Um tesouro chamado Yasunari Kawabata

Por Emma Rodríguez




Voltar a determinados livros, a determinados autores; recuperar o som de suas vozes familiares, o pulso de suas correntezas, é como iniciar um reencontro com nós mesmos, com circunstâncias, situações, momentos presos no passado. Posso relembrar, se faço um pequeno exercício de memória, os lugares onde estive lendo muito dos romances, dos contos de Yasunari Kawabata (Osaka, 1899). Ao tirar os livros da estante e passear por suas capas recupero de algum modo os estados de alma, os vaivéns existenciais que me acompanharam enquanto ia mergulhando – já vai um longo caminho – nas vidas de suas personagens. Dizer que é um dos meus autores favoritos é pouco. Kawabata ocupa um lugar muito especial, é um autêntico tesouro para mim, um espaço de sossego, de contemplação, de atenção, mas também uma porta aberta à perplexidade, à fascinação, ao deslumbramento, ao perturbador alento do mais secreto.

Posso andar metida em outros universos narrativos igualmente atraentes e enriquecedores; posso estar entretida noutras viagens, atenta às realidades e às fantasias mais diversas, mas Kawabata sempre está aí, ao fundo de meu horizonte, e, curiosamente, só regressa sem aviso prévio: através de uma conversa que me devolve suas atmosferas; através de uma paisagem que me remete às suas; através de uma nova publicação que chama minha atenção de imediato, embora não esteja necessariamente nas primeiras filas das mesas de novidades.

Assim aconteceu, e não exagero, numa passada tarde de 23 de abril, na tentadora livraria Antonio Machado em Madri, onde não pude dissimular minha alegria ao encontrar-me com Kyoto, o último título do autor japonês publicado naquela ocasião pela Emecé (no Brasil a edição é da Estação Liberdade, selo que leva algum tempo recuperando grande parte de sua obra e ao qual devemos que Kawabata siga vivo entre os leitores brasileiros).

É casual que se produzam encontros assim? É casual que um dia qualquer um livro decida vir às nossas mãos? É casual que abramos umas páginas e não outras? Todas essas perguntas me fiz nestas últimas semanas em que voltei a estar imersa no tempo de Kyoto. Todas essas perguntas se fizeram mais claras numa tarde quando, levada pelo ritmo do romance, de seus largos espaços abertos, do contorno de suas montanhas, da placidez de seus templos, senti necessidade de silêncio e fui passear pelas veredas sombreadas do Parque do Retiro.

Então soube quão longe havia estado das árvores, da primavera; quantos sons, quantas informações díspares, quantos desassossegos, quantas discordâncias próprias desta época em que vivemos haviam permitido me retirar de meu centro, dessa diminuta ilha rodeada de presentes que somos e que nos define. Kawabata, uma vez mais, havia vindo resgatar-me, a sussurrar-me ao ouvido que não deixasse de olhar para cima porque ia perder a renovação das flores; que não deixasse de escutar-me por dentro porque os avisos e as verdades se desgastando com o tempo.

Pertenço a essa classe de pessoas que acreditam nos sinais dispersos no caminho e que com o tempo vai aprendendo a deixar que o acaso flua, faça seu trabalho, e vá colocando as peças no lugar correspondente. Por isso converti a descoberta de Kyoto num motivo de celebração. Por isso agradecia que as perguntas e suas reflexões correspondentes vieram até mim qual pássaros coloridos. Mas não vou estender-me neste prelúdio quando o que quero é compartilhar o prazer de abrir pouco a pouco este pequeno-grande cofre do tesouro cuja mapa me mostrou pela primeira Gabriel García Márquez.



Pois bem, ao acaso chegou em minhas mãos um texto, uma entrevista, em que perguntavam ao Prêmio Nobel de Literatura colombiano qual livro ele gostaria de ter escrito. A casa das belas adormecidas, de Yasunari Kawabata, respondeu. Até então não havia sequer escutado o nome desse escritor que também fora agraciado com o galardão da Academia Sueca em 1968. A sugestão do título da obra, foi para mim como uma recomendação, me fez buscá-la, lê-la e ficar completamente fascinada.

