Reificação, coisificação e insensibilidade
Por Rafael Kafka
Um dia, eu
conversava com uma conhecida minha no campus do Instituto Federal do Pará em Belém. Acabáramos de
sair de uma reunião com o Ministério da Educação que avaliaria se nosso curso
seria legalizado e teríamos, enfim, o direito de retirar nosso diploma, que
esperava essa burocracia para ser retirado. Dirigimos-nos para uma área mais
aberta e passamos a conversar sobre coisas variadas da existência até chegarmos
ao então emergente Facebook. Isso era meados de 2011, uma época na qual eu
estava bastante preso às redes sociais, mais preso do que hoje até, lendo bem
pouco e não sabendo como sair da teia que eu criara ao meu redor após sair da
primeira faculdade.
Observava
as redes sociais como grandes painéis humanos nos quais as pessoas mostravam-se
do modo mais aprazível possível para as suas audiências. Ainda acostumado com a
interface do Orkut, preso por demais às comunidades e aos recados e
depoimentos, fiquei chocado com aquele mundo de informações que de repente se
me aparecia. O fato mais curioso para mim é que se antes o Orkut praticamente
anulava a possibilidade da exposição grandiloquente de ideias na forma de
discursos e aforismos cibernéticos, agora tudo isso era possível no Facebook.
As pessoas
começaram a falar de tudo o tempo todo, a compartilhar coisas que expressavam
suas visões de mundo, a fazer piadas e a discutir política. Ao mesmo tempo, os
canais de comunicação se ampliaram e críticas cada vez mais frequentes sobre os
fatos vivenciados por nós tornaram-se mais comuns. As pessoas estavam no ápice
da transparência pós-moderna, elas não tinham mais medo de se mostrar e muito
menos o desejo de não se mostrar.
Enquanto a
conversa com essa conhecida seguia, discutimos sobre essa então nova rede
social e seu poder de alcance e ela citou algo muito interessante: todos no
Facebook queriam ser filósofos, pensadores, opinadores. Até hoje, lembro
bastante do que ela disse, pois isso já deveria existir em outras redes
sociais, sem, contudo, todo aquele poder interacional que passara a ser visto,
então. Os painéis humanos se tornaram mais vívidos e as pessoas começaram a se
prender mais ainda ao seu desejo de serem notadas, lidas, ouvidas se possível.
Assim como
ocorria com a televisão antes, os indivíduos começaram a se ver absorvidos de
uma forma muito forte por aquela rede e viam ali verdadeiros diários em que
expressavam suas verdades, desejos, sentimentos, opiniões mais profundos.
Boatos foram viralizados, análises políticas entraram em voga, vídeos serviram
como provas mesmo que incertas de discursos falhos de certos políticos e memes
serviram como opiniões sobre poder e tudo mais contundentes em sua pequenez.
Hoje, quase
quatro anos depois daquela conversa, e sem quase nenhum contato com a conhecida
em questão, penso demais naquele diálogo. Com o passar desses anos, criei uma
noção mais forte de que expressamos aquilo de que estamos cheios. O que lemos
mostra-se no que falamos e escrevemos e nada lemos, nossos discursos se tornam
puramente repetições de ideias pré-fabricadas. Isso a cada novo acesso no
Facebook se torna mais evidente - e deprimente - para mim. Todos querem
escrever suas verdades, expor suas opiniões, discutir política de um modo unilateral,
sem colocar as ideias na mesa, sem discutir as bases de seu fundamento e aquilo
que se encontra além de suas fronteiras.
Muitas
vezes, o que vemos em debates com tais tipos de pessoas são provas claríssimas
de que somos uma sociedade marcada por valores machistas, misóginos,
homofóbicos e classistas. Os debates muito rapidamente saem de uma esfera de
discussão racional e descambam para as ofensas, para o ad hominem, com todos
querendo dar um jeito de superar o interlocutor, mesmo que no grito apenas. São
debates em que mulheres são chamadas de putas, homens pró-feminismo de
manginas, negros de vitimistas por quererem defender as pautas sociais que a
eles concernem e homo e transsexuais de aberrações por quererem fazer aquilo
que somente a heterossexuais é dado como direito.
