Catálogo maçante das coisas comuns, de José de Paiva Rebouças
Por Pedro Fernandes
Aos olhos do
leitor comum pode ser que um título como Catálogo
maçante das coisas comuns não alcance a curiosidade suficiente de instigá-lo
a leitura. Mas, é de se perguntar que título faria a atenção imediata do leitor
comum. Convergência (Murilo Mendes), A rosa do povo (Carlos Drummond de
Andrade), Poemas negros (Jorge de
Lima), Coral (Sophia de Mello Breyner
Andresen), A duração do deserto (Nina
Rizzi), Cidade íntima (Leontino
Filho) – para citar pequeno conjunto de bons poetas e de bons títulos que têm
em comum a natureza de não produzir movimento que seja na curiosidade do leitor
comum sobre a natureza de seu conteúdo.
No meu caso, também de leitor comum,
mas daquele que tem o mínimo de curiosidade sobre as coisas comuns, deixo me
guiar, diante desses títulos, primeiro pela dificuldade de se dar nome a tudo,
depois, abrir-me em indagação sobre o porquê dos nomes, antes do porquê do
nomeado. De modo que, se o título não se mostra como um convite ao conteúdo, me
provoca ao menos a inquietação de compreender por que este e não outro. Veja
bem: não é o caso de se perguntar ao poeta por qual razão dispôs esse nome e
não outro. A resposta dele valerá alguma coisa certamente porque temo não haver
quem melhor possa dizer sobre seu trabalho que quem o faz.
Mas, como leitor, o
que sempre temos ao alcance, além do nome, é a própria obra. E é ela quem deve
responder por que este nome e não outro. Sim, sempre pode ser outro. E se fosse
outro chamaria melhor a atenção do leitor comum? Parece-me que não. Talvez o
único nome que melhor chame atenção é aquele que os pais dão aos seus filhos:
uma vez pronunciado, cumpridor do papel de dizer, ao menos num plano, quem
somos, o nome próprio tem, dentre outras funções, chamar atenção. O mesmo, não
discordo, pode acontecer com o livro. Mas, sempre esse papel de chamar atenção
vem por outra via cuja responsabilidade não reside apenas no nome, mas na
curiosidade do leitor em ir além do que diz a capa da obra.
Então, o que
compreenderíamos por um título que não oferece ao leitor nenhuma perspectiva de
seu conteúdo? Uma e outra vez os nomes carregam apostos para dizer a que se
referem. Por exemplo: Catálogo maçante
das coisas comuns (poesia). Mas não é o caso do título que tenho comigo. Só
terei chance de saber que estou diante de um conjunto de poemas se me disponho
a abrir o livro e deixar cair o olho sobre versos como: “nosferatu /
lagarteando a gilete: / a gosma verde / a goma-laca / e a cortante sensação de
frio. / aquela constante sensação de frio e morte, / aquela sensação passada /
dos pesinhos pequenos / e da gilete fincada.” (do fragmento 10 de um poema,
posso assim dizê-lo, cujo título é “O homem”).
Sim, não é suficiente ver a
palavra disposta no papel sob a forma de verso ou não para dizer que estamos
diante de um poema. Um poema não é apenas uma catedral de palavras; é uma
construção arquitetônica provocadora de algum espasmo naquele que não apenas
observa, mas lê. E ler não somente debulhar palavras, desfiá-las uma após outra
até erguer qualquer sentido. Ler é uma atividade tátil; uma aproximação
sensível a um mundo que é fora e dentro de nós. E, sobretudo, quando estou
diante do poema. Não é o caso de torná-lo ao topo da torre de marfim, nem de
deixá-lo correr a esmo nas ruas: o poema tem um tempo e um lugar próprio e só
está ao alcance de toda a gente se ela se dispuser jogar seu jogo e para tanto
é necessário estar disponível, exercitar suas papilas sensitivas sobre a existência.
Essa habilidade, digo, é a que permite dizer, sem olhar para a técnica, apenas
para o escrito e ver qualquer coisa que lhe move do posto comum. Este mover-se
é a forma de primeiro escutar aquela voz que chama atenção para o nome dado a obra.
Não é coisa simples.
