Seja como for, Agatha Christie é Agatha Christie



"Eu me senti tão poderosa! [...] Os outros me achavam simplesmente maravilhosa, e claro que seria ótimo para eles me conquistar. Mas eu sou tudo o que você menos gosta e mais desaprova, e no entanto você não resistiu a mim! Minha vaidade não aguentou. É muito melhor ser um pecado secreto e uma fonte de prazer para alguém do que ser uma conquista fácil. Não lhe dou conforto nenhum e o perturbo todo o tempo, e no entanto você me adora loucamente. Você me adora loucamente, não adora?"

Esta é a companheira do pastor, no início de Assassinato na casa do pastor de Agatha Christie, escritora sempre lembrada apenas pela capacidade brilhante com que soube engendrar o mistério no romance policial. Mas, a citação acima prova que esta definição é abusiva. A obra de Christie é muito mais do que um grande quebra-cabeça. Cada um dos seus romances demonstra uma profunda compreensão sobre as pessoas – como elas pensam, sentem e se comportam – todas sempre entregues ao seu estilo elegante e adoravelmente simples e legível. Capaz de imergir quase que instantaneamente o leitor num mistério, Christie finda por deixá-lo não notar a inteligência crítica que é polvilhada ao longo das narrativas. Provavelmente isso acontece porque você está sempre mergulhado numa profunda diversão ou rosnando de frustração porque adoraria ser capaz de adivinhar a solução para a longa charada que ela desenvolve e não pode alcançá-la.

Então, por que tanta gente esteve ou está determinada a subestimar a escritora? Raymond Chandler chegou a zombar que alguns mistérios que tinham Hercule Poirot como detetive eram mal construídos e, portanto, não estava aí o grau de dificuldade do leitor em alcançar uma compreensão sobre. "Conan Doyle e Poe foram primitivos nesta arte para os melhores escritores modernos assim como Giotto está para Da Vinci. Eles fizeram coisas que não mais permitidas e expuseram ignorâncias que não podem mais ser toleradas. Agatha Christie comete as mesmas idiotices hoje em dia, mas isso não as torna corretas" (Notes on the mystery story). E chegou a chamar o desdobramento de Assassinato no expresso do Oriente de algo para retardado.

Para Chandler, a única forma de escrever romances policiais era seguir os protocolos do realismo estadunidense inaugurado por Dashiell Hammett em O falcão maltês que ele considerava uma verdade obra-prima. A nova maneira de escrever romances policiais (e novamente eis a crítica a Agatha) invertera as coisas e toda trama agora estava viciada em construir apenas boas cenas e não ser boa trama.

Para o também escritor de romances policiais, Christie chegava a descartar tudo o que deu forma à idade de ouro do romance policial britânico; para ele, os casos de criminalidade eram superficiais. Logo, alguém que não está preocupado um puzzle narrativo ou com a boa construção do mistério devia escrever num outro gênero que não o policial. Bem, a escritora chegou a receber muitas cartas de desculpas de críticos e outros escritores que, como Chandler, em alguma ocasião tinham talvez se sentindo culpados pela crítica ferrenha que lhe fizeram. Não do pai do detetive particular. 

O que Chandler e outros não conseguiram entender sobre o projeto artístico de Christie foi o de tornar aquilo que era aparentemente trivial ao romance policial em elemento vital para a sustentação da narrativa e, consequentemente, da trama. Ela sabia que o detalhe importava; sabia que aqueles que ignoram aquilo que é menor aparentemente têm pouca ou nenhuma chance de compreender verdades maiores. 

É por isso que o enigma, apesar de ser a dorsal da narrativa, só alcança ser resolvido não pela urgência mas quando tem elementos suficientes para compreendê-lo; e por isso que a trama sempre ocupa o lugar principal num romance de Christie. Ela sabe que o leitor está ali para saber o que uma pessoa fez e tentou esconder. E não só: quer saber ainda o porquê de ter agido exatamente de uma e não de outra maneira. Se Chandler criticou o excesso de enredo, Christie via que sem enredo não é possível criar confiança do leitor pela personagem. Ela compreendeu isso e introduziu a dissimulação como elemento no processo de construção da trama policialesca. 

Suas personagens são adequadamente, de maneira realista, tridimensionais – o que também nem sempre é visto pela crítica depreciativa sempre preocupada em lembrar que a construção de suas figuras é sempre rasa, em duas dimensões. A terceira dimensão de uma personagem sua muitas vezes é traço sublimado em grande parte do romance e o que é sempre relevo é a forma pela qual a própria personagem gostaria de ser percebida: como um tipo. Christie pensou em tipos porque são mais marcantes, têm brilho próprio, são perceptíveis de imediato pelo leitor. É isso mais uma estratégia de desvirtuar ou virtuar a atenção sobre determinadas figuras. A terceira dimensão ou sua verdadeira máscara se apresenta como lampejos ao longo da narrativa. É nela onde parece residir a natureza real do assassino, ou de uma pessoa cuja disposição na trama pode torná-la capaz de ser o assassino; esses traços são essenciais se o leitor quer encontrar a chave para resolver o mistério uma vez que em Agatha, diferentemente de outros romances, todos são, de fato, suspeitos.

Há, desse modo, vários níveis possíveis de exploração dos romances de Agatha Christie. E é sempre um desafio uma leitura mais acurada. Seus livros são capazes de ser, ao mesmo tempo, simples o suficiente para que uma criança de 12 anos compreenda o que está sendo dito e complexo ao ponto de representar um desafio e tanto para um adulto. São leves. Não é uma literatura erudita. Ela nunca esteve interessada na erudição porque tinha pelo livro a ideia de entretenimento. Para o leitor, por mais crítico que seja, não há possibilidade de ficar apenas nos romances mais densos; há ocasiões que pedem leituras leves.

A escritora via a literatura como um divertimento e, mesmo tratando de temas tão macabros, como o assassinato, ela tinha ciência de que uma narrativa do tipo poderia servir de atrativo para mentes más. E por isso boa parte de seus textos têm certas chaves pedagógicas ao longo da narrativa. Por exemplo: em Morte no Nilo, Hercule Poirot avisa a Jackie Bellefort: “Não abra seu coração para o mal. Porque – se você fizer – o mal lhe virá [...] fará uma casa dentro de você e depois de algum tempo já não será mais expulsá-lo”*.

Poirot, aliás, é uma das figuras mais importantes da cena policial na literatura. Sua personagem é uma mistura milagrosa de opostos, além de ser um caricato investigador, um memorável, com tonalidade vocal própria; é um tipo muito bem desenhado – de bigodes exuberantes, modos agitados, um misto de super-herói do raciocínio, daqueles que aparecem quando necessário e só saem de cena depois de resolver um crime. Sim, é tudo isso, mas é também uma pessoa real, com profundidade; tem um passado de dor, claro, ocultado, porque, para Agatha sua presença como ator ou aquela peça que tudo resolve é sempre o mais importante para a trama. Talvez, por isso, tenha uma existência tão duradoura como um Sherlock Holmes...

Agatha não seria uma criadora de tipos e de situações se não tivesse uma compreensão muito coerente da vida social e individual das pessoas. É essa finesse que foi capaz de criar obras que seguem atravessando o tempo e vendo aos milhares de milhões mais que outro escritor. Isso não a faz um gênio incomparável, é óbvio, mas também não deve ser desprezada como muitos fizeram ou fazem. É necessário sempre redescrobri-la. 

* Tradução livre a partir do texto em inglês.

Ligações a esta post:
Uma matéria apresenta dez títulos indispensáveis para conhecer a obra de Agatha Christie.

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