Os quadros escritos de Alessandro Baricco
Por Alfredo
Monte
1
O
personagem-título de Mr. Gwyn (2011), de Alessandro Baricco, desaparece a certa
altura do relato— mais precisamente no capítulo 57 (num total de 68). Logo no
início, ele anunciara sua decisão de não mais escrever ou publicar livros. A
seguir, não podendo desembaraçar-se de uma vida dedicada às palavras, inventara
uma prática inusitada: observando uma pessoa, como um “quadro vivo”, num
cenário totalmente controlado, comprometia-se a entregar a ela (e tão somente a
ela, sem publicidade) o resultado verbal dessa contemplação («Era como
fazer-lhes uma mesa, ou lavar-lhes o carro. Um ofício. Escreveria o que eram,
só isso»). Por exemplo, com Rebecca, seu “modelo” primordial: «...qualquer
coisa que tivesse imaginado e notado dela, antes de entrar naquele estúdio, se
dissolvera completamente, ou não existira nunca. Assim como não lhe parecia que
o tempo passasse, lá dentro, mas sim que se desenrolasse um só instante, sempre
idêntico a si mesmo»1.
Mas a discrição com que ele exerce seu
curioso ofício de “copista”, como ele se denomina, é comprometida, a atividade
torna-se notícia (inclusive pelos altos valores envolvidos), e durante quatro
anos, Rebecca — que se transformara em sua colaboradora, ajudando-o a selecionar
os indivíduos a serem “copiados” — reconstrói sua própria vida (de fato, é quase
como uma segunda existência com relação àquela que o leitor acompanhara), sem
notícias do escritor: «Muito raramente acontecia-lhe relembrar Jasper Gwyn, e
sempre sem emoção especial. Eram recordações leves como cartões-postais
expedidos a partir de uma vida precedente». Até descobrir que Três vezes ao
amanhecer, romance póstumo encontrado entre os papéis de Akash Narayan,
professor de música anglo-indiano, reproduz um dos “quadros escritos”
produzidos durante aquela original experiência artística; ou seja, é uma
realização do sumido Gwyn.
Então, em sua origem, o romance de
Narayan/Gwyn pertencia ao círculo de obras criadas por um personagem, no
delicado e especialíssimo exercício borgiano-metalínguístico (um Paul Auster — e
faço essa aproximação devido à obsessão do protagonista de Baricco pela “tabula
rasa”, a ânsia de apagar os traços da sua vida anterior2 — que
tivesse um estilo à Italo Calvino, de inusitada leveza) que Mr. Gwyn representa
na ficção mais recente. Existia tão somente como referência, em comentários
trocados entre seres ficcionais.
O autor italiano
aprofundou o jogo de espelhos, ao publicar em 2012 Três vezes ao amanhecer3,
tornando “concreto”, por assim dizer, o que era apenas implícito. Como diz sua
nota inicial, pode-se fazer uma leitura do romance autônoma, com relação ao
anterior, porém sentiu vontade de escrevê-lo, «um pouco para dar uma leve e
distante sequência a Mr. Gwyn e um pouco pelo simples prazer de perseguir certa
ideia que eu tinha na cabeça»4.
© Edward Hopper. Excursão filosófica. |
2
Três vezes ao amanhecer, como o título
indica, divide-se em três episódios distintos (mas que sugerem uma proximidade biográfica: poderiam ser momentos da vida de um mesmo
indivíduo), todos eles iniciando-se num hotel.
No primeiro deles, um homem de 42 anos está
sentado no hall, quando chega uma mulher que, embora se dizendo hóspede, pede
que ele a leve para o seu quarto. A todo instante, o homem reitera que precisa
partir, pois tem um compromisso comercial, no entanto vai se deixando ficar,
como se sua vontade ficasse cada vez mais “amolecida” diante daquela estranha — curiosamente,
não há “sedução”, mesmo que ela fique nua no quarto, deitando-se na cama: é uma
noite “errada” (há a «vaga impressão de que era uma hora errada para um monte
de coisas»). Vai amanhecendo. Saberemos que o nome do homem é Malcolm Webster
quando a polícia bater à porta para levá-lo....