E por ter um tempo muito próprio, muito distanciado desse tempo paralítico que
vimos construindo, tempo dado ao escândalo, ao exercício do nonsense, de
nulidade sobre o visível e o invisível, de consciência reduzida a um grão de
mostarda, é que a poesia se faz escassa. Sobram títulos mimosos; aqueles que
chegam abertamente floridos e chamando atenção para no impulso nos enganar que
estamos diante de um poema. Geralmente são textos água-com-açúcar que circulam
na mídia marrom e deixa em que os lê um frisson de momento ou, para dizer com
as palavras nossas, um abestalhamento instantâneo. Poesia não é dom e teremos
confundido e muito a capacidade de êxtase poético com a de efeito fugaz.
Estaremos, mesmo imersos na idiotização do mundo superdotados de nova
sensibilidade – noutras palavras, estaremos mais sensíveis? Não, estamos mais
impulsivos, logo, mais incapazes de discernir a marca do êxtase e a do prazer.
Não é à toa, estamos presos a um mundo cada vez mais armado da sombra negra do
bestial. Nunca a poesia haverá de comungar com isso.
Esse tempo
outro do poema não é, como tenho desenvolvido aqui, apenas outro para o leitor
– essa figura cada vez mais em extinção. Sim, temos escreventes demais e
bajuladores em igual proporção enquanto espírito crítico (ou o bom leitor)
arqueja à beira do necrotério. O poeta não se faz com meia-dúzia doce de
espanto e a menor parte disso de palavrório ou de expressão espasmática. Se o
tempo da poesia é outro, o do poeta é também esse outro, porque é insuficiente
redigir um verso que seja – versejar, qualquer bêbado verseja – sem que se
integre poeta e poema. O poeta é o que desenha
o êxtase. E para tanto tem de levar a palavra ao último instante. Dilatá-la, fazê-la
ser outra sendo a mesma e deixá-la ao sabor do tempo a ver se não lhe foge todo
encanto. O poema é instrumento afiado para romper em corte contínuo a ferrugem
do tempo. Nenhum crítico é ou tem vocação para dizer o quanto dura uma obra;
nem mesmo o poeta. É por isso que o poeta deve ter o cuidado de, ao criar os
primeiros laivos de sua voz ingressar, num trabalho contínuo e persistente,
outros traços até acreditar-se e fazer acreditar tê-la tornado esse instrumento
afiado; o trabalho com a palavra pede dedicação e tempo.
Evidente que
tenho uma relação muito particular com o poema porque tenho para com ela mais
olhos do leitor comum que os do leitor perspicaz. Com esse título de José de
Paiva já, antes de publicado, premiado, tenho também uma aproximação
privilegiada que outros leitores não tiveram: a oportunidade de, ainda na sua
gênese, quando o título talvez não tivesse se apresentado ao poeta, ouvir os
versos numa leitura aos mais achegados. E naquela ocasião suspeitei estar
diante de um trabalho sério e não apenas um passatempo desinteressado com a
palavra. Entre a ocasião do livro e a da audição há uma distância
significativa, o que só corrobora, primeiro, com aquilo que expressei naquela
ocasião do passado e no entendimento do qual há algum tempo tenho comungado:
nenhum poema é suficiente se não provar ao seu primeiro leitor (o poeta e os
mais achegados) que ele resiste. Se ele sucumbir nessa brevidade talvez nem
fosse justo gastar papel colocando-o na correnteza extensa de outras vozes ou
ao alcance do universo diverso de leitores.
Catálogo maçante das coisas comuns é a
primeira antologia de poemas escrita por José de Paiva Rebouças, escritor que
mais terá se apresentado como cronista (possivelmente pelo vínculo que mantém
com o Jornalismo) e como contista – dos dois gêneros já conhecido por dois
títulos, as antologias Da amizade sincera
de um urubu e Cruviana,
respectivamente. Um catálogo está entre a brevidade e a extensividade de
numeração de coisas; nesse caso, o poeta terá preferido, atento ao espírito da
forma poética, pela primeira linha, isto é, pela brevidade.
Alguns lerão de
outra maneira, mas o li como um conjunto de 7 longos poemas divididos em partes,
mas, lutando para manter entre elas uma contiguidade, o que daria ao livro não
7, mas 1 poema apenas amarrado pelo título já enunciado. Apresento-o assim para
que o leitor veja, primeiro, na forma, como se processa o trabalho de feitura
do poema, depois, que, um livro de poesia cada vez mais tem se desapegado da
ideia de ser uma coletânea com poemas esparsos, para ser uma unidade estruturada
e trabalhada pelo poeta.
