A caverna, de José Saramago
Por Rafael Kafka
Quando ganhou o Prêmio Nobel de literatura em 1998, José
Saramago citou seu avô como sendo a pessoa mais sábia que ele conheceu em vida.
Um detalhe curioso era o fato de esse senhor ser analfabeto e homem simples,
trabalhador do campo, assim como Saramago o foi em dado momento de sua vida. O
impacto dessa figura e da existência fortemente ligada ao concretismo da vida
dura influenciou grandemente a obra de Saramago que em seus textos dá um espaço
imenso para a singeleza da vida do campo, para a singeleza dos seres que
pouco se importam com a erudição por perceberem que a vida exige muito de quem
precisa trabalhar para sobreviver.
Se a maioria
dos escritores considerados clássicos coloca em seus relatos o foco em
personagens pertencentes à burguesia e ao cotidiano das grandes cidades,
Saramago, seja em Claraboia ainda em sua primeira fase literária ou em Levantado
do Chão que marca o seu retorno oficial ao mundo da literatura, utiliza-se
de personagens vindos das camadas sociais mais baixas dando-lhes um contorno de
humanidade extremamente tocante. Talvez o único romance saramaguiano com uma
personagem mais intelectualmente tradicional seja O Ano da Morte de Ricardo
Reis, personagem que tem um retrato bastante crítico se observamos, como fiz em texto anterior, como o modo de vida do personagem fechado hermeticamente
em suas leituras é analisado de forma acurada.
Como grande
parte dos intelectuais mais relevantes de nosso tempo, Saramago foi um escritor
que passou por diversas dificuldades em sua vida as quais deram temas e
recursos técnicos muito interessantes para serem usados em uma obra de caráter
peculiarmente ambicioso. Além da pontuação, sempre um ponto a ser destacado, e do
narrador extremamente irônico e crítico, as personagens femininas e as
personagens de humana simplicidade mostram como o escritor morto em 2010 era
bastante aberto às particularidades que marcam a ontologia do ser humano.
Podemos
dizer que as obras de Saramago são bastante marcadas pela desconstrução, pelo
desejo de provocar no leitor uma mudança de olhar, um aprofundamento ou mesmo
uma renovação daquilo que é contemplado como real. Por isso, tanto a pontuação,
que propicia um rico fluxo de consciência, quanto o protagonismo de personagens
historicamente desprezados pela literatura, como as mulheres e os homens do
campo ou do proletariado, auxilia-nos até em uma missão de compreender melhor
como são aquelas pessoas que não nos servem como norte psicológico quando
lemos, nós que sempre fomos acostumados a admirar dândis e poetas malditos.
Todos esses
elementos temperados com uma boa dose de distopia estão presentes em A
Caverna, último romance do autor português lido por mim. Logo de cara somos
apresentados a Cipriano Algor, um oleiro, e seu genro, Marçal Gacho, que
trabalha como guarda no Centro, uma espécie de cidade dentro de uma outra
cidade que parece, conforme vamos nos aprofundando na leitura do romance
(bastante agradável por sinal) com o mundo pós-moderno descrito por Aldous
Huxley em seu clássico Admirável Mundo Novo.
O mote da
história é uma rejeição sofrida por Cipriano Algor que vê os produtos de sua
olaria serem rejeitados pelo Centro, cujos moradores aparentemente deixaram de
se preocupar em comprar produtos genuinamente de barro, com sua beleza rústica
e natural, por conta da praticidade de se comprar as mesmas louças feitas com
plástico que têm a vantagem de serem inquebráveis. Aos poucos, percebemos que a
vida no Centro, bem como no mundo de Huxley, é marcada pelo artificialismo das
relações, com pessoas que possuem ali todo o conforto do mundo em um local que
funciona como um grande simulacro do mundo real. Vemos o Centro então como uma
alegoria de nosso mundo, como um local insípido, sem vida real, mais parecido a
um formigueiro do que a um ambiente humano propriamente dito.
Todo o
enredo praticamente gira em torno da tentativa de Cipriano de convencer o
Centro a adquirir dele novos produtos de barro, pequenos bonecos produzidos com
sua filha Marta, ao mesmo tempo em que precisa lidar com a paixão por Isaura
Madruga, sua vizinha a qual é viúva e demonstra por ele um crescente interesse quando da iminente mudança para
o Centro, pois Marçal está prestes a ser tornar um guarda-residente com direito
à moradia no local de trabalho. Cipriano vê a possibilidade de seguir vendendo
bonecos de barro ao Centro como uma forma de se manter preso as suas tradições
e a seu modo de vida que, mesmo com todas as dificuldades, é muito mais
desejado do que aquele simulacro que existe dentro do Centro.
