Número zero, de Umberto Eco
A história
do jornalismo é construída com tanta má informação que é bem possível que não
receba como merece a narrativa de Umberto Eco em Número zero. É fácil lembrar da recepção de dois romances que dialogam com o proposto pelo escritor italiano; quando José Saramago publicou Ensaio sobre a lucidez, por exemplo, disseram que o português estaria incentivando o voto em branco como estratégia de dar um golpe na democracia.
Dada a natureza instrumental que muitas vezes têm os
jornais para todos os tipos de causa, inclusive as chamadas causas nobres,
alguém deve haver tido alguma vez a ideia de criar um periódico não para ser
lido pelo público, mas para extorquir os poderes estabelecidos com o propósito
de instalar um vazio entre eles (no caso recentemente da mídia brasileira, olhem, não será verdade se a que aí está não é já mestra nisso). Bastam poucos jornalistas devidamente
dirigidos e apenas umas dezenas de exemplares para intimidar os destinatários
selecionados. Tudo muito barato e limpo e hoje mais ainda porque não é necessário o custo da publicação que sempre
é empecilho para dar forma a um projeto dessa natureza. E pronto! Chantagem low
cost.
Os feitos
ocorrem em Milão, ano de 1992, algumas semanas depois que o advogado Antonio di
Pietro descobre os subornos pagos a um político socialista pela averbação do
contrato de limpeza da residência de anciãos Pio Albergo Trivulzio. Este seria o
primeiro momento da investigação Mãos Limpas, operação que em
dois anos arrasaria a classe política reinante desde a queda do fascismo para
desembocar no primeiro Governo de Bersluconi, cujo holograma se adivinha por
trás da figura do comendador Vimercate, editor deste jornal que nunca virá a
lume e, tem já aí o leitor, o motivo do título da obra ora publicada.
Número zero é uma paródia feroz sobre o
jornalismo. O mau jornalismo. Este que no cenário da narrativa tem se tornado
cúmplice das manipulações do poder; mas, o interessante é que a solução
proposta por esse possível novo jornal pouco se difere das propostas em curso: ficar além do exercício de cumplicidade com os dominantes? Sim. Mas, extorqui-los porque
quer ser um poder paralelo. O romance de Umberto Eco revela uma fase da
imprensa em que os interesses dos jornalistas deixaram de ser a investigação, a
comprovação do que dizem com fontes originais para ser cópia, boato, construção
ficcional (no pior sentido desse termo).
Seu repórter
mais experiente, de nome Braggadocio, exclama em plena febre investigativa que “os
jornais não estão feitos para difundir, mas para encobrir notícias” pelo método
de afogar a informação num excesso delas. Algo que, de fato, ganhou forma em sua
plena atuação com a internet e uma visita a qualquer portal de notícias
comprovará essa constatação.
Além das
coincidências históricas e dessa constatação tão atual sobre a indústria da informação,
Umberto Eco joga com todas as possibilidades da relação ficção-realidade,
literatura-história. No que se refere ao afogamento
de informações, a experiência para observar tal fenômeno é muito simples: acontece o feito X e o jornalista não
pode evitar de apresentá-lo, mas, para não colocar em apuros muita gente, nessa
mesma edição, publicam-se outros títulos que chamam atenção das pessoas enquanto a
notícia realmente importante fica perdida no grande mar da informação. Ou é, claro, exercitam-se os títulos de interpretação apelativa.
Se por um
lado, a imprensa nas mãos do poder serve de destruição ao estado democrático,
por outro, a imprensa livre em mãos de gente igualmente irresponsável é capaz
do mesmo gesto de ameaça. Esta parece ser a tese principal de um romance que
poderia ser um ensaio, mas que está mascarado (assim como a imprensa faz com
determinadas notícias) por baixo de uma ficção investigativa entre o passado e
o presente num exercício que diz ser contra a ruína de uma sociedade carcomida
pelo poder centrado nos seus próprios interesses do fascismo aos dias de hoje.
E
está bem, tal como Michel Houellebecq fez ao imaginar uma França sitiada por um
governo muçulmano em Submissão: na ficção, o autor não há o que provar nada do que diz
quando a realidade do que conta cai em mãos da reflexão do leitor. E o leitor
atento se dará conta de que o romance de Eco apresenta, além dos adiantamentos
novelescos, tem muita relação com a realidade. Talvez a realidade, em alguns
casos, ultrapasse a imaginação criativa.
