O método Alejo Carpentier
Por Francisco Llorca Zabala
A fotografia
foi feita em finais dos anos setenta e tem uma cor sépia e lavagem própria das
imagens anteriores ao Instagram. Alejo Carpentier está sentado num café: os
cantos de uma boca grande apontando para baixo, um gesto sério, como se
estivesse absorto numa pesada digestão. Ao lado do cubano, os dois Antonios,
Saura e Pérez, Pérez e Saura, junto a um grupo de pessoas sem identificação. Personagens, então. Quem fez a fotografia? Outra personagem? A companhia de algum deles?
(Não há nenhuma mulher no grupo, assim se pode suspeitar de uma do outro lado da câmera) O garçom do bar que amavelmente se prestou a imortalizar o momento?
Viro a imagem e constato que no verso não figuram nomes e nem datas. Mas, várias coisas são certas: todos estão bem, como demonstram algumas garrafas
de vinho (bem, todos, menos Carpentier, claro) e que esse café fica em
Siguença, província de Guadalajara, para ser mais exato. Sei porque estive
sentado nessa mesma mesa em várias ocasiões.
É curioso
que meu primeiro contato com Alejo Carpentier tenha sido através dessa
fotografia. E seria só muitos anos depois de ler algum de seus livros. O século das luzes, propriamente, numa
edição carente de qualquer encanto que acompanhava o jornal conservador que meu
pai saía para comprar até descobrir que poder lê-lo da mesma maneira na
internet. Pego o telefone para procurar saber algo mais sobre a foto. Antonio.
Quem? Antonio, tu… (com Antonio há que levantar muito a voz quando se fala
porque, apesar de suas convicções antimilitaristas, está completamente em
estado militar)... a foto. Qual foto? Ora qual, Antonio? A foto com o
Carpentier que me enviaste… Siguença.
Sim, isso já disse num parágrafo antes. Leu A harpa e a sombra? Não. Pois precisa lê-la. Sim, sim… mas, e a foto?
Qual foto? Bom, deixa quieto,
um beijo, Antonio.
Comecemos
então pelo final. É o final porque A harpa
e a sombra é a última obra que Alejo Carpentier publicou em vida. No
romance, que é uma grande peça bem humorada sobre o fracassado processo de canonização de
Cristóvão Colombo (reflexo sobre as candidaturas abortadas ao Prêmio Nobel do
cubano?), se observa uma das dicotomias ou polaridades, ou dialéticas para
dizer com a linguagem da época, em torno das quais se articula a obra do
escritor, seja a história e o mito ou os feitos históricos e narrativas
mitológicas.
A partir dessa perspectiva, Carpentier pode ser visto como um pós-moderno
avant la lettre que abre novas vias
para o romance histórico. Um caminho que havia começado com O reino deste mundo, mas que alcança sua perfeição nesta obra irônica
e desmistificadora porque nela desfila não apenas a sombra do navegante
genovês, mas a de outras personagens reais como Bartolomeu de Las Casas, Léon
Bloy, Pio IX ou Martín Vázquez de Arce, mais conhecido como o Donzelo de Siguença. Desmistificadora, portanto, do retrato deste patriarca da Hispanidade pelo lado menos
rosa: iluminado, puteiro, falsário, escravagista... joia sem valor. Quando
alguém conclui sua leitura, constata que ao fim – do mundo – e ao cabo – de
Paus – este Cristóvão Colombo não era o tipo que esperávamos. Logo, não é a imagem dos livros didáticos que se encontra ao fim da linha. Bom, parece que tampouco Alejo
Carpentier era o tipo mal-humorado que parece se apresentar na foto. Fizemos
nossa lição: há que desconfiar dos documentos e interrogá-los, sejam crônicas
de ultramar ou fotografias familiares, se encontrem isto em arquivos das Índias
ou em sótãos de nossas casas.
E este ponto
é importante porque todos nós parecemos ter uma ideia pré-concebida de Alejo
Carpentier e de suas obras: o real maravilhoso, sua cubanidade, o barroco, a
presença da música em seus livros, a negritude e um maçante etecetera. Sem dúvidas, quando falamos do autor, em
nenhum momento nos vem à cabeça suas páginas mais divertidas. E no entanto elas existem. São
muitas. Em O recurso do método também
é possível encontrar umas boas risadas, mas como estamos falando de um “romance de ditador”,
esse gênero tão latente por outro lado,
rimos um pouco culpados, olhando para atrás a ver se alguém não estaria reprovando nossa conduta.