No segundo, um velho porteiro noturno
observa consternado a chegada de um casal: deplora que a moça, adolescente de
encanto irresistível (embrutecido pelo que ele tacha de “maldade”), esteja com
um parceiro tão desclassificado, aliás violento e barraqueiro, desperdiçando
assim sua juventude. Consegue convencê-la a sair do hotel em sua companhia,
após revelar a ela que passou anos na prisão. O amanhecer os surpreende em
fuga: «Seria uma trabalheira compreender a história deles, ao vê-los...Talvez
um pai e uma filha, mas nem isso». Eles acabam por separar-se, e quem alcança o
velho porteiro é o parceiro dela...
No terceiro, uma policial cinquentona decide
ser um pardieiro inaceitável o hotel para onde foi levado um garoto (chamado
Malcolm), o qual perdeu os pais num incêndio criminoso que destruiu sua casa;
contrariando ordens superiores, coloca-o num carro e dirige através da
escuridão da noite para deixá-lo, ao amanhecer, com um homem que constrói
barcos e com quem tem uma longa história de idas e vindas...
Pelos esquemáticos sumários acima, pode-se
perceber a dramaticidade fundamental nas três histórias, ligadas todas elas
pela ideia de possibilidades de recomeço (como o próprio amanhecer indica),
fugas, saídas possíveis (ou impossíveis) de impasses. E pela concentração
temporal, o espaço de uma noite, sem falar no investimento maciço na arte do
diálogo (Baricco se mostra um mestre, nesse quesito), funcionariam à perfeição
no teatro ou no cinema. Cada uma delas vale por si mesma, devido justamente a
essa concentração — em termos dramáticos, espacial e temporalmente.
Ainda assim, insisto na janelinha que abre
esses três textos esféricos (ainda uma saída, uma passagem virtual, como a que
se apresenta fugazmente para a existência dos personagens) para uma interface
com Mr. Gwyn, em especial, com o «talento singular» de seu protagonista, para
não falar da perseguição de «certa ideia que tinha na cabeça» o nosso autor em
questão.
3
No encontro em que Gwyn faz a Rebecca a
proposta de ser seu primeiro modelo numa experiência a qual nem mesmo ele sabe
o que significa (e que, em termos verbais, nunca será explicitada para o
leitor), lemos:
«Depois se entregou a uma confissão, coisa
que não lhe era habitual, e disse que, em outra vida, gostaria de ser um lobby
de hotel.
— Trabalhar
em um lobby, o senhor quer dizer?
— Não, não,
ser um lobby, fisicamente».
Antes
de descoberta pela mídia, a atividade de “copista” e a colaboração com Rebecca
rendem nove “retratos”. Ao ler Três vezes ao amanhecer, ela percebe que a
primeira parte é muito semelhante a um deles («Era até verdade que resultava
mais longa, mas quando foi conferir, Rebecca verificou que as coisas
importantes estavam todas lá».
Como Jasper Gwyn deixou suas cópias dos
“retratos” aos seus cuidados, ela vai conferi-los e se dá conta de algo que lhe
escapara: havia, na verdade, dez “retratos”:
«Compreendeu-o de repente, com a velocidade
fulminante com a qual a gente às vezes compreende, muito tempo depois, coisas
que estão ali à vista desde sempre, basta saber olhá-las.
Pegou nas mãos o retrato que fora parar em Três
vezes ao amanhecer e começou a relê-lo.
Como foi que não pensei nisso antes,
perguntou-se.
O lobby do hotel, caralho.»