O diretor
desta redação fantasmagórica veta dos números zeros qualquer notícia que possa
aproximar-se dos interesses das personagens envolvidas, trate-se do assassinato
do juiz Falcão nas mãos da máfia ou dos subornos políticos para conseguir
contratos. A realidade é apenas um número aleatório que deve submeter-se à
vontade da intimidação.
O lugar das
tramas góticas que Umberto Eco tanto ama serve às delirantes investigações de Braggadocio
para desenhar uma gigantesca rede conspiratória que por espaço de meio século
haveria dominado a história política da Itália desde a queda de Mussolini. Por
trás da intensa atividade terrorista registrada nos anos de chumbo (década de
1970), o jornalista encontra sistematicamente a larga mão da Operação Gládio,
uma organização secreta criada pela CIA na Europa ocidental para impedir à
chegada ao poder dos comunistas e cuja existência Giullio Andreotti, do Partido
Comunista italiano, confirmou nos anos 1990.
A
transcrição literal da autópsia de Mussolini depois de sua execução e posterior
linchamento em 1945 da pé ao jornalista para sustentar que o defunto não era o
ditador fascista mas um duplicado seu, sobre a base de que o informe forense
não havia registrado doenças hepáticas previamente diagnosticadas. E a partir
daí elabora uma rocambolesca fuga que através do Vaticano e com ajuda dos americanos
lhe haveria conduzido à Argentina quando o país estava sobre a sombra de Perón.
Borghese haveria tentado devolvê-lo ao poder em 1969 com seu golpe de opereta
dos guardas florestais, mas então, lamentavelmente o ancião ditador de 86 anos morreu
durante a viagem.
Nada
relevante que ocorra nesses anos em Itália escapa à autoria intelectual de
Gladio, tanto se os executores são neofascistas sob suas ordens diretas ou
Brigadas Vermelhas convenientemente infiltradas. Os atentados da Praça Fontana
ou à Estação de Bolonha, o assassinato de Aldo Moro, a eliminação do papa
Luciani, o escândalo financeiro do Banco Ambrosiano ou o atentado contra João
Paulo II são na mente febril do periodista episódios de uma estratégia da
tensão alentada desde o próprio Estado pelo poder. Nesse periódico que nunca
sairá a luz, não falta ainda o espião que informa aos serviços secretos das
perigosas conclusões de Braggadocio, que não receberá, já se suspeito um bom pagamento
por suas ações acusadas de delírio.
Número zero é uma paródia do jornalismo,
mas também da política e, claro, uma lúcida reflexão assinalada não apenas por
obras como a de Houellebecq publicada também em 2015, mas por obras como Ensaio sobre a lucidez, de José
Saramago. É sabido que nenhum sistema político tenha melhor tratado a ideia de cidadão
como a democracia. De escravos, servos, súditos com deveres passamos a
categoria de sujeitos com direito. A consolidação do estado democrático não foi
fácil, nem contínua ao longo do século XX nos países ocidentais, afinal todos
padeceram, de uma maneira ou de outra, das convulsões dos totalitarismos. E sempre
pareceu, depois das contendas bélicas, e da miséria, que a reinstauração da
liberdade ia trazer bem-estar e estabilidade, claro, alimentada pelo progresso.
Isso ao menos de manteve durante o período da chamada Guerra Fria, mas e agora?
O mundo tem mudado a tanta velocidade que já não se sabe hoje quem realmente
governa: os políticos eleitos, as multinacionais, os serviços de inteligência
(depois das descobertas de espionagem estadunidense)? Quem governa hoje o
mundo? É uma pergunta a se fazer diante do romance de Umberto Eco. A sociedade democrática
está só: não se confia mais no Estado, nem nos partidos políticos, nem nos seus
representantes, nem na sua justiça, nas Forças Armadas, nos empresários e
banqueiros, nos profissionais e até nas instituições seculares mais antigas que
a própria democracia, como a Igreja Católica. Todos estão salpicados pelo
interesse próprio e, atingidos pela corrupção. Uma corrupção não legalizada,
mas em alguns casos autorizada. O
resultado disso tudo: estamos, enquanto indivíduos, desamparados, entregues com
todo nosso esforço aos impostos que servem a um único interesse, a manutenção da
máquina estatal.
Ligações a esta post:
* Este texto não existiria sem as reflexões de Jesús
Ceberio em "Chantaje de bajo coste" e "Vivimos en la mentira", de César Antonio Molina, ambos publicados no jornal El País e dos quais, muitas das passagens messe texto agora publicado devem ser tomadas como traduções livres.
Comentários