Mas é em A harpa e a sombra onde o
humor de Carpentier alcança um maior vulto. Não é um aspecto menor, mas a
demonstração de até que ponto o escritor soube ler a tradição, em especial a
novela picaresca e a obra cervantina (nota: não ganhou o Prêmio Nobel, mas o
Cervantes, em 1977, quando pronunciou um dos discursos mais memoráveis da
história do galardão). E aqui temos outra dessas polaridades das que falávamos,
pois há poucos autores que fizeram tanto exercício teórico para descolonizar a
literatura latino-americana e, que ao mesmo tempo, tenham sido tão devedores da
tradição europeia, seja esta espanhola ou francesa. Seria pertinente recuperar aqui ferramentas conceituais anteriores e falar de uma síntese ou superação dos
opostos na obra de Carpentier, quem reapropriando-se da linguagem e da tradição, consegue criar algo novo, um método que gosto de chamar “o método
Carpentier”.
Se
existem ressalvas ao falar do escritor como um autor cômico, imaginem o que
surge quando falamos dele como autor do gênero fantástico. Sem dúvidas não
custará aceitar essa ideia se lerem a precoce Viagem à semente (N.T. tradução livre para Viaje a la semilla). Não levará muito tempo já que se trata do
produto de uma noite de insônia, que o autor escreveu de uma sentada. A história
de Marcial, Marquês de Capellanías, é a de um Benjamin Button tropical que vai
desvivendo progressivamente até sua própria origem fazendo valer os versos de
Valente: “Talvez morrer não seja mais que isto,/ regressar suavemente”. Seja pelo influxo de utilizar um horário
alterado ou como resultado de uma decisão amadurecida, Carpentier começa
revirar a temporalidade linear e a modelar, violentar, o material com o qual
haverá de trabalhar a partir de então: o tempo. Tem pouco tempo Jacobo Siruela
editou o texto junto com o romance Concerto
barroco (uma de suas obras mais cervantinas, com seu Quixote indiano e seu
Sancho negro e tudo). Carpentier dialoga de forma natural com o uruguaio
Felisberto Hernández, o argentino José Bianco e o mexicano Francisco Tario,
autores para quem, igual ao cubano, o fantástico está na própria realidade, ao
alcance da mão. Só falta estender os dedos para acariciá-lo.
Mas,
tentemos colocar algo em ordem neste texto antes que os leitores que tenham
chegado a este ponto desistam de prosseguir. Tal e como disse, o primeiro livro
que li do autor foi O século das luzes.
Até então, como qualquer pequeno leitor do interior havia aprendido a ler com
Borges e Cortázar. Mas aquele primeiro encontro com Carpentier foi para mim
mais que um deslumbramento. Foi uma festa. Não era só a musicalidade e a
sensualidade de unas palavras que não havia lido nunca, mas um certo tempo
musical totalmente novo na prosa. Uma sensualidade que inundava tudo e que, em
algumas ocasiões, se tornava voluptuosa. É que, como bem apontou um
contemporâneo seu, “o barroco americano, como a própria natureza, aborrece o
vazio”.
O século das luzes é a
história da chegada da revolução ao Caribe, mas também o seu contrário, a
liberdade e a guilhotina apresentadas a um só tempo: os vermelhos corais das
Antilhas e o sangue dos inocentes correndo aos borbotões. Como isto não ia
impressionar o jovem que eu era? E tudo isto é narrado valendo-se de uma prosa
de ourives, morosa nos detalhes, de uma plasticidade alucinante e alucinada até
seu épico desenlace (e é Carpentier, é justo reconhecê-lo, em seu flerte com a história, que às vezes ia de mão dadas com o épico. Algo que é mais visível em
A sagração da primavera, um
autêntico who is who do período
compreendido entre a revolução russa e a cubana).
Curiosamente, quando li O século das luzes não sabia que
acabaria vivendo nas mesmas ruas em que se desenvolve o final do romance. Mas
os meandros de nossa biografia são imprevisíveis e agora tudo é diferente: há
meses que abandonei Madri e ao sair à janela já não vejo os restos do antigo
quartel de Monteleón, mas o dedo de Colombo apontando para o Novo Mundo (embora
ironicamente a América fique justamente do outro lado... acaso teriam razão Carpentier
e os detratores do almirante quanto à sua inoperância náutica?).
