“Todos os caminhos vão dar a Sintra”
Por Pedro Fernandes
E quase todos os grandes nomes da literatura portuguesa terão utilizado Sintra como espaço para suas narrativas e poemas. O título
deste texto está entre aspas porque não é meu. É de José Saramago. Está em Viagem a Portugal, livro que gostaria de
colocá-lo debaixo do braço e cumprir o mesmo itinerário desse viajante pelos afetos
que o fizeram redigir não uma literatura de viagem, mas uma história dos
lugares ou uma geografia dos sentidos sobre aquilo que pode ver, ouvir, sentir,
saborear, cheirar.
Nesse
itinerário proposto por Saramago há lugares que se destacam por sentidos
específicos: Sintra, pelos seus monumentos e pelos doces é o lugar da visão e
do paladar. E este texto deixará aquilo que agrada a fome de lado para se
referir àquilo que mais nos impacta, a imagem. E o leitor poderá compreendê-lo
como uma exaltação vazia sobre a monumentália. Mas, não é bem isso. É uma
tentativa de materializar aquilo que foi apalpado pelos olhos de um estranho à
paisagem.
Quando
estive em Sintra não deixei de conhecer o pequeno vilarejo, depois de muitas caminhadas,
num dos carrilhões que percorrem os principais monumentos do lugar e será como
se nele estivesse que construirei o percurso dessa crônica. Quando me apetecer
a descida para uma contemplação do lugar, me deterei mais demoradamente explorando
elementos da história e da literatura.
Porque não
fosse a beleza real – esta que é
construída quando os olhos apalpam a paisagem –poderia dizer que Sintra já estava
na minha geografia pessoal, sobretudo, por causa dos tais elementos da
literatura. Isso faz do cronista, então, um estranho à paisagem apenas no que
se refere à relação física homem-lugar. Mas, uma vez nela, tudo se revelava
como um déjà vu.
Na
literatura, o culpado pelo feito é Eça de Queirós, autor com o qual tomei
contato a partir do curso de Letras através da leitura de Os Maias. (E agora não me recordo se o romance veio mesmo quando da graduação ou se foi
motivação a partir do seriado filmado pela Rede Globo e uma das melhores
versões, diga-se, da obra para as telas). Se não foi pela pena de Eça, foi pela
Camões em Os lusíadas. No canto 3, o
leitor encontra
"E, nas
serras da Lua conhecidas
Sojuga a
fria Sintra o duro braço;
Sintra, onde
as Naiades, escondidas
Nas fontes
vão fugindo ao doce laço
Onde Amor as
enreda brandamente,
Nas águas
acendendo fogo ardente."
Vendida como
a paisagem dos românticos, as paisagens que desenhei num dia de andanças pelas
estradinhas e pelo Terreiro do Paço, entre doces e vinhos, já estavam traçadas
e não foram avivadas pela vivência romântica. E para quê, se em Sintra se respira
isso? Além do que, sozinhos não corremos o risco de exalar o enxofre num futuro
de amor desfeito. Tive receio sobre a fama de romantismo desse pequeno vilarejo
encravado entre serras e fui buscar informações fora das vendas turísticas e da
minha sensibilidade sobre o espaço e qual é minha surpresa: as investidas sobre
o lugar, ou mesmo a sua definitiva inserção no imaginário português foi coisa a
partir do século do Romantismo e das profundas intervenções paisagísticas sob o
mando de D. Fernando II. Isto me veio da visita ao Palácio Nacional de Sintra,
uma das primeiras construções de impecável beleza encontradas logo à chegada do
vilarejo. E já muito distante do Paço, no instante quando redijo estas linhas
consulto Os Maias.
"Só ao
avistar o Paço descerrou os lábios:
– Sim,
senhor, tem cachet!
E foi o que
mais lhe agradou – este maciço e silencioso palácio, sem florões e sem torres,
patriarcalmente assentado entre o casario da vila, com as suas belas janelas
manuelinas que lhe fazem um nobre semblante real, o vale aos pés, frondoso e
fresco, e no alto as duas chaminés colossais, disformes, resumindo tudo, como
se essa residência fosse toda ela uma cozinha talhada às proporções de uma gula
de rei que cada dia come todo um reino…"
Ninguém
poderia dizer melhor sobre isso se não o próprio narrador queirosiano. As
referências ao palácio existem desde quando D. Afonso Henriques reconquistou
Lisboa em 1147 (e por pisarmos em território de literatura, vale lembrar sobre História do cerco de Lisboa, de José
Saramago, para reolhar a história
dessa conquista).
