Deambulando por Bukowsky
Por Maria Vaz
Escrevo-vos para falar de Bukowsky: um autor além dos atributos
coloridos que a imposição estética, por sensibilidade ou senso comum de quem
escreve, impinge às palavras. A verdade é que a grande maioria dos escritores,
e sobretudo dos poetas, colore a realidade para que ela pareça mais
interessante, iluminada, quase mágica. Bukowsky nunca fez questão disso. Pelo
contrário. Escrevia para transmitir aos outros a sua verdade, naquilo que
parece constituir uma espécie de ritual vocacionado à auto-percepção da
realidade, como se a escrita lhe proporcionasse a obtenção de um qualquer
espasmo de sentido relativamente às experiências que a memória não deixa
esquecer. Expôs, como poucos, o preto e branco da realidade quotidiana de
alguém que vivia na busca de algo que não encontrava, enquanto vivia uma
relação de amor e ódio com a solidão. Incorporou o ‘carpe diem’ – em que se
avulta a incerteza da pós-modernidade – através da renúncia de um ‘eu’, que se
perdia no ‘go with the flow’, em que os vícios imperavam (veja-se, neste
sentido a sua obra ‘Factotum’).
Teve uma vida marcada pelos temas vibrantes que influenciaram a sua
obra: a escrita, o álcool e o sexo. Talvez por isso transmitisse, como poucos,
as ideias oriundas das situações-limite em que o ser humano se entrega ao caos
da existência: a vivência de um agora sem metas nem restrições de qualquer
ordem; a sensibilidade daquilo que, logo que deflagra, se eclipsa num momento; a
transcendência de uma realidade oblíqua, através da sua materialização em
palavras; a inevitável convivência com o desapego, que o fez perceber a
distinção entre os sentidos e os sentimentos, ainda que o agora fosse um eterno
devir e existisse sempre mais uma mulher para conhecer.
Bukowsky foi um falacioso desacreditado da vida. Todavia, tinha dentro
de si a crença e a confiança do seu valor no mundo da escrita: as palavras eram
o universo paralelo onde – tantas vezes regado pela espontaneidade conferida
pelo álcool e pelo êxtase propiciado pelo sexo – gostava de se perder para se
encontrar. A sua escrita era a sua
religião e, simultaneamente, o alimento da sua vontade de viver. Deve ser por
isso que a forma como conjugava as palavras – numa verosimilhança em que a
falta de adornos ou racionalizações em excesso contrastava com o estilo livre e
coloquial, desrespeitando qualquer tipo de formalismo entediante –, alcançou
adeptos em vários pontos do mundo.
Foi um escritor da solidão (escreveu “cuidado com aqueles que procuram
constantemente / multidões; Eles não são nada/ Sozinhos), mas, paradoxalmente,
vivia em fuga da vida e da própria solidão: uma fuga compensada pelo insaciável
gosto pelo desconhecido, que o fazia conhecer uma mulher diferente a cada
momento que passava. Era um homem só e carente de sentidos ( num “poema de
amor” escreveu, “olhando, o afecto e a / carência me / sustentaram”). Não
obstante, era um desapegado da vida em sociedade, mas um falso desapegado dos
sentimentos que o sexo, às vezes, adensava ou fazia despertar. Se assim não
fosse não teria escrito o seguinte, no poema “Confissão”:
“eu quero que ela
saiba
que dormir todas as noites
a seu lado
e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas
e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora ser ditas:
eu te
amo.”
Pois é, o ‘dirty old man’, como ficou conhecido, afinal, alimentou a
sua escrita de sentimentos. Aliás, foi a ausência real de sentimentos, a par da
afirmação da sua irreverência, que o levou à procura da solidão. Mas a solidão
também o cansou e a fome de algo com ‘sentido’ fez com que explorasse um mundo
de vícios, que o fizeram transcender a realidade através de uma fuga que,
paradoxalmente, o tornou mais consciente. Deambulou, em liberdade, pela
superficialidade viciada com que se ia divertindo. Deambulou, correu, tropeçou.
No final de contas, procurava apenas a magia de sentir, ante a banalidade
repetitiva da podridão com que, normalmente, degenerava os sentidos. E a
reflexão profundamente descuidada, em que avultava a percepção de uma realidade
objectiva desprovida de romantismos, foi a força motriz de uma existência
condenada a escrever por uma qualquer entidade supra-mundana. Veja-se, nesse
sentido, o que escreveu no poema “Queres ser um escritor?”:
“quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.
não há outra alternativa.”
e nunca houve.”
A sua versão sentimental viveu na penumbra de uma personalidade
entregue aos prazeres da vida. A importância que atribuía aos sentimentos foi
arrumada na mais profunda cave da alma, o que se justifica pelo seu ego forte e
pelo medo, sempre o medo, de uma ‘perda real’. Nesse sentido, vejamos o que
escreveu no seu poema “O pássaro azul”:
“há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.”
(…)
“há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.”
Dito isto, cabe-me dizer que Bukowsky foi um buscador de essencialidades,
ainda que só as tenha percebido pela polaridade da vivência de
superficialidades. Foi uma força da natureza ao falar despudoradamente da vida.
É nesta linha de pensamento que afirmo que há dias em que não me apetece ler
utopias ou devaneios nefelibatas. Há dias em que sabe bem uma realidade objectivamente
monocromática. Nesses dias, um café expresso combina com Bukowsky, que me faz
sempre navegar, de forma simples, nas profundezas mais complexas da psique
humana. Como autor, conquistou-me pela sinceridade. E a vocês?
Ligações a esta post:
Entre as letras, Bukowsky se aventurou no desenho. Leia aqui.
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Maria Vaz nasceu em Mirandela a 19 de Setembro de 1990,
muito embora tenha vivido toda a infância e início da adolescência em Vila
Flor. Aos 11 anos, apaixonou-se pela poesia ao encontrar, por mero acaso, um
livro de Alberto Caeiro. A par da poesia e da literatura, é uma apaixonada
pelas artes em geral, de entre as quais ressalta a música, dado que tocou
clarinete entre os 11 e os 21 anos. Publicou o seu primeiro poema em Março
de 2015, numa antologia de poetas portugueses contemporâneos e escreve regularmente no
seu blog (“The philosophy of little nothings”).
É agora colunista do ‘Letras in.verso re.verso”. Além da
escrita, é doutoranda em ciências jurídico-criminais, na Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, desde finais de 2014.
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Bjos