Trata-se da entrega mais atrevida, mais politicamente incorreta do autor japonês, que afronta o tema da solidão, da velhice, da incomunicação e o do desejo numa intensa história carregada de erotismo. A história de um homem que, já na última etapa de sua vida, quer seguir desfrutando da beleza e vai a uma pousada onde se oferece a possibilidade de contemplar – somente contemplar – o sonho de belas virgens nuas. Uma situação que o leva a cair num estado de voluptuoso devaneio, a evocar todas as mulheres de sua vida e seguir praticando o jogo dos sentidos antes de cair no abraço final da morte.

Para aqueles que ainda não foram abordados por Kawabata, talvez por meu trajeto, recomendo adentrar seu universo através desta narrativa que enfeitiçou Gabriel García Márquez até o ponto de em duas ocasiões lhe render uma homenagem: em “O avião da bela adormecida”, um conto incluído em Doze contos peregrinos, uma peça encantadora em que um viajante tem por companhia numa viagem de avião a mulher mais bonita que nunca viu, mas deve contentar-se com observá-la a dormir ao seu lado; e o romance Memórias de minhas putas tristes, em que, seguindo o rastro do escritor japonês indaga a sobrevivência, a transformação, e o desejo.



Se o começo lhe convencer, indico a seguir com Beleza e tristeza e O país das neves, duas sedutoras e belíssimas histórias em que o autor cultiva uma de suas constantes: a busca de paixões do passado que dão pauta para aprofundar assuntos com a vingança, o rancor e o desamor. A primeira tem ao fundo o profundo repicar dos enormes sinos dos templos budistas; a segunda está ambientada numa estação termal onde as gueixas aguardam os turistas. Ambas encontram um magnífico complemento noutros títulos como Mil tsurus, uma explosão de sutilezas e de sensualidade, ou Primeira neve no monte Fuji título ainda inédito no Brasil – que é um conjunto de contos do qual destaco o que dá nome ao livro que é a história de um casal separado pela guerra e que se depois de se reencontrar decidem empreender uma viagem – há muitos trens e vagões na literatura de Kawabata – para recordar sua história de amor e reconciliar-se com suas vidas.

Bom, mas havia começado falando sobre Kyoto, minha última leitura de Kawabata, e antes de continuar devo fazer uma advertência: abstenha-se de ler quem ama a ação antes de tudo; quem abandona o cinema quando o filme é demasiado lento; quem considera sentimental falar das flores. Há maravilhosos romances de aventuras, mas este não é um deles. Ou melhor, aqui a aventura se desenvolve da porta para dentro. E se isto é algo próprio do autor, aqui se intensifica um pouco mais. O argumento nesta ocasião parece muito simples, mas a complexidade tem um fundo de importância, é nesta parte oculta, subterrânea, as emoções e as vivências que vão desvelando os protagonistas. Assim, o olhar atento ante o mundo da joveníssima Chieko, que foi abandonada quando criança e começa a descobrir suas origens, ao mesmo tempo que é consciente da atração que exerce sobre os jovens ao seu redor, contrasta com o de seu pai, Takichiro Sada, um desenhista de quimonos  que começa a perceber o desassossego ante a vida que se escapa sem haver cumprido de todo seus anseios. De novo juventude e velhice frente a frente; começo e final, descoberta e memória.

Em Kyoto volto a encontrar, renovado ante meus olhos, tudo o que mais gosto em Kawabata. Aqui está sua permanente busca de equilíbrio entre a modernidade e a tradição, acentuada numa narrativa que transcorre numa cidade milenar onde os santuários, os espaços e rituais de recolhimento convivem com a realidade do tráfego urbano e do turismo. Aqui está sua maestria para captar os detalhes mais sutis, os gestos mais mínimos,  seja a textura de um tecido ou as matizes de uma cor, seja o rubor de umas bochechas ou o toque de um floco de neve. Aqui está sua capacidade – por outro lado, tão própria da literatura japonesa – para referir-se aos estados da alma e aos sentimentos, em consonância com as coisas da natureza. Uma natureza com a qual suas personagens sabem dialogar, conscientes de seu esplendor e também do poder que exerce sobre elas.  