Mas, até
alcançar a visão construída pela narrativa de Eça de Queirós e a minha visão
sabe-se que o palácio passou por muitas modificações: numa delas, D. João I
mandou construir as cozinhas com as enormes chaminés que logo foram tornadas
símbolos da vila; noutra, D. Afonso V, D. João II e enfim D. Manuel I, quem
mandou construir a ala manuelina e redecorar o interior com azulejos. Saramago,
em Viagem a Portugal comenta que
“poucas coisas podem ser mais belas e repousantes que os pátios interiores do
Palácio da Vila” – e é verdade. Poucos são os lugares que têm uma paz de espírito
tão viva, ainda que saibamos ter sido o seu interior, conforme dizem os guias,
um lugar de sofrimento: D. Afonso esteve aí preso. Mas, digo, há prisões e retiros.
As condições na época até podiam ser outras (e eram), mas estar preso nesse
lugar é como tirar férias forçado a não sair de casa.
Outra
construção que se destaca na paisagem de Sintra é o Palácio do Ramalhão, tornado
escola depois que foi vendido às Irmãs Dominicanas, na década de 1940. O
palácio pertenceu a Carlota Joaquina depois de ter se recusado à constituinte
de 1822. A rainha esteve afastada da política quando o marido havia sido
aclamado rei. O seu retorno a esse cenário se deu pela construção, à surdina,
de uma aliança entre frades e nobres que se mostravam nenhum pouco simpáticos
ao regime: o plano era derrubar o rei e destituir a Constituição. Foi quando
lhe falharam os planos e veio-lhe a condenação de ser deportada para o Palácio
do Ramalhão, gesto que, segundo contam, aceitou com grande alegria; em Sintra
ela continuaria sua trama. Fica aos curiosos da história saber sobre o seu desfecho.
Volto a pensar não prisão como um retiro. Mas, para já, vale um retorno à obra
de Eça de Queirós, não Os Maias, mas A tragédia da Rua das Flores.
"Mas a
estrada entrava entre dois altos muros paralelos, donde soluçavam ramagens
murmurosas. Era o Ramalhão. O ar parecia mais fino, como refrescado da
abundância das águas. Sentia-se uma vaga serenidade de parques e arvoredos.
Alguma coisa de suave e de elegante circulava. Havia o silêncio dos repousos
delicados e das existências ocultas. Era o Ramalhão."
É nOs Maias que o narrador queirosiano
refere-se a outro monumento fundamental da paisagem de Sintra. Se o Palácio da
Vila deu ao lugar uma marca, o Palácio da Pena, a mais ousada das construções
do vilarejo, é como se fosse sua própria alma, na crença de que há, nos
lugares, mais que nas pessoas, essa essência tão particular.
No vão do
arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, à luz rica da
tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quase fantástica, como a
ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor. Era no primeiro plano o
terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarelos; ao fundo, o
renque cerrado de antigas árvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da
grade uma muralha de folhagem reluzente, e, emergindo abruptamente dessa copada
linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando-se
vigorosamente num relevo nítido sobre o fundo do céu azul-claro, o cume airoso
da serra, toda cor de violeta-escura, coroada pelo Palácio da Pena, romântico e
solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no
ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro…
Não foi
efeito da literatura – porque esta passagem só se revela agora, como disse,
quando tenho diante de mim a edição portuguesa – mas, esse enquadramento aqui
revelado confunde-se com a imagem que construí quando ainda estava na minha
vista em direção ao cume da montanha onde está alojada o Palácio da Pena ou
fruto de um gênio megalomaníaco de um rei (tal qual o da construção do Palácio
de Mafra e por que haveria de ser diferente se toda grande obra é produto dessa
condição assombrosa?).
D. Fernando
II foi quem mandou construí-lo e tornou-se, desde então, o expoente máximo do
Romantismo português pela arquitetura de traço manuelino e moura. No local, já
no século XII havia uma capela dedicada a Nossa Senhora da Pena (ou Penha),
nome derivado da paisagem local marcada pelos assombrosos penedos no cimo da
serra. Depois é iniciada a construção do Real Mosteiro entregue à Ordem dos
Jerônimos até sua extinção e aquisição do espaço pelo rei recém-casado com D.
Maria II. O local serviu de residência a linhagem de D. Manuel até a chegada de
D. Manuel II, o último da corte a viver no palácio hoje decretado Patrimônio
Cultural pela Unesco.
Em Viagem a Portugal, José Saramago
refere-se ao Palácio da Pena como uma “confusão de estilos”; passa “em dez
passos do gótico para o manuelino, do mudéjar para o neoclássico e tudo isto
para invenções com poucos pés e nenhuma cabeça”. E avança:
“Mas o que
não se pode negar é que, visto de longe, o palácio apresenta uma aparência de
unidade arquitectónica invulgar, que provavelmente lhe virá muito mais da sua
perfeita integração na paisagem do que da relação das duas próprias massas
entre si. Elemento por elemento, a Pena é a demonstração aberrativa de
imaginações estéticas. A torre briga claramente com o grande torreão cilíndrico
do outro extremo, e este pertence a família diferente dos mais pequenos
torreões oitavados que ladeiam a Porta do Tritão. Grandeza e unidade têm-na os
fortíssimos arcos que amparam os terraços superiores e as galerias. Aqui
encontraria o viajante uma sugestão para Guadi se não fosse mais exacto terem
bebido nas mesmas fontes exóticas o grande arquitecto catalão e o engenheiro
militar alemão Von Eschwege, que veio à Pena por mando doutro alemão, D.
