Bom trabalho
Por João Negreiros
© Ko-Ji Yamasaki (detalhe) |
Eu acho que devo ser fascista… ou então acho que sou
neoliberal… ou liberalista… ou essas coisas que dizem os comentadores políticos
antes que eu mude para o programa de renovações de casas… que eu estou tão
cansada que não tenho pachorra para pensar nisso. Eu faço o que me mandam e não
penso.
No outro dia dei quatro horas a mais à empresa. Não me pagaram horas
extraordinárias, a verdade é que não foram extraordinárias, se calhar foi por
isso que não pagaram.
Um amigo comunista disse que eu era fascista e por isso comecei a dizer que
devo ser fascista. Depois até fui à Wikipédia para ver o que era o fascista.
Apareceu o Hitler e não percebi nada. Depois ele lá explicou melhor, disse que
eu apoiava o fascista e que o fascista era o meu patrão e que eu não podia
ficar 4 horas a mais.
O mais estúpido é que nem sequer me pediram. Falaram para mim meio torto e eu
lá me lembrei de um professor ou do meu pai num dia mau e lá fui ficando até
ser 4 horas demais.
Quando cheguei a casa não tinha jantado. Tinha comido 3 panikes no bufete e
estava mal-disposta. Não sei se os fascistas ou se os neoliberais comem panikes
mas se vir um digo-lhe que não coma dos de creme de ovos, deu-me uma volta à
barriga.
Deitei-me na cama sem trocar de roupa. Ainda liguei a televisão e dei de comer
à cadela mas do resto já nem me lembro.
Naquele dia trabalhei 12 horas, dormi 8, 4 foram para os transportes.
Não aguento mais o liberalismo e o fascismo e essas merdas.
Eu preciso de dormir, comer, telefonar à minha mãe, dar uma volta com a cadela
e guardar tempo para quando tiver namorado.
Se os comunistas dormem mais e comem melhor, quero ser comunista como o meu
amigo.
Eu não percebo nada de política e às vezes, quando me dão indicações na
estrada, confundo a esquerda com a direita, mas preciso de dormir, de comer, de
ter tempo para mim, de ter tempo para os meus, de ter horas para sair e de ter
quem me pague o que trabalhar a mais.
Da próxima vez que o meu patrão, que eu não conheço porque é uma multinacional,
me pedir para ficar mais tempo a dar dinheiro a quem já tem demais digo-lhe
assim:
– Pega, aqui tens a chave de minha casa. Vai lá, rega-me as plantas, liga à
minha mãe, depois ao meu pai. Espero que encontres o regador, espero que a
minha mãe não se assuste nem chame a polícia, espero que o meu pai não te
assuste quando for lá partir-te os cornos por invadires a minha casa. Pega,
aqui tens a chave de minha casa. Não te esqueças de passear a cadela. Não te
esqueças de pôr o lixo lá fora. Não te esqueças de fazer o jantar. Espero que a
cadela não te estranhe e não te desfaça, é uma labrador preta e grande e pode
desfazer-te se achar que não és exactamente como eu. Espero que o lixo não te
suje as mãos e que a água da lata de cogumelos não se verta nas tuas calças.
Espero que te saiba bem o meu jantar e que encontres à primeira as panelas, os
copos e os pratos. Pega, aqui tens a chave de minha casa. Vai lá e vive por mim
que isto aqui não é vida. Isto aqui não é vida.
O patrão olha para mim estupefacto e eu continuo:
– Pronto, deixa estar, tu não ias querer a minha vida. Não vale a pena
incomodares-te.
Levo a chave de minha casa e o trabalho que não fiz hoje fica aqui para fazer
amanhã ou depois.
Se tens pressa vai adiantando o serviço durante a noite que eu amanhã cedo
trago uma pessoa nova, sã e feliz para te ajudar.
Bom trabalho.
* Do livro O Manual da Felicidade. Publicado agora em maio em Portugal pela Chiado Editora.
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João Negreiros nasceu em Matosinhos a 23 de Novembro de
1976. Em 2009, o escritor foi o primeiro classificado no Prémio Internacional
OFF FLIP de Literatura, categoria poesia, no Brasil. Em Portugal, entre outros
prêmios, João Negreiros venceu o Prêmio de Poesia Nuno Júdice, cujo júri
comparou a sua poesia à de Fernando Pessoa. Mais recentemente, venceu o Prêmio
Literário Dias de Melo com o seu primeiro romance, “O Sol Morreu Aqui”,
considerado pelos membros do júri um marco importante na literatura portuguesa.
No âmbito da poesia, publicou cinco livros: “o cheiro da sombra das flores”,
“luto lento”, “a verdade dói e pode estar errada”, “o amor és tu” e “o acaso é
um milagre”. Na área do teatro, a sua obra foi crescendo, tendo hoje quatro
peças editadas, “Silêncio”, “Os Vendilhões do Templo”, “O segundo do fim” e “Os
de sempre”. Relativamente a prosa, o autor tem dois livros publicados: “O mar
que a gente faz” e o romance "O Sol Morreu Aqui". Para além da
escrita, a sua grande paixão é o teatro. Formado em Teatro/Interpretação, João
Negreiros tem uma larga experiência como ator, encenador e diretor artístico
de companhias de teatro.
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