Um outro amor, de Karl Ove Knausgård
Por Pedro Fernandes
“Pela
primeira vez em toda a minha vida me senti totalmente feliz. Pela primeira vez
em toda a minha vida não havia nada que pudesse obscurecer a alegria que eu
sentia. Estávamos juntos o tempo inteiro, nos abraçávamos de repente onde quer
que fosse, nos semáforos, por cima das mesas dos restaurantes, nos ônibus, nos
parques, não havia nenhuma exigência e nenhuma vontade que não fosse a presença
do outro. Eu me sentia totalmente livre, mas apenas quando estava com ela, no
instante em que nos separávamos eu começava a sentir saudade. Era estranho,
aquelas forças eram muito intensas e muito boas.”
O trecho
sublinhado está longe de ser o melhor do segundo volume da série Minha Luta, do
norueguês Karl Ove Knausgård, mas é, possivelmente o que reúne as condições
para justificar o título, ao menos na edição brasileira (Um outro amor) e para justificar o paradoxo que tem sido para um
leitor que tem tentado envolver-se com uma literatura de cunho mais prolixa ao
menos nesses cinco primeiros meses de 2015. O texto ficará datado, dizendo
isso, mas dane-se (!) Acho que a própria força de uma obra deve servir a quem
escreve sobre de força para o que vai dizer sobre o lido. E, claro, estando num
texto datado como o de Knausgård, então a datação dessas notas não há de ser um
problema de natureza tão grave.
O trecho
sublinhado dá contas de um instante da vida do escritor, cinco anos (é isso
mesmo?) depois da morte do pai, tema do primeiro volume, em que ele, separado
da primeira mulher, envolve-se com outra numa ocasião em que sua vida atravessa
uma série de novidades: teve o primeiro livro publicado por uma importante
editora e, agora, muda-se para Estocolmo, onde, entre o novo amor atravessa uma
pesada crise de criatividade e os percalços de ser pai. Aliás, a princípio,
parece que estamos diante da velha síndrome do escritor que feito sucesso já
com a primeira obra tem de, obrigatoriamente, romper com essa recepção inicial,
claro, de preferência, para mostrar algo ainda melhor ou ao menos na linha
daquilo que foi recebido tão bem numa primeira ocasião.
E
contrariaria o próprio título da obra e, claro, esse trecho sublinhado em que
parece o leitor ficar diante de um diário bobo de adolescente apaixonado
reafirmando a compreensão do Fernando Pessoa sobre as cartas de amor (todas
ridículas), mas com outra força, as cartas de amor e tudo numa pessoa que ama –
sobretudo nos primeiros momentos que ama – é ridículo, inclusive, a própria
pessoa. E não é a esse discurso enxaropado que Karl Ove Knausgård submete o
leitor. Logo, gostaria de compreender que nesse segundo momento a vida pessoal
é apenas um aditivo para aliviar o tema que verdadeiramente sustenta essa obra:
a criatividade ou a criação literária. E ele faz isso de uma maneira
extremamente habilidosa. Isso porque, se se dedicasse apenas a um exercício de
lamúria sobre o livro que não vem ou ainda se atentasse apenas para o cotidiano
de sua vida, muito provavelmente Um outro
amor seria um fiasco. É o equilíbrio dos temas (claro, há outros) que faz a
obra continuar seduzindo e, se a princípio se torna infantil pelas descrições
amorosas (típicas de um apaixonado em início de carreira) tem outras passagens
sublimes, sobretudo, pela criatividade com que Knausgård aborda o dia-a-dia, a
capacidade que tem de filtrar os acontecimentos, apesar das repetições sobre a
bebedeira, os encontros com os amigos etc. e organizá-los de maneira a criar
outra realidade que é a sua vivida, mas enxergada com uma lucidez espetacular.
É bem
verdade que, a crise de criatividade se confunde com um período da vida do
escritor – o mesmo que redige esse catatau como se redigisse um diário – em que
nada de interessante, ou menos alguma experiência de forte valor se verifique a
não ser a chegada de Linda e da sua filha. Estamos diante de alguém que tenta
extrair das vivências mais corriqueiras algum sentido que possa ser
universalizado como experiência de uma coletividade. Muito à contramão, portanto,
daquele Knausgård de A morte do pai,
atento ao período de formação de sua personalidade e no que a vida do pai teve
influência sobre sua vida. Talvez o período mais interessante na vida de
qualquer pessoa, seja porque as coisas acontecem nessa ocasião numa velocidade
cujos limites não são possíveis de precisar, seja porque as coisas têm para o
sujeito outra forma: por mais simples que sejam carregam uma força de sentido
muito forte e com previsões que beiram ao drama e ao trágico.