Fernando de Saxe-Coburgo Gotha, dar corpo a delírios românticos muito do gosto
germânico.”
Ainda, diz o
viajante, “sem o Palácio da Pena a serra de Sintra não seria o que é. Apagá-lo
da paisagem, eliminá-lo que fosse duma fotografia que registe aquelas alturas,
seria alterar profundamente o que já é natureza. O palácio aparece como um
afloramento particular da própria massa rochosa que o suporta. E este é decerto
o melhor louvor que pode ser feito a um edifício que, nas suas partes, se
caracteriza, como já alguém escreveu, por ‘fantasia, inconsciência, mau gosto,
improvisação’. Porém, onde essa fantasia, inconsciência, esse mau gosto, essa
improvisação perdem limites e comedimento é no interior.”
***
É evidente
que todo esse itinerário histórico pode ser tomado como uma extensa rede de
memória através da qual se é possível engendrar situações ou mesmo – para usar
o termo comum – inspirar-se na construção narrativa. Sintra abre-se como um
espaço formidável à imaginação criadora. E para um escritor de natureza
reflexiva e articuladora de situações sociais, as ruelas e os monumentos
foram-lhe de extrema utilidade na construção desse processo criativo, ainda
mais quando se está diante de uma cena realista, mas ainda eivada de certa
essência romântica como é a atmosfera narrativa de Eça de Queirós. Não é apenas
em Os Maias que Sintra se torna
elemento de sua obra; Sintra alcança quase o status de personagem queirosiana. O vilarejo está em O primo Basílio, A correspondência de Fradique Mendes e é até motivo para o título
de um de seus romances, Mistério da
estrada de Sintra; e as descrições do escritor português é capaz de muito
servir ao leitor-viajante dos dias de hoje. E não foi apenas Eça que se
encantou com esse lugar, nem Luís Camões, outros nomes da literatura portuguesa
deixaram impressões sobre o vilarejo – Almeida Garret, Camilo Castelo Branco,
Alexandre Herculano, Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira, Fernando Pessoa e
José Saramago.
Nem só de
palácios se faz Sintra. Há o imponente Castelo dos Mouros, pouco abaixo ao
Palácio da Pena. Numa das notas que compilei antes conhecer Sintra – notas que
acentuam a relação da literatura com a paisagem – encontrei as informações
sobre Ferreira de Castro. É um escritor totalmente desconhecido para mim, a
partir da lista dos que já citei antes. Alguém terá dito que é vergonhoso
registrar nossa ignorância sobre aquilo que não sabemos; eu, por descordar
disso, uma vez acreditar ser essa condição uma ponte para se galgar o
conhecimento, não escondo sobre o que não sei. Dos escritores que citei, é
verdade que de alguns não li obra alguma, mas conheço-os de nome e sobre os
feitos. Ferreira de Castro é quem, até antes de ir a Sintra, nunca ouvira
sequer o nome.
Bem, mas foi
ele quem, deixou registrado num texto de 1970 o desejo de estar sepultado nas
proximidades do Castelo dos Mouros: “desejaria ficar sepultado à beira de uma
dessas poéticas veredas [e são mesmo poéticas porque não são paisagens, são
telas que se desenham aos olhos do viajante] que dão acesso ao Castelo dos
Mouros sob as velhas árvores românticas que ali residem e tantas vezes
contemplei com esta ideia no meu espírito. Ficar perto dos homens, meus irmãos,
e mais próximo da Lua e das estrelas, minhas amigas, tendo em frente verde e o mar
a perder de vista – o mar e a terra que tanto amei”. O Castelo dos Mouros é um
pingo rústico ao traço sempre alinhado dos outros monumentos. É um diálogo entre
a harmonia e a discrepância da arquitetura. Construído entre os séculos VIII e
IX sobre o local de uma fortificação árabe, abandonada pelos seus defensores
depois da aproximação do exército de D. Afonso Henriques durante a época da
Reconquista no século XII.
Para findar essas notas gostaria de que ficasse registrado o desejo de voltar. E ficar mais tempo para conhecer o que ficou por conhecer. Rever com outros olhos o que revi – depois do encantamento. Captar minúcias que a pressa pela brevidade do tempo não me permitiu captar. Mas, se todos os caminhos levam a Sintra, sinto que um retorno não tardará.
Para findar essas notas gostaria de que ficasse registrado o desejo de voltar. E ficar mais tempo para conhecer o que ficou por conhecer. Rever com outros olhos o que revi – depois do encantamento. Captar minúcias que a pressa pela brevidade do tempo não me permitiu captar. Mas, se todos os caminhos levam a Sintra, sinto que um retorno não tardará.
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