Camila e o sagrado profano da literatura
Por Rafael Kafka
Assim como os romances de Clarice Lispector, Nome Próprio,
filme de Murilo Salles, debruça-se em uma narrativa que discorre sobre a
linguagem literária e suas implicâncias ontológicas. O próprio modo como a
história é narrada, começando em uma cena de briga repentinamente mostrada,
remete à autora de Paixão Segundo GH. Assim como as heroínas lispectorianas,
Camila, a protagonista desse belo filme nacional, debruça-se sobre o escrever
de corpo e alma, entregando-se à escrita enquanto reflete sobre o seu fazer
poético e na busca por si mesma que se mostra em cada ato de escrita.
Blogueira
e aspirante à escritora de um livro, Camila escreve sobre suas experiências, em
especial as amorosas e sexuais, procurando a cada momento entender-se enquanto
ser. Nada se sabe sobre seu passado histórico, mas podemos perceber que a
personagem é cheia de conflitos amorosos causados por uma impetuosa e imprudente,
o que a leva a transar na praia após um quase afogamento com o namorado de uma
grande amiga, tendo a tal amiga como espectadora de todo o ato, namorado esse
que era o salvador da intrépida escritora que, como em um gesto de sacralização
do real para torná-lo digno de literatura, não se importa de ferir sua amiga
muito menos o amor intenso de então, um francês de sêmen doce, apenas para
obter prazer e material para lamúrias e escrita.
Na
maior parte do filme, veremos Camila isolada ou em alguma cena de envolvimento
fugaz com algum homem. Tais cenas, poderiam ter sido melhor utilizadas para
explorar a questão da condição feminina, mas ainda assim vemos uma personagem
que parece entregue à vida, sem forças para controlar seus rumos e que usa a
escrita como consolo. Ao final, após tantos traumas, conflitos e desgraças,
Camila solta um gesto de estoicismo dizendo que por mais que as desgraças
ocorram ela seguirá se levantando, em um desfecho que lembra Noites de Cabíria
sem todo o ar otimista posto no filme de Fellini.
Camila
representa o tradicional escritor maldito, aquele que vê na literatura uma
transposição da vida real, uma forma de complementar essa existência que não se
basta. Esse tipo de escritor foi analisado por Sartre em seu O que é a
literatura? como não sendo alguém realmente revoltado, mas implantado dentro de
um seio burguês do qual não consegue se libertar, seja por inaptidão, seja pelo
desejo de fazer o papel de ovelha negra mesmo. Camila é uma personagem
completamente fechada em si, egotista, e isso se percebe pelo seu comportamento
autodestrutivo, que leva junto amantes e amigos, e pela filmagem que ignora os
locais mais conhecidos de duas cidades, São Paulo e Rio, para mostrar como a
personagem apenas consegue olhar para si e para o grande mar de pensamentos que
a corrói.
Tal
recurso de foco obsessivo me lembra demais o que é visto no narrador-câmera de Benjamin,
novela de Chico Buarque que rodeia as peripécias de um homem comum que de tão
fixado pela beleza de um antigo amor jura revê-lo em uma nova mulher. Ao redor,
vemos ecos da ditadura militar que é ignorada pelo olhar que se fecha em si e
em seu objeto de desejo, procurando a cada esquina e fresta da cidade do Rio o
reflexo concretizado do antigo objeto de amor.
Camila
está cheia de si mesma no duplo sentido de quem vivencia um profundo cansaço
existencial e de quem se sente demais existindo. Pela escrita, ela encontra
rapidamente a paz de quem se vê posto no papel, tornada ser concreto, e por isso
mesmo tem algo similar um sentimento catártico. Todavia, Camila sofre pelo fato
de que a linguagem é algo aberto em sentido e a linguagem literária parece
brincar com isso. O que faz com ela nunca encontre a possibilidade de se
encontrar por meio da literatura.
*
Estava
a ler agora há pouco uma entrevista de uma escritora chilena para o jornal
Rascunho. A escritora em questão se chama Lina Meluane e produziu um livro
chegado ao Brasil agora com o título de Sangue no Olho, que pela resenha me
remeteu ao Ensaio sobre a Cegueira, de
Saramago. Em dado momento, a autora fala, em resposta a uma pergunta sobre como
a literatura pode ajudar os leitores, que o fazer literário não tem obrigação
de dar respostas. A leitura e o escrever literatura geram mais perguntas do que
respostas sempre. Isso me remete a textos de Barthes e de Ricouer que afirma
bem como a literatura é, acima de tudo, provocação. O enredo de um romance, em
especial, é algo que prova reflexão, choque, surpresa, perguntas. A literatura,
feliz ou infelizmente, não tem obrigação de dar resposta alguma.