E é em
Barcelona onde releio agora Os passos
perdidos, o livro que salvaria de um incêndio se minha biblioteca fosse
atingida por um fogo e que também o levaria para uma ilha deserta, para dar
resposta a duas perguntas que todos temos que responder em alguma ocasião quando
nos indagam sobre nossas preferências literárias. E ao fazê-lo recorro ao
método Carpentier e me visualizo anos atrás na faculdade, pois foi graças a um
professor daquela ocasião que fui levado a ler o livro, algo pelo que sempre
estarei agradecido (Como não creio que nunca irei ganhar o Nobel de
literatura para agradecê-lo publicamente como fez Albert Camus, sirvam já estas
linhas como justo reconhecimento...). Pois bem, recordo que este professor era envolvido de certo ar romântico ganhado graças às contínuas incursões
autobiográficas com as quais pontuava suas aulas. Nelas não faltavam guerrilheiros
latino-americanos, viagens ao bloco do Leste ou um antifranquismo que agora se
apresenta para mim como um braseiro, mas que então nos era excitante e perigoso. Mas deixemos esse
caminho e voltemos a Os passos perdidos...
O caso é que numa manhã fui à sua sala e o encontrei entre a contemplação de
umas fotografias. Como parecia envolvido na dita atividade aproveitei para dar
uma olhada nas imagens (uns instantâneos em que ele aparecia numa canoa imitando a
Quadra-Salcedo) e assim poder contar alguma coisa quando voltasse ao café com
meus amigos. Ao cabo de uns segundos e ante o aparente pouco interesse que
revestia e o absurdo de uma imagem,
decidi interrompê-lo:
Jaime. Quem?
Eu… trago as cópias... por certo, bonitas fotos. São de uma viagem
pelo Orinoco. Ah. Leu Os passos perdidos?
Não. (não tivemos esta conversa antes?). Pois tens que lê-la. Sim, claro… Onde
quer que lhe deixe as cópias? Que cópias?... Bem, deixo-as aqui, já vou…
Umas horas
depois, e depois de várias tentativas da parte de um livreiro em vender-me um
livro de André Breton com o mesmo título, pude consegui-lo. Agora que penso, é
curioso que Carpentier tenha dado o mesmo nome que Breton batizou um de seus
primeiros trabalhos, ainda mais quando Carpentier foi um dos signatários de Um cadáver, o manifesto crítico que a
facção dissidente encabeçada por
Prévert, Desnos e Bataille dirigiu contra o papa do surrealismo (o “barato surrealista” como o chama um
desencantado Carpentier).
Os passos perdidos narra a viagem de um musicólogo
pelo Orinoco em busca de instrumentos primitivos. Um argumento sensível, mas
que serve ao cubano para falar da impossibilidade de recuperar o paraíso
perdido. À medida que o protagonista remonta o rio e o leitor avança na leitura
o tempo parece inverter-se de uma forma mais radical, mais até do que em Viagem à semente. O rio, pura fluência,
conduz o reflexo do autor até a origem, um ponto em que o tempo é anulado,
abolido. É então quando a história acaba e passa a existir o mito e a civilização
natural. Neste sentido, o livro de Carpentier parece anteceder outros dois
grandes romances latino-americanos no que se refere à dimensão do tempo até o insuportável
– Zama, de Antonio di Benedetto e Sudeste, de Haroldo Conti. Os passos perdidos são muitos livros
encadernados num só: romance existencial, utópico, de iniciação, de
aventuras... um poliedro de infinitas caras e refulgentes prismas. Um livro
total e inesgotável. Só por sua releitura terá valido a pena escrever este texto
que espero não seja demasiado tedioso.
Uma coisa é
certa: anos depois descobri como aquela viagem serviu ao professor como motivo
para escrever um texto sobre a cultura na Venezuela que apareceria num suplemento
especial do Le monde diplomatique...
Mas, onde?
Ligações a esta post:
>>> No Tumblr do Letras reunimos um conjunto de imagens raras do escritor cubano.
* A tradução é livre para o texto "El método Carpentier", publicado aqui, em Lecturas Sumergidas.
Comentários
Só referências a feras.
Carpentier é maravilhoso.
A personificação do real maravilhoso;)