Na idade
adulta, que é para onde olha agora o escritor, ainda que numa ocasião de
recomeço, as coisas são sempre repetitivas: é trabalhar para sobreviver, é
sobreviver. Mas, já não estamos numa época em que sobreviver é ser autor de uma
quantidade de experiências cuja vida esteja no centro-limite dos
acontecimentos. Contemporaneamente os monstros são outros e no caso de
Knausgård parece mesmo que eles sequer existem e têm de ser inventados, isto é,
são mais dramas criados por uma cabeça que fervilha sobre tudo o que se passa
consigo e ao redor de si. Sim, a vida de um escritor contemporâneo está em
vagar entre leituras, fazer sala aos do seu círculo de amizades e cumprir
agendas que vão dos convites para entrevistas a ministrar cursos de escrita.
São artifícios, evidentemente, que sustém a própria carreira, claro, no mesmo
instante em que colaboram e muito para com uma acentuação do drama da
criatividade. Interessa-nos, sobretudo, suas leituras e o que pensa delas, a
quantidade de nomes que integram seu lugar na literatura nórdica, sua
compreensão sobre sua imagem em meio a toda sorte desses elementos. Também não
é uma extensa reflexão sobre como lidar com isso – tais situações vão se
mostrando como permanência no dia-a-dia de todo escritor. A busca de um hábitat
natural para escrita é algo recorrente, sobretudo, nos primeiros momentos de Um outro amor; para depois, o drama se
centrar no desafio da escrita.
Também o
escritor, esse mito não é desfeito, por mais despojado que seja Knausgård, é o
que atravessa o mundo numa outra posição que difere da rotina comum: sim, é
isso que se verifica no dilema entre construir uma família e ser incapaz de seguir os limites necessários
para manter essa família, ainda que a parceira como quem escolhe construir essa
família pertença, a um primeiro instante, ao mesmo universo de criação que o
seu. Sempre imaginei, desde quando me aproximei mais da vida de alguns
escritores pelos quais desenvolvi algum interesse, que apesar de não serem
figuras integradas à correnteza comum dos fatos por vezes se deixam levar como
se fosse do interesse alcançar pela própria correnteza uma compreensão sobre as
coisas. O escritor é um sujeito em busca constante de experiências, mais ainda
se o mundo que agora habita é produtor de situações sempre e sempre repetidas.
Integrar-se não quer dizer abdicar da existência comum, embora, claro esteja, é
cada vez mais incapaz de se viver as tais situações comuns, mesmo quando se
vive para a escrita. Não há como se isolar numa torre de marfim, ainda que
eleja um lugar à parte do burburinho do mundo onde possa da forma às realidades
imaginadas.
Mas, além do
tema da criatividade, há em Um outro amor
uma denúncia muito clara sobre o atual modelo de vida que vimos construindo
e as exigências que vimos fazendo sempre com a necessidade de voltarmos a nos
integrar à natureza, como se pudéssemos, mesmo no âmbito do complexo modelo de
vida, reengendrar outra totalidade. Apesar de não estarmos numa obra cuja
relação literatura-sociedade possa servir de diálogo para sua compreensão – e
parece que o seu próprio autor está à revelia de um papel social da literatura
– não como há como nos desviar de certa denúncia ou posição crítica ante a vida
coisificada ou das necessidades criadas para dar ao homem uma ilusão de
segurança no mundo onde vive, ainda que tais necessidades somente se mostrem
como paliativos sobre nossa incapacidade de ser sujeitos mais autênticos. Esse
modelo de vida integrado a necessidades dispensáveis não deixa de servir a um
achatamento progressivo da criatividade porque imprime uma individualidade
repetida. Particularmente, essa compreensão engendrada pela obra, claro, mais o
tema da criação se constituem naquilo que há de melhor nesse conjunto
autobiográfico do escritor norueguês.
Não devia
ressaltar, porque isso já foi feito quando da leitura de A morte do pai, mas aquilo que mais prende os leitores não é apenas
a convivência diária com o dia-a-dia de um escritor. Também. Mas é, sobretudo,
a maneira clara e despojada com que conduz a narrativa; parece que Knausgård,
por mais verborrágico que seja, porque está sempre atento a tudo, a todos os
detalhes, a todas as falas, a todos os gestos, quer que a percepção prevaleça
sobre o mero exercício medíocre da escrita. Por isso, escolhe uma linguagem
clara, capaz de nos prender numa correnteza de acontecimentos como se o
ouvíssemos numa mesa de bar contar daquilo que se passou consigo, mas sem se
descuidar, claro, de que está exercitando uma escrita que não é vaidosa e por
vezes capricha em lapidar a imagem do escritor como uma figura sempre sem
habilidades até para existir e preocupado com aquilo que os outros dizem dessa
apatia frente ao mundo.
Sim, é como
se estivéssemos também diante de alguém que envergonhadamente revela sua
inabilidade com a vida e não esconde isso pela metáfora ou pelo enfeite, mas
escolhe uma maneira precisa de se confessar: sou isso e não há ninguém capaz de
me fazer de outra maneira. Individualismo? Não. Possivelmente alguém que ainda
esteja tão aferrado sobre sua pessoa que se vê necessitado de defender-se dessa
forma comum que todos querem que
sejamos.
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