Nesse sentido, o poeta não escapa ser alguém que tem
pela palavra, assim como o pintor tem nas tintas, ou o escultor na madeira ou
na pedra, o seu material de criação; a palavra é seu artefato. E, por vezes, a
palavra ocupa o centro de interesse do poeta. Por mais que se diga ser a
metapoesia já um modismo sem força desde o ápice de seu uso na modernidade,
nunca devemos esquecer que o poeta apartado da relação com aquela força divina
só dispõe agora da palavra como matéria de criação e ela seu demônio a que está
o criador submisso nunca será capaz de, como ingenuamente creem esses do desuso
da metapoesia, por exemplo, afastar-se o suficiente para dizer ser o poema
força fora do signo linguístico. A corrente de novidade a que se filia esse
primeiro poema “A palavra” não é a de louvação da palavra, mas a de aproximação
pela via da suspeita ou tratamento dela como objeto de dizer e como forma em
constante impasse entre a forma diversa de manifestação, entre a oralidade e a
escrita. Essa linha colocada logo à abertura do livro se infiltra ao longo de
todo o catálogo.
Depois, é ao
homem a quem se dirige o poeta. Homem forma animal e criadora. Homem dotado do
poder de verbalizar o mundo e, logo, de fazer com que tudo o que existe ganhe
algum sentido ou se componha na realidade. Tem princípio assim, uma estreita relação
com o epílogo designador da criação: no princípio era o verbo e o verbo se fez
carne. Se a palavra é o princípio do mundo, o mundo tal como conhecemos só é
possível pela capacidade designativa e articulatória alcançada pelo homem. É um
jogo dialético essa condenação palavra-homem-mundo: “homem é uma palavra /
substantivada pelo próprio / homem na incapacidade / de auto-verbalização. //
arranque do homem / um de seus membros / e ele se dirá inválido. // arranque do
homem / sua espinha dorsal / e ele não passará / de um saco de vísceras /
ocupando o chão.” Sim, talvez necessitemos de, com certa urgência, um retorno à
possibilidade cada vez mais distanciada de dialogarmos com a dorsal da
existência. Mesmo sendo a palavra artefato ideológico e ainda que não seja
resposta sobre o mundo é por ela que alcançamos a sombra do fluxo homem-mundo,
homem-homem porque é por ela que somos capacitados a pensar sobre aquilo que
nos cerca e aquilo que fomos, somos ou podemos ainda ser: alheio a essa
possibilidade estaremos condenados à forma modelar do poder cerceador. Há,
portanto, nessa condição um apelo aos sentidos, força da qual se nutre toda literatura
e cuja presença está em toda parte nesse livro; seja em provocar o leitor ao
desconforto como nos primeiros versos que citei nessa intervenção, seja em
acutilar a consciência sobre um distanciamento perigoso entre eu-mundo.
De modo que,
o poeta pensa na forma mais simples, ou no retorno ao lugar de uma relação mais
pura homem-mundo quando funde os dois segmentos com que abre seu livro numa
única palavra: “Homempalavra”. Seguido de “elegia tardia a antônio de zé de
chico”. O termo preenche ainda a posição de outro elemento essencial ao poeta:
o da convivência com seus afetos ou com aquelas vozes que lhe dão substância
para carnadura da poesia.
E mais ainda: introduz o tema, muito possivelmente, a
que pertence esse catálogo, o de servir
de entrada a uma trilogia que o poeta designa como “trilogia do homem do
segundo corpo”. Nesse momento somos tomados pela cor de seu mundo – o da vida
desvalida ou o da vida em seu estado mais puro, porque ao homem ainda não foi
dada a malícia ferina com que tem se portado nos tempos fugidios do capital.
Nessa ocasião é quando se abre um olhar singular sobre o esforço daqueles cuja
existência justifica-se nela mesma e são, destituídos da palavra desenhada no
papel, colocados à margem do grande mundo dito civilizado. E na verdade, nunca
devemos esquecer, esses homens assim são quem melhor exercita-se no uso da
palavra. Zé de Chico é figura de afetos da voz poética, mas é metonímia, sobre
aqueles cuja memória se perde na degenerescência dos valores que antes diziam o
homem que somos. Aqui, o homem na sua simplicidade tem pelo uso da palavra uma dimensão
simbólica mais aguda que a palavra tornada língua de praticidades.
