humanos dizeres, da mesma forma que encolhe quando perde a
diversidade de suas plantas e bichos»), em nome de “ideais” como progresso e
desenvolvimento, sempre invocando motivações filantrópicas ou religiosas
(combater o atraso, a superstição, a barbárie, a ignorância)2,
muitas vezes ocultando um racismo irrefreável.
Essa feição do livro se adequa bem à
realidade contingente que vivemos e até à Babel de informações que consumimos.
A linha de força, que faz da errância e da diversidade uma unidade, um “canto
geral” (para evocar o poema-livro de Neruda) é o amor ao telúrico, à força da
terra3, congregando os demais elementos (água, vento), mesmo que por
ela transitem as levas incessantes de irracionalidade, invasões, expropriações,
conspurcações, os frutos do colonialismo e do imperialismo, «a ditadura
universal dos banqueiros e dos guerreiros».
Nem sempre uma data do calendário galeano tem
um fato concreto efetivamente ligado a ela, em termos “históricos”, vejamos por
exemplo o 29 de abril:
«Quem
conhece e reconhece os atalhos da selva africana?
Quem sabe
evitar a perigosa vizinhança dos caçadores de marfim e outras feras inimigas?
Quem
reconhece as pegadas próprias e alheias?
Quem guarda
a memória de todas e de todos?
Quem emite
esses sinais que nós, humanos, não sabemos escutar nem decifrar?
Esses sinais
que alarmam ou ajudam ou ameaçam ou saúdam a mais de vinte quilômetros de
distância?
É ela, a
elefante maior. A mais velha, a mais sábia. A que caminha à cabeça da manada.»4
Datas “abstratas”, aquelas que nos fazem
sorrir quando sabemos da sua existência no calendário oficial, suscitam ora
textos mais digressivos (quase manifestos), ora mais narrativos,
vidas-exemplos.
No primeiro caso, temos o 28 de abril, Dia
da Segurança no Trabalho:
«A falta de
segurança pública é o tema preferido dos políticos que desatam a histeria
coletiva para ganhar eleições. Perigo, perigo, proclamam: em cada esquina um
ladrão ameaça, ou um violador, ou um assassino. Mas esses políticos jamais
denunciam que trabalhar é perigoso [...] a cada quinze segundos morre um
operário, assassinado por isso que chamam de acidente de trabalho...»
No segundo, o 30 de março, Dia do Serviço
Doméstico, por causa do qual conhecemos a história de Maruja:
«De seus
anos de antes, nada contava. De seus anos de depois, nada esperava.
Não era
bonita, nem feia, nem mais nem menos.
Caminhava
arrastando os pés, empunhando o espanador, ou a vassoura, ou a caçarola [...]
Havia
trabalhado em casas alheias desde que tinha memória.
Nunca havia
saído da cidade de Lima...»
Particularmente saborosas são as datas
inexatas, “supostas”, quando então lemos (como em 25 de março), «Em algum dia
como hoje, dia mais, dia menos», afinal o calendário também é movente, existe
até o 29 de fevereiro, tão arredio e estranho: «Mas esse dia não teve nada de
estranho em Hollywood, em 1940. Com toda normalidade, em 29 de fevereiro
Hollywood outorgou quase todos os seus prêmios a O vento levou, que era um longo
suspiro de nostalgia pelos bons tempos da escravidão perdida».
E outro 29, o de janeiro, toma quase a forma
de um lapidar haicai, para homenagear o nascimento do mestre Anton Tchekhov:
«Escreveu
como quem não diz nada.
E disse tudo»
Nessa nebulosa tempo-espaço, há um
considerável pedaço brasileiro, onde desfilam o cabo Anselmo, que delatou a
própria esposa, Soledad, entre outros, para o regime militar nos anos 1970,
Chiquinha Gonzaga, a “desguiada” (segundo seu próprio pai) que «inaugurou a
história do carnaval carioca» com Ó abre alas, Noel Rosa, com sua cerveja, sua
cachaça e sua genialidade, o desditoso Bispo Sardinha, refeição dos Caetés, além
de várias libertárias, muitas delas escravas fugitivas e líderes quilombolas.
