Os Cavalinhos de Platiplanto, de José J. Veiga
Por Leila D. P. do Amaral
José J. Veiga nasceu em 20 de
fevereiro de 1915, em uma fazenda localizada entre os municípios de Corumbá de
Goiás e Pirinópolis. O contato com a literatura aconteceu cedo. Ainda menino,
leu todos os clássicos brasileiros e portugueses que o Gabinete Goiano de
Leitura possuía em seus arquivos. Mais tarde, entrou em contato com autores
estrangeiros e um, especificamente, Franz Kafka, marcou-o profundamente. Veiga
se apaixonou pela obra desse escritor tcheco e, a exemplo dele, criou histórias
em que a realidade aparece transfigurada. A estréia na literatura aconteceu em
1958, com a edição dos contos reunidos em Os Cavalinhos de Platiplanto, um
livro sobre memórias de infância.
Assis Brasil destacou em entrevista
que “para José J. Veiga, o mundo é que está em face do homem, assim como a
sociedade. O homem não é complexo, tem suas pequeninas normas de vida, sua
conduta preestabelecida, é simples e despretensioso – o mundo e a sociedade é
que o achacam, que o invertem”.
Tomando como referência o conto que
dá nome ao livro (e com ele busco compreender o grupo de textos aí apresentação), é no conjunto de imagens produzidas por Veiga que podemos
buscar aquelas que possibilitarão compreender a “simplicidade” do homem e de
que maneira o mundo e a sociedade estão em face do mesmo. Como o protagonista
de Os Cavalinhos de Platiplanto é um menino, as imagens produzidas pelo autor
são repletas de um imaginário infantil, característico das crianças.
Se pensarmos a partir de uma
perspectiva benjaminiana, o pensamento encontra seu canal de articulação nas
imagens e não nos conceitos. A imagem possibilita o acesso a um saber arcaico e
a formas primitivas de conhecimento, às quais a literatura sempre esteve
ligada, em virtude de sua qualidade mítica e mágica.
Há uma situação-problema vivida pelo
protagonista, a doença do avô e, consequentemente, a impossibilidade deste de
cumprir uma promessa: dar-lhe um cavalinho. Em torno dessa situação,
aparentemente comum, se desenvolve uma gama de significações e de imagens que
culminam numa nova realidade.
O avô – Rubem – representa o eixo da
família, a figura da autoridade patriarcal. Isto se percebe no respeito a ele
devotado por toda a família. A regra principal era não contrariá-lo. “(...) era
uma regra assentada lá em casa que ninguém deveria contrariar vovô Rubem”.
Nos diálogos entre o protagonista e
seu avô, podemos constatar algumas passagens que denotam o momento de trânsito de uma fase da vida para outra. “(...) Você não é mais desses menininhos de
cueiro que não tem querer. Na festa do Divino você já vai vestir um parelhinho
de calça comprida que eu vou comprar, e vou lhe dar também um cavalinho pra
você acompanhar a folia”. Em outra passagem, a preocupação do avô Rubem no
momento de decisão sobre lancetar ou não o pé, também demonstra que a
responsabilidade é do menino, ainda criança, e não de seus pais. “(...) Mas
essas coisas, mesmo sendo preciso, quem resolve é o dono da doença. Se você
disser que não pode, eu não deixo ninguém mexer, nem o rei... (...) Meu avô era
um homem que sabia explicar tudo com clareza, sem ralhar e sem tirar a razão da
gente. Foi ele mesmo que chamou Seu Osmúcio, mas deixou que eu desse a ordem”.
No entanto, o que era apenas uma dor
física, o fato de ter que lancetar o pé, acaba por se transformar numa dor
existencial – a perda do avô e do cavalinho prometido. Aqui inicia-se um
processo de “amadurecimento”. O protagonista, agora, se vê sozinho frente a um
mundo vivido pela primeira vez em toda a sua dimensão. “(...) Eu não entendia
por que uma pessoa como meu avô Rubem podia mudar, mas fiquei com medo de
perguntar mais, mas uma coisa eu entendi: o meu cavalinho, nunca mais. Foi a
única vez que eu chorei por causa dele, não havia consolo que me distraísse.
A partir desse momento, todas as
imagens criadas pelo autor contém uma significação especial que denota como o
protagonista lidou com essa nova realidade, sem o avô, e que sentidos
marcaram-no nesse processo de crescimento e conhecimento. Por exemplo, a imagem
da “ponte de escalar” em construção, que pode ser associada à ideia de vida num
continuum existencial. Além de ter que ser atravessada, só se pode fazê-lo
escalando “degrau por degrau” e preenchendo as lacunas para que não haja
sofrimentos posteriores. “(...) A gente chegava lá indo por uma ponte, mas não
era ponte de atravessar, era de subir...(...) Vai colocando essas pedrinhas nos
lugares, uma depois da outra, porque se os buracos ficassem abertos, de noite
muita gente ia chorar lágrimas de sangue”. Depois de escalar a ponte e perceber
que foi capaz de fazê-lo, o protagonista se sente realizado. “(...) quando desci
pelo outro lado e olhei a ponte enorme e firme, resistindo ao vento e à chuva,
senti uma alegria que até me arrepiou...”. O menino cresceu.
Mesmo assim, apesar da imagem de
ameaça representada pelo Tio Torin – treteiro desde menino – e que jamais cumpriria
a promessa do avô, configurando-se, portanto, num obstáculo, o protagonista se
vê frente a frente com seu desejo: o cavalinho prometido. No entanto, jamais
poderá tirá-lo de onde ele se encontra – Platiplanto, o seu mundo imaginado – e
nem separá-lo dos demais cavalinhos. Mas sempre poderá voltar a vê-lo. Essa foi
a solução encontrada pelo protagonista para superar a dor da perda do avô e
crescer. Incorporou, a seu modo, a situação-problema vivida, mas ao mesmo tempo
correspondendo às expectativas do mundo social no qual estava inserido.
Ligações a esta post:
Leia resenha sobre A hora dos ruminantes, aqui.
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Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás – UFG; Mestrado em Sociologia da Cultura, também pela UFG; Doutorado em Sociologia da Cultura pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente realizando Pós-doutorado na Universidade da Beira Interior – UBI – em Portugal.
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