O que lemos na primeira parte de Três
vezes ao amanhecer é, portanto, além de um belo relato completo em si mesmo, o
autorretrato de Jasper Gwyn. Podemos rastrear, inclusive, sua obsessão pela
possibilidade, ainda que virtual, da “tabula rasa”: a misteriosa mulher que o
fisga, por assim dizer, impedindo-o de fugir antes da chegada da polícia, lhe
diz que «na realidade, quase ninguém, afinal, recomeça de fato desde o início,
mas não se tem uma ideia de quanto tempo as pessoas passam fantasiando sobre
isso, e muitas vezes justamente quando estão bem no meio dos seus problemas, e
da vida que gostariam de deixar». Mais adiante, essa mulher-nêmese (tal como a
literatura acaba por ser nêmese para Gwyn, o qual nunca deixará de produzir
livros, mesmo sob disfarces), insiste: «sabe o que compreendi? O homem não
respondeu. Compreendi que a gente não muda verdadeiramente nunca, não há jeito
de mudar, fica-se toda a vida do jeito como se é, desde pequeno, não é para
mudar que se recomeça desde o início. E é para quê, então?, perguntou o homem
[...] Recomeça-se para mudar de mesa, disse. Temos sempre essa ideia de ter
caído na partida errada, e de que com nossas cartas sabe lá o que
conseguiríamos fazer se nos sentássemos a outra mesa do jogo»5. O
autorretrato de Jasper Gwyn termina com um homem indo para a prisão.
Como Paul Auster escreveu, em Cidade de vidro
(que faz parte de outra reunião de três narrativas, a Trilogia de Nova York): «o
que interessava nas histórias que escrevia não era a sua relação com o mundo,
mas a sua relação com outras histórias».
© Edward Hopper. Um quarto em Nova York |
Todo o percurso acima me interessa
sobremaneira, é evidente. Todavia, deixei para o final o fator que considero
mais fascinante na decisão de Baricco em escrever Três vezes ao amanhecer.
Conquanto tenha gostado demais de Mr. Gwyn, queixo-me de que ele nos deixa na
mão, com relação ao experimento dos “retratos em palavras” de seu herói, os
quais permanecem mais um conceito do que uma experiência narrativa, apesar de
tudo o mais que o romance tem a nos oferecer em matéria de fabulação e
reflexão.
Afirmei que Três vezes ao amanhecer
funcionaria no palco ou nas telas (pelo menos, sob a batuta de um diretor
talentoso). Sua feição crucial (quase afirmaria: “mais verdadeira”), porém, é a
da experiência de Jasper Gwyn, enfim efetivada diante de nossos olhos, não
apenas um conceito ou uma possibilidade narrativa.
Ler esse livro é como ter quadros de Edward
Hopper metamorfoseados em textos, e não apenas “explicados” ou meramente
descritos. O leitor sente palpavelmente que, mesmo para além das fronteiras dos
hotéis (e Mr. Gwyn queria tanto ser o lobby de um qualquer!) em que os quadros “começam”
(suas molduras, pode-se dizer), nos reinícios que não sabemos se darão certo, o
que está ali pode até resultar “mais
longo” do que uma experiência pictórica tal como a de percorrer os quadros de
Hopper (para ficar num pintor que tão bem retratou a solidão, a angústia e a
incomunicabilidade em quartos e estabelecimentos6, e que,
paradoxalmente, se presta a um “olhar narrativo”), mas com a precisão mágica da
prosa e dos diálogos de Baricco, «as
coisas importantes estão todas lá».
O leitor pode fechar os olhos, após a
leitura, e visualizar: três pungentes retratos escritos. Cem páginas que valem
por três imagens.
© Edward Hopper. Verão na cidade |
Notas
1
Em todas as citações dos textos de Baricco, utilizo as traduções de Joana Angélica
d´Avila Melo publicadas pela Alfaguara.
2
De fato, um dos protagonistas de Auster, Sidney Orr (de Noite do oráculo,
2003), escreveu um romance intitulado Tabula rasa.
3
No original, Tre volte all´alba.
4 Mais
adiante, ainda que insistindo na autonomia da narrativa: «isso não impede que,
em sua primeira parte, ele mantenha aquilo que Mr. Gwyn prometia, isto é, um
olhar a mais sobre o curioso caso de Jasper Gwyn e do seu talento singular». A
meu ver, não só nessa parte, e sim no livro como um todo.
5
Note-se que essa perspectiva lança uma aura de antecipada ironia sobre as duas
histórias a seguir, centrada nas possibilidades de recomeço que os personagens
mais velhos (o porteiro noturno e a policial veterana) tentam abrir para seus
jovens interlocutores, a adolescente e o garoto.
6
E Jasper Gwyn diz: «Um dia percebi que nada mais me importava e que tudo me
feria mortalmente...»
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