Um elemento
interessante da obra é a presença de Achado, que assim como o Contente
de A Jangada de Pedra, assume uma humanidade que muitas vezes ultrapassa
a dos personagens humanos, sem, contudo, aquele ar infernal tido pelo canino
presente na separação da Península Ibérica do resto da Europa. Achado acaba por
ser o elo poético da família que passa por um grande conflito de identidade e
união com os problemas econômicos provenientes do iminente fechamento da
olaria. Podemos até dizer que é graças a ele que a mesma se mantém unida e
volta a se reunir: em dado momento, quando ocorre a mudança para o Centro,
Achado precisa ser deixado com Isaura, pois no Centro não se aceitam cães.
Porém, logo Cipriano desiste de residir no Centro e volta a sua antiga
localidade, o que o leva a se reencontrar com seu cão e com Isaura, bem como
faz com que Marta e Marçal logo na sequência também decidam-se pelo regresso.
O que motiva
a família a voltar ao seu antigo recinto, mesmo sem saber o que fazer diante da
incerteza de como sobreviver, é uma visão encontrada nos subterrâneos do
Centro. Ali, os guardas são chamados para vigiarem uma estranha gruta que
encontrada recentemente estava a causar uma grande comoção nas autoridades do
Centro. Em certa noite, Cipriano, mesmo com Marçal pedindo o contrário, vai até
o local da gruta e ao entrar nela vê um conjunto de pessoas em pele e osso,
aparentando estarem em um estado de vida entre a vigília e a morte. Cipriano,
dizendo aquelas pessoas “somos nós” decide-se num átimo a voltar para casa como
que fugindo de uma assombração, a qual pelo que pudemos acompanhar era o
próprio modo de vida do Centro.
Cipriano de
certa forma representa o espírito livre que troca a certeza de uma vida
confortável, porém confinada em um mesmo estado de coisas, pela liberdade de
agir, mesmo que isso traga imprevistos muito indesejados em alguns momentos. A
incerteza é o que movimento o ser humano e Saramago mostra bem como a certeza
dada pelas ideologias e modos de vida contemporâneos são o outro lado de uma
coisificação do ser humano, algo bem mostrado por ele em outros textos, em
especial o belo conto “Coisas” presente em sua coletânea Objecto Quase.
Saramago é um bom escritor para se entender uma série de problemas sociais
pertinentes, mas, principalmente, para compreendermos bem como as relações do
capitalismo são mercadorias que assumem o estado de humanidade: são seres
humanos que se transformam naquilo que compram e vendem, deixando de serem essências
vivas para se tornarem apenas aparências sobreviventes em um jogo de relações
marcado pela falsidade.
Daí
percebermos como, além de poética, a atenção dada aos personagens simples e às
mulheres se torna um belo instrumento de crítica em Saramago, potencializado
quando as pessoas do campo e as mulheres fundem-se em seres repletos de poesia
e crítica, como ocorrem em casos como o da mulher do médico em Ensaio sobre
a Cegueira, Lídia em O Ano da Morte de Ricardo Reis e agora Marta e
Isaura. Saramago procura resgatar a humanidade focando em seres que são
historicamente esquecidos pelo capitalismo industrial e tecnocrata. Uma análise mais foucaultiana nos permitiria
inclusive falar do modo como as relações de saber, transformadas em jogos de
erudição e afirmação de poder da classe burguesa, são ampla e sutilmente
criticados pelo autor em seus escritos.
Em suma, a
leitura de A Caverna é algo que recomendo a quem procura se aprofundar
mais dentro da obra de Saramago. O enredo não tem a mesma desenvoltura de outros
romances mais clássicos do autor e chega a ficar parado demais em uma única
situação, a tentativa de salvar a olaria com os bonecos, que depois virá a se
mostrar sem sucesso. Ainda assim, os diálogos, as reflexões e digressões do
narrador, outra marca fortemente tradicional das obras saramaguianas, bem como
o modo são tecidas críticas ao modo de vida do capitalismo existente no Centro,
valem a pena para qualquer leitor que se mostre interessado em um livro que
mais do que entreter procura desassossegar e provocar.
Ligações a esta post:
Notas publicadas em 2008 da leitura de Pedro Fernandes sobre A caverna, aqui.
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