A única
forma de liberdade parece ser aquela cuja malícia não torrou a inocência. Já
possuidor da capacidade de compreender o mundo como forma que se constrói pelo
verbo, o homem perdeu-se de sua natureza de homem e tornou-se escravo dele
mesmo. E não há maneira de sair desse labirinto. Nem mesmo poeta, este que se
destaca do homem e modela existências pela palavra. O poeta estará submetido à
palavra: “os humanos nascem livres. / menos os escravos das palavras / que
vivem para palavrear / e para lavrar a palavra”. Preso não apenas à palavra, o
poeta está preso aos outros poetas. Aqueles que antecedem e os seus
contemporâneos é força e distanciamento na moldura de sua própria voz. É com
essa expressão que nunca será suficiente apenas dizer-se poeta sem ser um
leitor obstinado de poesia. Através desse convívio é que se modela a singularidade
de toda poesia. Tire isso e o poeta estará condenado à solidão mais absurda, à
insensatez, à repetição desnecessária dos dizeres e ao esquecimento.
Nesse jogo,
outra dialética tal como a relação homem-mundo/homem-palavra, é que se forja,
toda possibilidade de avivar a voz do antepassado ou do contemporâneo e
tonificar sua própria voz. Catálogo
maçante das coisas comuns não foge desse lugar: mas elege não muitas mas
poucas vozes – a de Leontino Filho e a de Anchieta Rolim. Com um a aproximação
é dada pela reapropriação da matéria poética; com o outro pelo diálogo,
introduzindo, dessa maneira, um termo muito caro ao poema. Sabemos que o termo
assim utilizado só cumpre sentido para demarcar a posição da voz enunciadora; o
poeta ainda é o sujeito dotado da capacidade de ter para si a fala do outro. Na conversa imaginária
(que nada impede ter nascido de uma conversa real) que tece com o artista plástico, o poema se forma não como
ressignificação da imagem, mas da vivência; nesse sentido parece-me que a
relação tecida nos cantos leontínicos se mostra melhor elaborada. Isso porque
quando a vivência se mostra no poema ela deve ser trabalhada ao limite da despersonalização
e da desistoricização. Ainda assim, não é possível fazer vista grossa para versos
como: “queria que estivéssemos na praia olhando o sol acender / o mar, fumando
aquele cigarro que enrolamos nos dedos. é / densa a fumaça do poeta, mas fria é
a noite que sempre engole / tudo que tem
dentro. // com sorte, um dia, nos engula também e não teremos mais que pensar
em nada.”
Permitam-me
um retorno ao início do desenvolvimento dessa leitura cujo interesse é apenas o
de ser um conjunto de notas para compreender as razões desse título apresentado
como um destituído do interesse de ser um chamativo de atenção do leitor. É
preciso voltar a complexa relação pragmática entre a linguagem literária e a
linguagem cotidiana para compreender que a poesia nos afeta por outra via que a
via do imediato. É de sua natureza a sutilidade, a criação; ela retira da
linguagem cotidiana seu alimento e impõe outros e melhores sentidos. E todo
poeta deve ter essa compreensão.
José de
Paiva Rebouças, ao que parece, demonstra isso. Não faz poesia para agradar uma
grande massa porque, além do claro e seguro exercício que desenvolve ao longo
desse itinerário esquece de se deter em temas fadados ao fracasso quando nos
referimos ao campo do poético. O que esse título chega a propor é a necessidade
de o leitor se imiscuir do mesmo esforço laboral do poeta a fim de alcançar o
êxtase da poesia. Poder ser uma travessia maçante, mas toda travessia é
literária não se dá por outra via. O facilitismo, essa onda que tem tomado
conta de determinadas escritas, é um desrespeito a capacidade do leitor. O
cuidado necessário com a palavra, bem praticado nesse catálogo, certamente vai
em via oposta ao do modismo e pelo esforço que poderá produzir no leitor o
levará trazer consigo alguns dos versos aí dispostos.
A meu ver não há nada
mais significativo que isso: o verdadeiro poema é aquele que lhe marca de
alguma forma e não aquele produtor de sensações momentâneas. A proposta poética
do título é plenamente alcançada: na forma numerada e ao trazer para o centro
do poema nada fora da ambiência do leitor ao mesmo tempo que lhe exige certa
dedicação para o material que tem à sua frente. Isto é, é um catálogo, de fato,
feito de coisas comuns, mas com o interesse de ser duradouras. Desconheço na
poesia potiguar, tão cheia de bons nomes, um cujo trabalho alcance a dimensão a
que se propõe José de Paiva. Tomara não se desvirtue desse caminho; é o medo
que faz quando um poeta nasce tão bem.
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