Flores da ruína, de Patrick Modiano
Desde o
primeiro título do Prêmio Nobel de Literatura 2014 aqui apresentado, Remissão da pena, que minha memória de
leitor é perpassada, na leitura, por um dos melhores filmes da carreira de Woody
Allen, Meia-noite em Paris. Não só
porque as cenas revelam os principais encantos da geografia urbana parisiense e
honram sua riquíssima cultura literária, elemento em parte coincidente na obra
de Modiano, mas porque o tom leve da narrativa cinematográfica tal como se uma
crônica sobre o lugar também se reflete na linguagem da narrativa do escritor
francês. Também, me parece que o interesse dos dois narradores não é o de dizer
que o interessante de Paris é sua história, mas as formas com que essa história
interage e dialoga com o presente.
Modiano se
revela, assim, como um dos escritores franceses contemporâneos que melhor
descreve e escreve a cidade luz; ou seja, é o que mais habilmente deu-se ao
trabalho de dar voz a esse passado que é materializado nas ruas, nos bares e
nos monumentos urbanos compreendendo o espaço como uma maneira de percepção sobre
a história. A Paris de Modiano é a contemporânea mas simultaneamente ligada com
um tempo fulgurante da história; é uma complexa personagem literária, com suas
esquinas, bairros e praças que correspondem às emoções, dúvidas e os heroicos
fracassos do narrador. Em Modiano, a cidade sofre e recorda. É o negativo da ville lumière, de Victor Hugo, para
citar José Luis Juan.
Flores da ruína compõe com Remissão da pena e Primavera de cão uma trilogia denominada “essencial”. O romance em
questão nestas notas foi publicado em 1991. Como é característica comum à obra
do escritor, a cidade não é o elemento primordial. Com ela mesclam-se
fragmentos da infância e suas vivências numa paisagem ora preservada mas já não
condizente com o sentido do passado. Eurídice Figueiredo compreende que esse
romance é produto de uma leva de coincidências pessoais do escritor, “desde a
data de nascimento, nas referências ao irmão Rudy, que morreu ainda criança, e
ao pai Albert, judeu na Paris ocupada durante a guerra, preso e solto por seus
amigos empenhados em colaborar”.
Compõe,
desse modo, não apenas uma geografia espacial, mas sentimental sobre um tempo
ao qual não é mais permitido o acesso, porque a memória já não mais o alcança. E
além dessa geografia especial e sentimental, Flores da ruína se constitui de outras fórmulas que identificam a
literatura de Modiano: argumento marcado pela força da história da ocupação sem
que isso signifique um tópico principal da narrativa, mas dê sua tônica como um
cenário de fundo através do qual se ergue uma atmosfera a um só tempo poética e
melancólica, a partir da qual, o escritor indaga sobre os resquícios do passado preservados
seja na geografia especial, seja na geografia sentimental do narrador.
A leitura de
Remissão da pena e de Flores da ruína produzirá no leitor a constatação
de que as personagens forjadas pela narrativa do escritor francês são criaturas
não reveladas, seres tênues que impelem a imaginação do leitor. Isso também ultrapassa
a construção das categorias narrativas para se manifestar na forma romanesca;
de novo, em Flores da ruína estamos
num romance quebra-cabeça, incompleto, que é como o escritor melhor compreende
uma maneira de representação da
memória.
A crítica
costuma ler a trilogia, apesar do nome de essencial,
como um conjunto menor na produção literária do escritor francês. No entanto, é
preciso fazer algumas ressalvas, ainda que compreendemos que a obra ganharia
maior alcance se pudesse congregar um só corpo – um procedimento que me parece
seria alcançado plenamente através da pena de escritores como António Lobo
Antunes. Isso porque, às vezes, ao menos diante dos dois primeiros títulos,
tem-se a sensação de que esse era o propósito do escritor, mas por certa displicência
ou mesmo interesse próprio em parecer displicente, achou preferível escrever não
um mas três romances.
Mas, não alcançamos,
e de novo recorremos ao que perscruta a crítica, essa variação temática no
conjunto da obra de Modiano, porque, e isso ele próprio atesta, sua grande preocupação
esteve à volta de escrever um grande livro que pudesse manifestar na forma e no
conteúdo uma obra que o revelasse. Se alcançou ou não é caso para um leitor assíduo
de sua obra verificar ou talvez o próprio Prêmio Nobel seja uma forma de
reconhecimento a respeito. De modo que, uma trilogia com o nome de essencial talvez sirva à compreensão de
que, o essencial de sua obra está contido nesses três títulos.
Como em Remissão da pena, a memória e as recordações
da juventude do protagonista, aqui manifestado também em primeira pessoa,
incorpora uma variedade diversa de recordações, dadas de maneira retalhada,
numa escrita breve e caprichosa, ligada a compreender encontros urbanos muitas
vezes voláteis e fugazes nos quais o destino
ou jogo do destino sempre desempenha
papel importante na construção das cenas. Trata-se de uma encruzilhada de
mínimos complôs e desencontros que revelam uma rotatória das sombras e a
poderosa auréola deixada na memória como um estigma.
Flores da ruína começa com a recordação do
suicídio de um jovem casal parisiense depois de uma estranha noite em alguns
restaurantes e boates de Paris. Trinta anos depois, na década de sessenta, o
narrador tenta reconstruir aquele feito e buscar compreender suas causas. Nessa
busca encontra-se com várias linhas de memórias que podem direcionar um
desfecho para a situação; as lembranças vão desde pessoas muito próximas às da
linha de convivência do casal até figuras sobre as quais nada se sabe ao certo
de modo estão ligadas ao imbróglio narrativo. Há muitas personagens que
desfilam por sua imaginação e algumas se confundem com as do romance anterior,
como se as duas obras, pudessem ser encaixadas perfeitamente mesmo que o
intuito do encaixe não é nunca o de se manifestar como uma resposta para as
lacunas propositalmente deixadas ao longo da narrativa. A atmosfera, assim brumosa, rodeia tudo como
se uma teia de aranha; é uma pirueta narrativa que muito lembra as construções de
Franz Kafka.
A crítica já
terá lido que o exercício de Modiano com suas criações é o de traduzir esse
sentimento tão contemporâneo chamado desamparo. Suas personagens – e este
romance novamente confirma isso – buscam o calor humano que o passado lhes
negou e se aferram tentando encontrar algo
no qual lhe sirva de consolo. Desamparo, sim, mas dor e silêncio – acrescentaríamos.
O que encontram? Nada mais que uma bruma.
Ligações a esta post:
Leia sobre o primeiro livro da trilogia de Modiano, Remissão da pena, aqui.
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