O Facebook
e todas as redes sociais são um reflexo vivo do modo como o analfabetismo
funcional toma conta da mentalidade de boa quantidade dos brasileiros. Nele,
vemos claramente como a reificação, a coisificação e a falta de sensibilidade
são aspectos muito comuns à índole do povo que habita em nosso país.
*
Reificação
é o processo de repetir as verdades ditas por outrem. Todo discurso é proferido
em dado contexto e em dado momento, por pessoas ou instituições as quais se
utilizam da palavra como forma de assegurar o seu poder político em dado
contexto. Muitas vezes, perdemos o acesso à raiz desse discurso em sua gênese e
o repetimos sem ter clara noção do que ele quer dizer realmente. Um exemplo
claro disso é a frase que diz ser o trabalho algo que dignifica o homem. As
pessoas repetem isso de uma forma muito ingênua por ignorar as diversas mazelas
trabalhistas com as quais temos de lidar, desde a falta de condições de exercer
nosso ofício de forma segura até a insatisfação por estarmos a fazer algo que
possui prestígio econômico mas não nosso amor. Fora o fato de ser o trabalho
algo alienado na sociedade capitalista na qual vivemos: trabalhamos não em prol
de nosso prazer, mas para obtermos um salário no fim do mês. O trabalho produzido
por nós é um trabalhado dado a outro, ao patrão. Trabalhamos para não morrermos
quando deveríamos trabalhar com o intuito de ampliarmos os limites de nossa
vida, de vivermos mais.
Termos como
“vagabundo” são utilizados para classificar criminosos que não se enquadram
nessa lógica do trabalho como dignificador da alma. Mesmo que o trabalho não
dignifique quase ninguém, devemos estigmatizar aqueles que não se enquadram na
lógica do cidadão de bem trabalhador com termos que indiquem sua inferioridade
como ser humano.
O grande
problema da reificação é que ela nos leva à coisificação. A palavra, ao
contrário do que pensam muitos, é uma ação concreta. Discursos literários ou
não causam efeitos positivos, concretos, no outro. Raiva, carinho, esperança,
amor, etc. Todos esses sentimentos são causados em nós e por nós pelas ações
concretas dos seres humanos, a começar por suas palavras. É por isso que uma
piada com cunho racista, por exemplo, não é apenas uma piada. É um discurso
risível para aquele que se sente confortável em causar uma dor no outro por ele
ser ridículo, inferior, ao modo de ver do piadista. O riso desse outro é um
riso de superioridade, é um riso de quem, mesmo que inconscientemente, por
repetir sem parar uma estrutura linguística e um discurso apologético de tal
prática (é só uma piada) quer mostrar ao outro o seu devido lugar dentro de um
meio social.
Quando confrontado, provavelmente
esse piadista dirá não ser racista, pois tem amigos negros em seu ciclo íntimo
e mesmo com as piadas os trata de forma respeitosa. Quando confrontado, ele
provavelmente se negará a ver aquilo como racismo e irá querer discutir sobre
isso sem sequer ler sobre o que é racismo em suas mais diversas formas,
pensando que é a mesma coisa chamar um branco de palmito ou um negro de macaco
e que o racismo some quando paramos de falar nele. Por não se preocupar em ler
sobre o tema, essa pessoa irá ignorar casos de mortes em favelas e áreas de
invasão causadas por ações truculentas do Estado que deixa aquelas populações
sofrerem ao léu e, depois, para mostrar serviço, manda suas tropas cuidarem bem
da segurança pública com tiros e truculência. Essa pessoa provavelmente não vai
estranhar o modo como a grande mídia representa ou deixa de representar o povo
negro e terminará dizendo que tudo é mimimi.
A
coisificação é essa certeza absoluta de que o dizemos é correto. Não preciso
estudar muito sobre isso, nem me deter muito sobre o tema: ele é o que é.
Racismo não existe. E quando ele perceber que alguém está a discutir racismo,
dirá que o mundo está chato demais pois nem se pode mais fazer piadas como
antes. O ser coisificado chegou a um grau extremado de reificação e se nega a
sair de nicho intelectual com todas as forças possíveis. Ele xinga sem cessar,
pois para ele não é o debate que importa e sim a violência, a insensibilidade.
