Por Alfredo Monte
OS SOFRIMENTOS DE WERTHER
ENVELHECIDO
“Que ora devo esperar de algum
rever,
Da flor ainda fechada deste dia?
Com Paraíso e Inferno a te
envolver,
Na indecisão tua alma se angustia!
–
Adeus, ó dúvidas! No umbral dos
Céus
Ela te leva a alçar nos braços
seus.
…
No Paraíso então foste acolhido,
Como se jus fazendo à vida eterna;
Finda a esperança, e o desejo
contido,
Cá estava pois a meta mais
interna,
E ao contemplar da singular beleza
Secava a fonte ansiosa da
tristeza.
(…)
A um seu olhar, como ao vigor
solar,
E a um sopro seu, como aos da
primavera,
Derrete-se o egoísmo a degelar
Toda a crosta invernal em que
estivera;
Finda o interesse, acaba a
teimosia,
Quando ela chega e os põe em
letargia.
…
É como se dissesse; `De hora em
hora
A vida se oferece amigamente.
Do passado o registro é incerto
agora.
Do amanhã é vedado estar ciente.
E se com a noite eu já me
amedrontei,
Com o pôr do sol, que brilha, me
alegrei.
…
Faça pois como eu: sensato e
rindo,
Olhe bem o momento! Sem tardança!
Com simpatia o tome por bem-vindo,
Quer em hora de ação, quer em
festança.
Ponha-se inteiro e puro onde
estiver,
Para tudo e invencível você ser.`
…
Bem dito isso, achei: se um deus
lhe deu
Do momento essa graça tão
presente,
Quem acaso ao amável lado seu
Um eleito da sorte não se sente?
Mas eu, mandado embora, o que
faria,
Já sem você, de tal sabedoria?
…
Ora estou muito longe! E o que
convém
Ao minuto atual não sei dizer;
O bom e o belo que dele me advêm
São apenas um fardo a rebater,
Ante a bruta saudade me impelindo,
Só me resta um remédio, o choro
infindo.
…
Choro que jorra e flui, mas não
tem jeito
De em meu íntimo a flama
arrefecer…
(…)
Perdendo o Todo, eu mesmo, que era
outrora
Favorito dos deuses, me perdi.
A me provar mandaram-me Pandora,
Que mais riscos que bens trazia em
si;
À boca dadivosa eles me alçaram
E, ao separar-me dela, me
arrasaram.”
Os versos acima são de um dos
mais famosos poemas de Goethe (1749-1832), a Elegia, composta por
23 sextetos, agora universalmente conhecida como Elegia
a Marienbad, e que faz parte de um pequeno volume chamado Trilogia
da paixão (que pode ser encontrado numa edição conjunta da Rocco com a
L&PM). A versão que utilizei foi feita por um dos nossos tradutores mais
admiráveis e escrupulosos, Leonardo Fróes.
A Elegia foi
escrita em 1823, aos 74 anos do autor. O doloroso episódio biográfico que o
inspirou (a paixão por uma mocinha de 19 anos, Ulrike von Levetzow) e que
alijou o poeta da posição de “favorito dos deuses” é o mote para um delicioso e
brilhante romance de Martin Walser (publicado em 2008, e traduzido no Brasil
por Renata Dias Mundt, em edição da editora Planeta), Um homem
apaixonado. Nele, encontraremos integralmente a Elegia (vertida
de forma literal pela tradutora, por isso, apesar da sua competência optei pela
versão de Fróes como intróito desta resenha).
Não vou entrar aqui no mérito da
conveniência ou não desse gênero de paixão (no caso, uma diferença de 55 anos),
que foi uma tendência da vida madura de Goethe. Só pretendo enaltecer as
virtudes de uma obra que ousa nos fornecer um retrato verossímil de um criador
quase inescrutável, apesar do teor confessional de boa parte da sua produção, e
do tour-de-force de Thomas Mann, ao retratá-lo num famoso capítulo
de Carlota em Weimar, obra-prima de 1939.
Na sua primeira parte, a narrativa
localiza Goethe e a família Levetzow (mãe viúva e três filhas) na Marienbad de
1823, que começa a se tornar uma estância badalada no “circuito das águas”
europeu. O ancião ocupa a posição mais eminente entre os homens de letras
europeus, e é seguido, bajulado, citado, ou seja, aquela coisa pomposa que
cerca a figura de Goethe como “ser olímpico”. Portanto, para as mulheres do clã
é um privilégio a convivência com ele, o qual há dois anos está fascinado por
Ulrike. Ela, por sua vez, parece manter sempre uma atitude de flerte,
provocativa e sedutora. O sucesso do “casal” enamorado (eles chegam a trocar
beijos, o que é evocado na Elegia) chegará ao auge quando
ganharem um concurso de fantasias, ele como Werther, seu personagem mais
famoso, e ela como Lotte, a amada do infeliz e suicida herói. Já nesse passo do
romance, Walser nos impressiona porque, seguindo os meandros mentais e sentimentais
de Goethe, nem por isso deixamos de pressentir, pulsando sob diálogos
admiráveis em elegância e discrição, as intrigas da pequena sociedade ali
instalada para o verão. Nessa parte, há também a constrangedora e cruel cena da
queda de Goethe (num colóquio no escuro com Ulrike), em que se fica patente (e
patético, até no sentido etimológico de “páthos”) seu esforço desesperado de
manter a “dignidade”, grande meta dos seus anos tardios, mesmo movido por uma
paixão potencialmente ridícula.
Ele usa seu protetor e amigo, o
soberano de Weimar, para pedir em seu nome a mão de Ulrike. Na segunda parte,
vemos como, sem querer perder o apelo mundano da presença do grande homem, a
mãe da moça fará tudo para mantê-los sob vigilância, depois de uma discreta
fuga para Karlsbad, ele no encalço delas.
Quando se pensa que não há o que
avançar no romance, ele se torna melhor ainda: Goethe voltou a Weimar e
escreveu a sua Elegia. O que fazer com ela? Não a pode mostrar para
quase ninguém. E o grande homem é quase refém na sua casa: sua nora Ottilie
(que está mais para esposa, tal forma voraz com que se apossou da vida
cotidiana do famoso sogro) faz cenas, cai doente, devido aos boatos da possível
ligação com Ulrike (transmitidos de boca em boca), o vigia, conspira, e ele
chega a acreditar que até sua correspondência é revistada e censurada.
Pela arte de Walser, missivas
reais e imaginárias se misturam, e ficamos conhecendo tanto a vida externa, os
hábitos e as regras férreas que sustentam a existência (e freiam seu lado
passional) do velho Werther como a sua vida interior de “homem apaixonado”, mas
condenado à resignação: “…estás em terra inimiga… és agora o resignado,
como nunca o foras… a mais nobre fachada cultural da Alemanha, da Europa, do
mundo todo, o exemplo de resignação para os tempos vindouros, todos os
infelizes devem levantar os olhos para ti como para uma constelação: assim se
lida com uma grande dor, vês, de forma que a dor não seja mais dor… um sorriso,
um esgar cultural que torna o teu rosto mais belo, a dor é uma poema de
ocasião…” O poder da máscara.
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