A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho, de Mário de Carvalho
Por Pedro Belo Clara
Caso alguma mão, obedecendo aos intentos duma mente curiosa
ou simplesmente dada à elaboração de esquemas, decidisse concretizar uma lista
que visasse os, digamos, cinquenta livros mais populares do século XX português
(e com isto pretendemos referir as obras assinadas por autores lusitanos), não
seria grande escândalo encontrar, dentre todas, a epígrafe do trabalho que
agora apresentaremos.
É certo que Um Deus passeando pela brisa da tarde destacar-se-á
como a obra de proa da carreira deste autor em particular, não só pelos prémios
que amealhou (em especial o Pégaso, distinção de nível internacional) como
pelas diversas traduções de que foi alvo – não obstante, claro, as reedições
(óbvias) que se verificaram. Por tudo isso, dir-se-á que tal trabalho, de 1994,
contribuiu para a expansão definitiva da obra do autor, já que sobre o enorme
talento de Mário de Carvalho ninguém possuiria grandes dúvidas. Pelo menos, no
panorama nacional. A obra de estreia, Contos da sétima esfera, mereceu
desde logo a aprovação da crítica competente. João Gaspar Simões, por exemplo,
considerou-a “surpreendente, desconcertante, inclassificável na tradição
portuguesa”. E mais tarde, em 2009, ser-lhe-ia outorgado o Prémio Vergílio
Ferreira pelo conjunto da obra publicada.
A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho, um livro
de contos de 1983 (portanto, um dos primeiros deste autor), contou com dez
reedições antes de em 2013, trinta anos após o seu lançamento, a Porto Editora
apresentar uma edição renovada. E, se compreendemos agora que nas suas
primeiras aventuras literárias Mário de Carvalho apostou no conto, veremos que
certos traços, tão característicos de sua obra, já o acompanhavam desde o
início, servindo os posteriores trabalhos como palco da sua plena consolidação
e afirmação.
Diremos, em primeiro lugar, da harmoniosa fusão entre o real
e o fantástico, por vezes instigadora de grande desconcerto, mas sem que se
despoje de um certo toque satírico e bem-humorado. A crítica social, embora não
seja muito visível nesta obra em particular, pauta o trabalho do autor em
grande escala, fruto das suas experiências passadas como forte opositor do
regime salazarista e, naturalmente, como o homem de lei que é (recordemos que a
advocacia é o seu ofício de formação). Mas tendo em consideração os restantes
esforços realizados na área do romance, novela e teatro, dir-se-á que não
escasseiam as vitrines ostentadoras de tal traçado.
Voltemos ao trabalho em discussão e à dita amálgama entre o
real e o fantástico, já que essa é toada pela qual os seis contos desta obra se
afinam.
O primeiro, que nomeia o livro em causa, apresenta-nos a
espantosa odisseia das tropas de Ibn-el-Muftar, um almóada com intenções de
retomar Lixbuna aos cristãos, que subitamente se vêem em pleno trânsito
automóvel na dita avenida de uma Lisboa do século XX. Acontece que a deusa
Clio, num instante de sonolência, trocou dois fios da longa tapeçaria que tece,
dando-lhes um nó. Conclusão inevitável e decerto catastrófica: os dias 04 de
Junho de 1148 e 29 de Setembro de 1984 amalgamaram-se.
Apenas por tão breve introdução se constata o imenso
potencial criativo deste autor e a sua habilidade em compor intrincadas
histórias numa grande simplicidade de processos, aliada a uma diversidade
vocabular deveras louvável. O resultado final, neste caso em concreto, é uma
narrativa inteligente e bem disposta, um entretenimento bastante aprazível para
quem em suas linhas decida deambular. Naturalmente, as ocorrências desenrolar-se-ão
sem gravidade maior, a não ser a incredulidade de uns e o assombro de outros,
até que tudo seja finalmente resolvido pelas experientes mãos da deusa em
causa, enfim desperta e reconhecedora do seu percalço. Contudo, não escapará ao
incidente sem a devida punição do restante coro divino: quatrocentos anos sem
bebericar ambrósia. Os deuses não brincam em serviço, é certo.
O conto seguinte, “In excelsum”, o mais breve de toda a
obra, apresenta-nos uma quase rábula sobre João Mendes, escriturário duma
conceituada firma lisboeta que prima por um profissionalismo e dedicação
extremos.
O dia retratado começará como qualquer outro: rotineiro, sem
margem para falhas ou desvios de qualquer tipo. Não fosse, é claro, o
extraordinário acontecimento que marcará aquela manhã: o caso do elevador que
não pára de subir. Assim, numa estranha ascensão, nas implicações mais
abrangentes da palavra, mas que nada de terreno ou espiritual aparenta possuir
em seu processo, o pobre João vê-se protagonista duma viagem inesperada,
surreal e de conclusões inacreditáveis. Terá um fim, de tão longa que se
revela? Já que o dito ascensor ultrapassará todas as barreiras, desde o prédio
em si à própria estratosfera? A frase com que termina permitirá uma maior
elucidação do facto: “São imprevisíveis os caminhos que a Mim conduzem”. Será
caso para afirmar: o encontro com o divino poderá surgir a qualquer momento,
quando menos se o espera? É bem provável que do humor extremamente subtil deste
conto se extraia uma essência satírica deveras apurada, como é apanágio, em
diversas situações, do autor em causa.