Isso se
deve a seu caráter aberto, tão bem mostrado por Umberto Eco nos mais diversos
ensaios de seu livro Obra Aberta. O autor afirma que todo texto é mais ou menos
aberto, pois uma mensagem simples como a hora de chegada de um trem pode ter para
dois sujeitos dois sentidos diferentes, como a ansiedade diante de uma espera
querida ou a expectativa diante de uma viagem a ser feita. Quando a literatura
entra em questão, esse efeito de abertura se torna maior devido à linguagem
metafórica da mesma e suas diversas camadas de sentido.
Na
literatura do século XX, as coisas se tornam ainda mais complexas, pois
diversos autores, em especial os inspirados em Kafka e os realistas mágicos, em
especial, começam a explorar essa ambiguidade literária propositadamente. Não à
toa, Cortázar escreve um romance chamado O Jogo da Amarelinha que permite
múltiplas leituras e Mario Vargas Llosa cria histórias com diversos planos
narrativos a serem unidos como quebra-cabeças interpretativos. A forma de
escrever tem como intuito provocar no leitor a experiência de fragmentação da
realidade, mostrar como o mundo deixou de ser algo “heliocêntrico” e racional
para se tornar múltiplo em suas perspectivas, algo bem visto nos poemas de TS
Eliot. A resposta dada por esses autores, se é que se pode falar em resposta
dada, é justamente uma série de questionamentos voltados para uma realidade
absurda e magicamente retratada, cheia de mistérios à luz do dia. A perspectiva
de mundo se torna plural e por isso mesmo estamos diante de um caos
paralisante.
Parece
que os autores e teóricos do século XX, boa parte deles pelo menos, entenderam
bem que a realidade não é algo uno e que as palavras nunca darão respostas
precisas justamente porque elas estão além e aquém das coisas. Os autores sabem da
incapacidade de atingirem o núcleo do real com a linguagem verbal, mas
desdobram a linguagem assim mesmo com o intuito de provocar no leitor sensações
vertiginosas de angústia, confusão e prazer. A literatura no século passado foi
dessacralizada, deixou de ser uma espécie de linguagem profética por meio da
estética para se tornar técnica de pessoas as quais querem falar o que sentem,
pensam e vivem, sem o intuito de procurar respostas prontas ou ensinamentos
acabados para seus leitores. Não à toa, Mário de Andrade funda e destrói o
desvairismo no mesmo texto por sua falta de ambição de ter discípulos que o
visse como ser coisificado e a ser imitado. Mário era um escritor provocador e
não tinha a menor ambição em ser um guru.
Camila
sofre por essa ambiguidade do real. O seu sofrimento me fez pensar na Clarice
ser humano, que se entregava, pelo que os textos mostram, à escrita como uma
forma de se transformar em uma Clarice plena de sentido e divindade, mesmo que
por um curto período de tempo. Camila fala o que sente, procura fazer da
linguagem extensão de seu corpo, sentido pleno, palavra-corpo, mas ela falha, pois a linguagem é abertura de ser.
Quando
escrevemos, colocamos no papel o que somos em dado momento. Não à toa, um poema
muito famoso de Álvaro de Campos fala de como as cartas de amor são ridículas,
não por serem ridículas em si, e sim por parecerem ridículas diante de nosso
olhar futuro. O que somos no momento daquela escrita deixa de ser real: ou o
sentimento morreu ou cresceu, mas não é mais o que era. A carta se torna boba
por não refletir algo que ainda é ou por falar de algo que já foi e agora é
algo além do que era. E o pior: quando somos lidos, naquele momento, o leitor
nos violenta e invade o que nós escrevemos com o seu sentido. Um escritor que
explica o que quis dizer em seu texto é como o mágico que explica a magia e
acaba com todo o encanto. A diferença, contudo, é que leitor pode se rebelar e
dizer ao escritor que pouco se importa com suas explicações e apenas com o que
sentiu ao ler aquilo.