Kawabata fala das festas e rituais que se repetem uma e outra vez, do estimulante ciclo das estacoes, das paisagens que permanecem e que haverá de ser admiradas por gerações diversas, alheias à deterioração, eternas em sua grandiosidade. Chieko cria grilos do campo num frasco, que nascem, cantam, colocam ovos e morrem dentro desse recipiente “escuro e apertado”, enquanto recorda uma antiga e mágica lenda chinesa na qual havia um palácio dentro de um recipiente cheio de vinho e manjares da terra e do mar. Um palácio isolado do mundo comum, um reino à parte, um lugar encantado.

Há muitas referências artísticas neste romance de tecelões e teares absolutamente plásticas nas quais alude-se a desenhistas tradicionais japoneses e também a artistas ocidentais como Paul Klee, Matisse e Chagall, nos quais o velho desenhista busca inspiração para seus obis. O próprio Kawabata se mostra uma vez mais como um pintor que em vez de pinceis desenha com as palavras, elegendo suas tonalidades, construindo autênticos haicais que se encontram no interior da narração, ao modo de flash. Se há um verbo que se repete uma e outra vez nesta entrega é “comover”.  

Há lugar para a melancolia neste romance, mas também para a alegria e a felicidade, sensações tão perceptíveis que nos alcançam como a cálida carícia de um raio de sol no inverno. E isso apesar de aprofundar o sentimento de orfandade de Chieko, a menina abandonada que, quase como um milagre, encontra uma irmã cuja existência desconhecida. Kawabata a faz desfrutar da felicidade, do carinho de seus pais adotivos e de uma inesperada surpresa que o destino lhe prepara; talvez presenteando sua personagem, através da ficção, com o que havia desejado para si próprio.

Através da vida de Chieko se reflete a própria experiência vital de Yasunari Kawabata quem aos a partir dos três anos assistiu a morte sucessiva de seus pais, sua avó e sua irmã restando-lhe viver com seu avô cego até aos 15 anos, idade a partir da qual teve de seguir adiante em solidão. Há um conto incluído no volume Contos da palma da mão que tem o título de “Lugar ensolarado” que é essencial para aproximar-se do escritor e segui-lo por toda parte. “Depois da morte de meus pais, vivi com meu avô durante quase dez anos numa casa no campo. Meu avô era cego. Anos e anos se sentou no mesmo lugar ante um fogareiro de carvão, no mesmo lugar, virado para o leste. Vez em quando voltava a cabeça para o sul, mas nunca para o norte. Uma vez que me dei conta desse hábito seu de voltar o rosto apenas para uma direção, me senti profundamente perturbado. Às vezes me sentava durante um muito tempo frente a ele observando seu rosto, perguntando-me se voltaria para o norte ao menos uma vez. Mas meu avô voltava a cabeça até a direita a cada cinco minutos como um boneco mecânico e fixava sua face apenas para o sul. Isso me causava um mal-estar. E parecia misterioso. Ao sul havia lugares ensolarados, e me perguntei se, mesmo cego, poderia perceber essa direção como um lugar de maior luminosidade”*.

Abro cada dos livros de Kawabata e chegam-me pensamentos, golpes de emoção perduráveis. É um vasto território seu, agitado ou suave como um sonho. Um território para a contemplação das cerejas em flor, dos cedros, das flores de lótus... Um território que pode tocar-se, cheirar-se, ouvir-se. Um lugar para seguir aprendendo a conhecermos em nossas nobrezas e perversidades, como toda grande literatura, e para elevarmo-nos através dos sentidos.  

“As obras de Kawabata unem a delicadeza com o vigor, a elegância com a consciência do mais baixo da natureza humana; sua claridade encerra uma insondável nobreza. São modernas mesmo diretamente inspiradas na filosofia solitária dos monges do Japão medieval”, deixou tido Yukio Mishima, quem foi seu admirador discípulo e a quem seguiu, cúmplice, sua viagem voluntária até a morte (Kawabata suicidou-se aos 72 anos sem deixar notas explicativas, talvez porque já havia vislumbrado o vazio extremo da velhice).


* A tradução é livre a partir da versão em espanhol. "Um tesouro chamado Yasunari Kawabata" é um texto cuja versão original é espanhol, publicada em Lecturas Sumergidas.

Comentários

Alexandre Kovacs disse…
Bela homenagem a um dos maiores autores da literatura universal.

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