De quebra, um curioso episódio de costumes e manifestação popular, ocorrido em
Sorocaba, em 8 de fevereiro:
«Em plena
ditadura militar, uma ordem judicial havia proibido os beijos que atentavam
contra a moral pública. A sentença do juiz Manuel Moralles, que castigava esses
beijos com cadeia, os descrevia assim:
Beijos há
que são libidinosos e, portanto, obscenos, como o beijo no pescoço, nas partes
pudendas etc., e como o beijo cinematográfico, em que as mucosas labiais se
unem numa insofismável expansão de sensualidade.
A cidade
respondeu se transformando num grande beijódromo. Nunca ninguém se beijou tanto. A proibição multiplicou a vontade, e teve
muita gente que só de curiosidade quis conhecer o gosto do beijo insofismável».
Para concluir esse meu pequeno comentário,
uma anedota pessoal: em maio de 2013, estava eu no aeroporto de Fortaleza,
esperando para embarcar no voo para João Pessoa. Todos conhecemos esses micro-calendários
visguentos da vida cotidiana que são os horários, e a espera em torno deles.
Por conta do intervalo de tempo até o embarque, eu, um filho dos dias como
qualquer outro, constatei mais uma vez a desolação que é uma livraria de
aeroporto, viveiro de títulos óbvios e desinteressantes. Mas perdido ali, entre
eles, o de Galeano, autor prolífico que eu pouco lera, embora As veias abertas
da América Latina tivesse marcado meu final de adolescência, como fez com tanta
gente, aliás. O formato me encantou sobremaneira (por ser ideal para passar o
tempo), e fui fisgado pelo que li, naquele momento, como amostra, o dia 13 de
fevereiro — e é com ele que encerro:
«No ano de
2008, Miguel López Rocha, que estava brincando nos arredores da cidade mexicana
de Guadalajara, escorregou e caiu no rio Santiago.
Miguel tinha
oito anos de idade.
Não morreu afogado.
Morreu
envenenado.
O rio contém
arsênico, ácido sulfúrico, mercúrio-cromo, chumbo e furano, jogados em suas
águas pela Aventis, Bayer, IBM, Nestlé, Dupont, Xerox, United Plastics,
Celanese e outras empresas, que em seus países estão proibidas de fazer esse
tipo de doação».
Notas
1 Em
todas as citações, utilizo a tradução de Eric Nepomuceno, publicada pela
L&PM em 2012. O título original é Los hijos de los días.
2
Como a perseguição ao vodu haitiano:
«A igreja
católica, onde não faltam fiéis capazes de vender unhas de santos e plumas do Arcanjo
Gabriel, conseguiu que essa superstição fosse legalmente proibida no Haiti
[...] Nos últimos tempos, o combate contra a superstição corre por conta das
seitas evangélicas. As seitas vêm do país de Pat Robertson: um país que não tem
13º. Andar em seus edifícios nem fileira 13 em seus aviões, e onde são maioria
os civilizados que acreditam que Deus fabricou o mundo em uma semana».
E olhem que trecho bonito, comentando a
divindade como encarada pelos “primitivos” do Havaí:
«...aqueles
primitivos acreditavam que a água, mãe de todas as vidas, era sagrada, mas não
se ajoelhavam nem se inclinavam diante de sua divindade. Sobre o mar
caminhavam, em comunhão com sua energia».
3
«...a lei da gravidade, essa irresistível força de atração da terra que nos
chama, e nos chamando nos recorda nossa origem e nosso destino».
Em contrapartida:
«... a
empresa Texaco cagou sobre a selva equatoriana setenta e sete bilhões de litros
de veneno. Os indígenas não conheciam a palavra contaminação. Ficaram
conhecendo quando os peixes desandaram a morrer nos rios de barriga para cima,
as lagoas ficaram salgadas, as árvores secaram na beira d´água, os animais
começaram a fugir, a terra deixou de dar frutos e as pessoas passaram a nascer
doentes».
4
Outro exemplo, o 12 de fevereiro, em que se narram o embarque de centenas de
chinesas para Pequim:
«Em Pequim,
todas darão de mamar a bebês alheios.
Essas vacas
leiteiras serão bem pagas e bem alimentadas.
Enquanto
isso, muito longe de Pequim, nas aldeias de Sichuan, seus bebês serão
alimentados com leite em pó.
Todas dizem
que fazem o que fazem por eles para poder pagar a eles uma boa educação. »
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