Rubem Fonseca — 90 anos: o relançamento de A coleira do cão
Por Alfredo
Monte
«João
continuou: Já viu coisa igual? Não acha que ele pode ser o campeão?. Eu disse:
Talvez, ele tem quase tudo, só falta um pouco de força e de massa. O crioulo,
que estava ouvindo, perguntou: Massa? Eu disse: Aumentar um pouco o braço, a perna,
o ombro, o peito, o resto está — ia dizer ótimo mas disse: bom. O crioulo: E
força? Eu: Força é força, um negócio que tem dentro da gente. Ele: Como é que
você sabe que eu não tenho? »
(trecho de
“A força humana”)
1
Dois dos nossos escritores mais cultuados, ambos
mestres na arte do conto, comemoram 90 anos em 2015: Dalton Trevisan e Rubem
Fonseca, este último agora em maio — e um de seus títulos fundamentais, A coleira
do cão (1965), tornando-se cinquentenário, ganhou nova edição pela Nova
Fronteira1.
Nele
estão reunidos oito contos que ajudam a compreender por que Fonseca influenciou
de forma decisiva, para o bem e para o mal, a ficção nas últimas décadas, sendo
imitado à exaustão, inclusive nos seus maneirismos (a pseudo-erudição que infesta
seus romances, muito ruins, na minha opinião) e na sua inclinação ao gênero
policial. Eles valem tanto como registro histórico de um momento em que a
balança da realidade nacional pendeu definitivamente para o urbano na
imaginação literária («Ah, estava explicado, pensei, o Rio estava ficando
diferente»), quanto como demonstrações cabais do que não mudou e resiste até
hoje de forma lamentável: o classismo, o machismo, o racismo, a exploração, a
corrupção, a desmoralização da sociedade civil2 — espantoso é que,
passado o regime militar, tudo isso persista—, mesmo que o “vocabulário” seja
vigiado pelo “politicamente correto” (não é mais tão “natural” e “inofensivo” usar o termo “crioulo”, como
fazem os personagens do livro). Até a atualíssima questão da diversidade sexual
aparece, embora no texto mais frágil do conjunto, “A opção”.
2
Já o texto de abertura, “A força humana”, é
um dos maiores momentos da nossa literatura. O narrador é um personagem
recorrente nos primeiros livros fonsequeanos, o fisiculturista-galã, no fundo
intrinsicamente solitário, prisioneiro da incomunicabilidade—o que repercutirá,
aliás, em todos os relatos de A coleira do cão3. Ao levar para a sua
academia, devido ao potencial do seu corpo («Eu ainda não tinha visto o crioulo
sem roupa, mas fazia fé—a postura dele só seria possível com uma musculatura
firme»), um jovem que conhecera por acaso, acaba (como Bette Davis, em A malvada) arranjando um sinuoso rival e sendo desbancado4.
A voz narrativa é um feito, um daqueles
exercícios de linguagem inconfundíveis, mais fascinante ainda porque
multiplicado em outras “vozes” notáveis ao longo da coletânea, como a do rapaz
que tenta aproveitar um fim-de-semana sozinho em seu apartamento (os pais
viajam) para arranjar uma mulher, no excepcional “Madona”, e que ao cabo de um
irrisório périplo de atividades
praieiras, barzinhos, festinhas e paqueras, tem de se contentar com uma
“rapidinha” furtiva com uma das empregadas domésticas de seu edifício: «... um dia que se acabou é um dia que se
acabou, não volta mais, está perdido, sumido, é um bem que se foi, um pedaço
perdido do tesouro, do tesouro de poucas riquezas...».
Também antológicos: “Relatório de Carlos”,
no qual acompanhamos o declínio de um advogado cujo maior prazer era “reeducar”
as amantes; e o conto-título, que coloca em foco não apenas o cotidiano de uma
delegacia como um dos nossos maiores impasses civilizatórios, ainda agora: a
violência policial.
E o que dizer do recatado romance que se
estabelece via telefone entre uma dona de casa e um inválido (“O gravador”), ou
do vigoroso retrato dos conflitos de uma família de raízes portuguesas, aquelas
que associamos às padarias e a uma parte essencial do pequeno comércio no
Brasil, e também a muitos dos nossos “valores” dominantes (“O grande e o
pequeno”)?
E, apesar de antecipar a futura afetação do
Rubem Fonseca “maduro” (e que tanto corroeu a qualidade da sua obra a partir
dos anos 1980, com algumas exceções como “O buraco na parede”, de 1995) “Os
graus” traça um impressionante perfil do desalento de um amante envelhecido. Pois
como pressente o ainda muito jovem Sérgio, de “Madona”: « ... o ruim do mundo
eu ainda não tinha visto, mas faltava pouco, muito pouco para que isto
acontecesse».
Notas:
1
Na Coleção Saraiva de Bolso.
2
Até as reclamações das “pessoas de bem” (as quais, via de regra, são as mais
discriminatórias), capitaneadas pela mídia dominante, continuam as mesmas: «A
cidade está entregue à sanha dos marginais. A polícia nada faz. Os habitantes
desta cidade já não podem mais sair à rua sob pena de serem assaltados e
perderem os seus bens ou terem a própria vida estupidamente sacrificada...»,
lemos numa matéria de jornal do conto “A coleira do cão”.
3
«.Não quero saber coisa alguma da vida de ninguém, prostituta, mulher de
família, presidente da República, artista de cinema, a vida dos outros não me
importa, o que importa é a minha vida. A minha vida.», lemos em “Relatório de
Carlos”.
4
«... e João olhou para mim com cara de amigos-amigos-negócios à parte, com cara
de contar dinheiro — já se respaldava no crioulo...»
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