Os temas religiosos continuarão a merecer a eleição do
autor, de modo mais ou menos vincado. O que se segue, “Ignotus Deus”, ou
Deus Desconhecido, desenrolar-se-á em vésperas de fim de mundo.
Retrata, a princípio, dois frades, Abel e Domingos, únicos
sobreviventes de uma anónima epidemia que na semana de Pentecostes dizima quase
toda a irmandade. É claro que, confinados à sua reclusão, de nada sabiam sobre
o mundo exterior. Somente um dia, quando a mórbida placidez reinante se
sobressalta, detectam as percepções uma absurda paragem do tempo. Intrigados,
decidem averiguar. Mas as perplexidades do dia estariam ainda a começar... Frei
Domingos, debruçado sobre os muros do lugar, espanta-se diante do vazio que
observa, sendo de pronto, ele próprio, mediante o horror do seu semelhante,
sugado pelos ares em volta. Que demónio estaria a congeminar artimanhas tais? O
término do conto será esclarecedor, mas, mais importante ainda, detentor de diversos
motivos de reflexão. Será, no fundo, essa a proposta que Mário de Carvalho nos
elabora. Pois, nos derradeiros momentos da narrativa, estando Frei Abel,
provavelmente a única vivalma em todo o mundo, orando devotadamente na capela
do convento, uma horda composta pelos mais incríveis (e repugnantes,
certamente, segundo algumas apreciações) seres que algum dia se poderiam
conceber faz-se enfim anunciar. Falhada a tentativa de esconjuro, um deles, de “cabeçorra enorme” e “pés disformes e escamados”, agindo como líder do grupo,
concretiza a revelação com que termina a narrativa, chamando um outro ser, de
aparência bondosa e de longas barbas, à sua advertência: “Então durante todos
estes séculos persuadiste estes pobres seres que eras um deus único?”. O restante
ficará à consideração de cada um.
A preferência por títulos em latim com referências
religiosas prossegue. Assim chegamos ao quarto conto da obra, “Dies Irae” (Dia da Ira). Nele, assistiremos a um quotidiano verdadeiramente dantesco
protagonizado na primeira pessoa. Será a primeira vez que tal registo se
verificará neste trabalho. A influência fantasiosa tocará as fronteiras do
absurdo, mas resultará numa narrativa bastante bem-humorada – dadas as
circunstâncias.
Desde a cena inicial que somos envolvidos em toda aquela
atmosfera surreal, onde o protagonista, o senhor Teles, apara a sua barba
diante da estranha presença de um “animalejo grande”, deveras “grotesco”, de “pele verde”, “cabeça disforme”, “olhos descomunais”, munido de uma “amálgama
indiscernível de pêlos, empolas e espinhos”. Naturalmente, o dia seguirá o seu
curso; e demais exemplos se poderão retirar. Tanto poderemos realçar as
lagartixas que parecem habitar em todas as árvores de Lisboa, o admirável
Ferreira, (que surge como motivo de conversa no local de trabalho do Sr.
Teles), o maior goleador do campeonato de futebol que tem a particularidade de
ser perneta, ou o simplesmente extraordinário puré de batata luminoso,
especialidade do restaurante onde Teles e seus colegas partilharão o almoço do
dia. Ao que parece, não é digno de aprovação por parte de um deles, o Marques,
pessoa entendida no assunto... O parecer será inevitável: “Falta de sal”.
Os dois pilares que sustêm o conto, o surrealismo da
narrativa e o absurdo das incidências, são muitíssimo bem explorados e concedem
ao mesmo a hipótese de se revelar um espelho, ainda que metafórico, para muitos
dos quotidianos que vivemos. O mais interessante, contudo, é verificar como o
Sr. Teles e demais intervenientes a todas essas admiráveis ocorrências
permanecem indiferentes, como se se tratassem de meras banalidades. O sentido
que daí se retira é marcadamente crítico. De facto, por quantos dias não
olvidamos nós as maravilhas em nosso redor, de tão embrenhados que estamos nas
rotinas que lentamente nos sufocam e matam? Não admira, por isso, o teor do
suspiro do protagonista no término desta narrativa: “... um dia bem
frustrante”. Como? Se até a sala onde adormecerá naquela noite subitamente
alterará a sua configuração? Por estranhas magias, comuns ao longo de todo o
conto, como vimos, a dita divisão, antes quadrada, decidirá arrumar-se de modo
triangular e com vista para o rio Tejo. Mas o dia, ainda assim, será “bem
frustrante”.