O mostrar que ele tem razão mesmo que em suas palavras não vejamos nada de
racional.
Chegamos
por fim à insensibilidade. O ser coisificado é insensível por sua incapacidade
de sair de seu locus, de ver o que se passa ao redor. De ir à raiz profunda do
problema. É o nível mais perigoso de coisificação, algo muito similar aos
trolls de internet, preocupado apenas em querer silenciar todo tipo de
movimento social ou tentativa de mudança da sociedade por grupos mais ou menos
organizados. Do seu canto, ele se julga superior por simplesmente aceitar as
coisas como elas são e fala, em tom erudito, as verdades mais proferidas e
batidas pela mídia sensacionalista.
Vejo muios
seres assim no Facebook e perco tempo demais discutindo com essas pessoas,
confesso. Neste momento, penso seriamente em parar de seguir ao menos no
Facebook as páginas dos grandes jornais do país apenas para evitar as partes de
comentários. Há o Twitter que dificulta mais a visualização de tais páginas e
me permite uma visualização melhor dos conteúdos ali veiculados. Deixarei o
Facebook para as páginas que sigo com um intuito mais ideológico do que
informacional, seja para rir ou aprender mais sobre os temas que me interessam.
Ainda verei de vez em quando grandes comentários cheios de ódio, porém creio
que a quantidade dos mesmos cairá sensivelmente após eu tomar essa decisão.
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A
reificação está por todos os cantos. Assim como a insensibilidade. Dando aulas,
percebo isso claramente. Os meus alunos em geral não gostam de ler e seus
discursos são a repetição pura e simples do que ouvem em casa, na televisão e
em suas rodas de conversa nos corredores da escola. Quando recebem um
contraponto ideológico diferente dos seus, eles acabam tendo uma reação de
desinteresse e agressividade em diversos momentos.
Falar de
leitura enquanto atividade democrática deve ser um debate cada vez mais
presente em nossa sociedade caso as pessoas realmente se preocupem em viver uma
realidade mais humana e crítica. O que vejo em meu cotidiano são seres
desesperados por um norte e sem a capacidade de procurar por conta própria, o
que os leva a aceitar de imediato a ideia mais plausível com a sua vivência
vista de um modo rasteiro e raso. São pessoas que usam vídeos do Facebook,
correntes do WhatsApp ou memes com erros ortográficos, além de falácias de
grandes discursadores, como fontes de embasamento de discursos. São pessoas que
se negam a ouvir as falas de um adversário e preferem ouvir as falas de uma adversário
do adversário com uma interpretação deturpada do que o outro disse.
O grande
problema político da falta de leitura é a coisificação do ser, é a crença
ingênua em tudo. Claro que há leitores que leem por status ou por mera
distração e também são facilmente seduzidos pelas respostas fáceis diante de
problemas complexos. Mas no geral, em nosso país, a falta de hábitos
sistemáticos de leitura faz com que as pessoas passem apenas a repetir tudo o
que ouvem e parece ter sentido até que elas se tornam insensíveis ao outro e a
seus pontos de vista.
Dentre
várias coisas, hoje eu acredito na leitura enquanto processo de formação de
mentes sensíveis, aptas ao debate, a ouvir o outro. A partir daí, com a
confrontação de argumentos e fontes, quem sabe podemos chegar a uma ambiente
mais promissor e democrático. Depois da sensibilidade em ouvir o outro, vem a
capacidade de procurar novas fontes de prazer e conhecimento, novas formas de
ver a realidade mundana como algo complexo e dialético, não estando apenas presa
a um modo de ser simplificado, como as grandes fórmulas sensacionalistas querem
fazer passar aos incautos.
Infelizmente,
não vejo grandes mudanças nas esferas mais altas de poder para os próximos
tempos. O que nos resta é lutar do modo que pudermos, é criar espaços de
resistência na web e fora dela, para que mais pessoas tenham contato com a
leitura em suas diversas formas e passem a ver o mundo por um olhar mais vivo e
vívido. Apenas assim, podemos começar a discutir seriamente mudanças
estruturais profundas em nossa sociedade, no sentido de sermos um meio composto
por criaturas autônomas e pensantes, que ficam na expelir ódio quando
confrontados.
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