Camila
escreve suas experiências procurando criar uma narrativa coerente de gestos,
atos, desejos e gozos. Nisso, acaba se deparando com fãs que a veneram.
Entretanto, cada um desses fãs entende seus textos a sua maneira e isso faz de
Camila um ser ainda mais solitário do que já era. O desfecho do filme, no qual
a personagem diz que seguirá em frente mesmo com os golpes dados pela
existência significa tanto a perseverança no viver como essa busca infrutífera
e irresistível de si mesma por meio da literatura: ela seguirá tentando
achar-se nesse desnível existencial e comunicativo que existe entre o que
escritor é e o que ele escreve e entre aquilo que o leitor, esse monstro que
destrói nosso egocentrismo, vê como verdade de momento.
Certa
vez, eu disse em um texto que acreditava em dois tipos de desassossego: o que
era bem representado por Fernando Pessoa, em especial o seu heterônimo Bernardo
Soares, e o que era exibido pelos textos de José Saramago. Eu classificava o
primeiro como um desassossego passivo, algo autocontemplativo, e o segundo
como ativo, provocador. Diria que ainda creio nessa subdivisão ao menos para
falar dos textos que leio e digo hoje em dia que a grande literatura é a que
desassossega de alguma forma no nosso âmago.
Diria que
Camila se encontra no primeiro tipo de desassossego, bem como Clarice Lispector
e suas heroínas. Elas preocupam-se em fazer da arte um projeto de vida,
subjugam à arte toda forma de vida, procuram fazer do labor literário uma sacralização do ato de viver. O ato mais grotesco como comer uma barata ou
transar com o namorado da melhor amiga na frente dela devem ser objetos de
transformação da vida em arte, para falar como Oscar Wilde.
Esse
tipo de desassossego é ambicioso, pois por mais que o escritor se diga
despreocupado em relação ao fato de se será lido ou não, ele sabe que sua obra
só será obra quando for lida e quando ela estiver sendo lida por alguém aquela
mensagem originalmente posta será vítima de descompressão e se transformará em
algo diferente na mente do leitor. O escritor desassossegado que faz da arte um
projeto de vida age como um mítico (o que me faz pensar em Rimbaud agora) que
procura na arte o mesmo que o crente procura na escritura sagrada: a salvação,
a plenitude, a paz de espírito. Mas assim como o crente sente temor e tremor,
como bem mostrou Kierkegaard, por não saber se seu gesto de fé é suficiente
perante Deus, o escritor sente temor e tremor por saber-se desconstruído, lido.
Por ter sua escrita subvertida. O escritor pelo gesto que dá vida a sua obra
tem uma pequena morte constante. Por isso mesmo muitos fazem metáforas com a
aspectos bíblicos e sexuais: nada mais parecido com o ato de escrever do que
essa peregrinação existencial no rumo de Deus ou do que esse ato de entrega total
de si que acaba em um átimo de segundo deixando o corpo suado e como que
nauseado de si mesmo em diversos momentos.
As
cenas de sexo do filme de Murilo Salles, aliás, são bem cheias desse angustiado
desgosto com a existência. Carícias, penetrações, violência, tudo isso são
promessas de um arrebatamento que não vem e deixa apenas o gosto do desencanto.
Apenas em um momento da história Camila parece achar a plenitude em um intenso
amor de curta duração. Tal cena me fez pensar que a vida em si é um grande gesto
de amor, conosco a cada momento procurando integrarmos plenamente ao que somos,
em especial por meio da paixão pelo outro. Mas pela estrutura ontológica
ekstática que temos, bem mostrado por Heiddeger e Sartre, nunca atingiremos
essa plenitude salvo quando morrermos e formos lidos enquanto lembrança pelos
que testemunharam nossa existência.
Camila
representa bem o mito de Sísifo: uma moradora de um mundo absurdo e sem
sentido, inconformada com isso, e que tenta por meio da escrita fugir da lógica
insípida do mundo. Ao invés de engajar em alguma causa, ela se engajou em si e
procura se escrever para se tornar ser. Mergulhada em si mesma, ela
provavelmente terá muitas coisas a ver e escrever até o fim da vida, sempre
sendo traída pela ambiguidade da linguagem e pelo fato de que um escritor,
sozinho, sem leitor, não tem verdade. E quando é lido, por si mesmo no futuro
ou pelo outro, sente-se vivo e traído.
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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