Cortando um pouco com a tendência temática dos contos anteriores
surge “O nó estatístico”. Será o único conto a merecer uma inscrição
introdutória; no caso, um excerto brevíssimo dos Ensaios de Montaigne,
do qual se retira a ideia essencial da narrativa a explorar: “(...) porque não
admitir que as letras gregas, espalhadas ao acaso, em número infinito,
chegassem a formar o texto da Ilíada?”. De facto, o conto em causa
explorará essa hipótese, embora num contexto diferente.
Iremos conhecer a história de Golo, um simpático chimpanzé
que vive sob o abrigo do jovem casal Catarina e Daniel, cujo tio, Clemente,
após partida definitiva para África, o deixou em legado. Até aqui, nada de
extraordinário. Não fosse o maroto símio, numa determinada ocasião em que, para
conveniência das visitas, se vê fechado no escritório da casa, sentar-se à
secretária e bater arbitrariamente nas teclas da velhinha máquina de escrever.
Então, o prodígio eclode: no meio de tamanhos gatafunhos, Golo escreve, em
perfeita ortografia, o trecho inicial da célebre obra Menina e Moça, de
Bernardim Ribeiro: “Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito
longe…”. Apesar da dúvida inicial dos seus
protectores, o caso teve repetição. E a obra, aos poucos, vai sendo reescrita.
Consultados os psiquiatras da praxe, a explicação só se dá pela boca de um
amigo do casal, versado nas sempre fidedignas leis da matemática. Tratar-se-á,
assim, do dito “nó estatístico”, isto é, “do ponto em que se concentravam todas
as probabilidades de um macaco algum dia reescrever” a referida obra. Ínfimas,
naturalmente. Mas não propriamente inexistentes, como o conto nos demonstrará.
Chegamos assim ao término desta obra,
encerrada com “Pede poena claudo...”. Como se observa, regressam os
títulos em latim. Desta feita, com referência ao poeta Horário, o autor de tais
palavras. A tradução mais aproximada, exposta a título de curiosidade, será a
seguinte: “o castigo claudica”. Ou seja, um determinado crime poderá não obter
a punição adequada num tempo imediato, embora se possa afirmar que a mesma
acabará sendo inexoravelmente cumprida. Como se aplicará tal pressuposto?
Vê-lo-emos de seguida.
O conto é um dos mais extensos de todo
o conjunto de seis, sendo o segundo a ser apresentado na óptica da primeira
pessoa. Teremos, portanto, um narrador presente e interventivo. Não obstante a
temática surreal dos trabalhos, também aqui verificada, será este o conto onde
a linha sóbria e madura que o cria mais se fará notar. O texto irá remeter-nos
às praias de Pollsberry (localidade, ao que nos parece, fictícia) e para um
estranho acontecimento que aí teve lugar vários anos atrás. Pelos nomes
escolhidos, somos levados até às frias zonas costeiras da Irlanda.
Consequentemente, evocam-se os céus enublados, as marés bravas, os homens de
rostos duros e corações compassivos, os barcos enfrentando a imensidão
marítima, as lendas celtas que suportam as superstições das gentes locais. Ora,
é precisamente no seio de teias tamanhas que um sorumbático padre católico
chega até àquelas paragens com a missão de reabilitar a igreja local. A
população, sempre sábia em sua simplicidade, aceita-o como um deles, ainda que
continue a depositar as suas esperanças no velho profeta da terra, no que às
questões do corpo e espírito diz respeito. O restante enredo desenrolar-se-á
nas habituais tramas da superstição e da supremacia católica mediante o
paganismo do povo, cujas consequências, em regra, se apresentam catastróficas.
O medo cresce e impera, a superstição é levada ao extremo e o fanatismo,
inevitavelmente, instalar-se-á. O causador da ruptura será, contudo, um
estranho navio que naufraga naquelas praias sem ninguém a bordo, ainda que,
como compreenderemos, o instigador do caos seja o dito padre. O profeta é
condenado à fogueira e o padre, causador da ruína do povoado, que afinal
escondia um deficiência anatómica bem peculiar, ver-se-á remetido à expiação
das suas faltas pelos tempos vindouros. Na verdade, quem vê nos outros o
demónio é muitas vezes quem em si o possui. Metaforicamente falando, será esse
o género de “moral” que do referido conto se poderá retirar.
É um livro breve, este que hoje aqui
discutimos, ainda que bastante representativo do estilo literário de Mário de
Carvalho. Mais uma vez, será um título que introduzirá fielmente o trabalho do
autor juntos dos leitores que o queiram conhecer melhor. E dentre os géneros
explorados a escolha é diversa, já que só praticamente a poesia não conheceu o
seu exercício. Mas sobre as narrativas que compôs a apreciação será unânime:
Mário de Carvalho é dos seus mestres mais criativos e originais.
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