Sobre o único documento que compõe a gênesis Cem anos de solidão
Momentos anteriores à concepção de Cem anos de solidão. Acapulco, 1965. Gabriel García Márquez (de óculos, sentado) com Luis Alcoriza e Luis Buñuel (à sua direita). Arquivo: El País. |
Foi numa
terça-feira de 1965. Gabriel García Márquez acabava de voltar de um fim de
semana em Acapulco com sua companheira e seus dois filhos, quando, tomado por
um “cataclismo da alma”, sentou-se ante a máquina de escrever, como ele mesmo
recordaria anos depois, e não se levantou até princípios de 1967. Nesses 18
meses, todos os dias, das nove da manhã às três da tarde, o escritor colombiano
escreveu Cem anos de solidão.
Muito já foi
escrito sobre a atmosfera mexicana que deu origem à sua obra magna, de sua
obsessão criativa, de suas dificuldades econômicas, do apoio grandioso dos
amigos. Mas, muito pouco se sabe sobre sua construção. As chaves da organização
de material com o qual edificou o universo de Macondo segue entre sombras. E
este mistério não foi casual. O próprio autor, quando em junho de 1967 recebeu
o primeiro exemplar impresso, desfez-se do original de modo que “ninguém
pudesse descobrir os truques de minha carpintaria secreta”* de criação. Daquela
destruição histórica se salvaram alguns documentos contados. Um deles,
possivelmente o mais importante, foi a primeira cópia das provas de impressão
do romance. Sobre o texto, García Márquez anotou de próprio punho 1.026
correções, deixando à luz trocas de palavras e notas de enorme interesse.
* O texto foi escrito por García Márquez na primeira ocasião em que o datiloscrito foi a leilão, em 2001. O texto está reproduzido no final desta post.
Esses papéis
têm passado por uma existência de azar. O escritor deu-os de presente ao
cineasta exilado Luis Alcoriza e sua companheira Janet. Depois da morte do
casal, foram leiloados duas vezes sem êxito e até agora os papéis seguem em
busca de uma instituição que os zele. O herdeiro Héctor Delgado, diz que
prefere que estejam numa biblioteca ou museu e não em sua posse.
O arquivo
impresso pela editora Sudamericana é composto por 181 folhas numeradas à
mão, com anotações do autor em caneta ou marcador de texto. Nelas o autor
assinala o início de cada capítulo, reordena alguns parágrafos, corta e
adiciona frases, substitui ou corrige mais de 150 palavras e, em muitas
ocasiões, alerta sobre erros. Neste exercício é patente o pulso de exigência que o autor tinha sobre
sua escrita. As mudanças de palavras não apenas são destinadas à limpar o texto
ou esclarecer a extensa quantidade de nomes dos Buendía, mas reafirmam seus
inextrincáveis jogos de linguagem. Às vezes, trata-se de sutilezas: de
“amedrontar” passa a “intimidar”, de “obstruir” a “cegar”, ou de “completar” a
“complementar”. Mas outras, a mão do escritor vai muito além: as borboletas se
tornam “amarelas”, o troglodita é convertido em “mal caráter”, os meninos andam
como “sorumbáticos”, a Ópera Magna se transforma em “alquimia”, um são José de
gesso descobre um interior “atarracado de moedas de ouro” ou a disparo do fuzil
“perturba”, não “desarticula”, um crânio.
Também
algumas personagens adquirem novas características. Amaranta, por exemplo,
“finge sensação de desgosto” ao ouvir falar de casamento, e Aureliano vê sua
“antiga piedade” transformar-se “numa má vontade virulenta”. São alterações
constantes. Uma chuva fina de ajustes que, sem gerar mudanças de fundo nem
giros argumentativos, descobrem o tamanho microscópico e tenaz de um texto de
cuja grandeza o autor era consciente.
Dedicatória aos Alcoriza em única primeira peça da gênesis de Cem anos de solidão. Arquivo: El País |
Possivelmente
por isso, García Márquez nunca devolveu as provas de imprensa à editora, apenas
enviou as correções à parte. E ao invés de destruir o documento como podia ser
esperado, o converteu num monumento à amizade: dedicou e presenteou ao diretor
de cinema Luis Alcoriza e sua companheira, a atriz austríaca Janet Riesenfeld: “Para
Luis e Janet, uma dedicatória repetida, mas que é a única verdadeira: 'do amigo
que mais lhe gosta neste mundo'. Gabo. 1967”.
O casal,
estabelecido no México e muito próximo a Luis Buñuel, formava parte do círculo
íntimo do escritor colombiano. Aquele que havia mantido nas épocas mais
difíceis e com quem, nos dias bons, havia celebrado a alegria de viver. O
próprio autor explicou anos mais tarde: “Quando a editora me mandou a primeira
cópia das provas de impressão, as levei já corrigidas a uma festa na casa dos
Alcoriza, sobretudo por causa da curiosidade insaciável do convidado de honra,
Luis Buñuel, que teceu toda sorte de especulações magistrais sobre a arte de
corrigir, não para melhorar, mas para esconder. Vi Alcoriza tão fascinado pela
conversa que tomei a boa determinação de lhe presentear com as provas”.
O casal
guardou as páginas como um objeto sagrado. Dezoito anos depois, quando Cem anos de solidão já era um totem,
García Márquez voltou a encontrar-se na casa dos Alcoriza: “Janet as retirou do baú e o exibiu na sala, até que
fizeram a piada de que com isso podia sair da pobreza. Alcoriza fez então uma
cena muito sua, dando golpes com ambas as mãos no peito, e gritando com seu
vozeirão bem impostado e sua determinação carpetovetônica: ‘Pois eu prefiro
morrer a vender essa joia dedicada por um amigo’”. García Márquez respondeu
escrevendo debaixo da dedicatória, com a mesma caneta que da primeira vez:
“Confirmado. Gabo. 1985”.
Luis
Alcoriza, o exilado, morreu em 1992 em Cuernavaca. Sua companheira seis anos
depois. As páginas caíram nas mãos de seu herdeiro, o engenheiro e produtor
Héctor Delgado, o homem que havia cuidado deles nos últimos dias. Em 2001, com
a aprovação do Prêmio Nobel, os papéis foram leiloados sem êxito em Barcelona;
pediam um milhão de dólares. Um ano depois, e nada. Agora, um ano depois da
morte de García Márquez, o herdeiro busca quem os queira. A Universidade do
Texas, que comprou o arquivo do escritor, se interessou, mas depois calou-se.
Quase meio século depois de sua publicação, um dos poucos documentos da gênesis
de Cem anos de solidão que se
salvaram e segue em busca de um dono.
***
A ODISSEIA LITERÁRIA DE UM MANUSCRITO
Por Gabriel García Márquez
No início de
agosto de 1966, Mercedes e eu fomos ao escritório dos correios de San Ángel, na
Cidade do México, para enviar a Buenos Aires os originais de Cem anos de solidão. Era um pacote com
quinhentas e noventa páginas escritas à máquina em espaço duplo e em papel
ordinário dirigido ao editor da Sudamericana, Francisco (Paco) Porrúa. O
empregado do correio pôs o pacote na balança, fez seus cálculos mentais e
disse:
– São
oitenta e dois pesos.
Mercedes
contou as notas e as moedas soltas que levava na carteira e me confrontou com a
realidade:
– Só temos
cinquenta e três.
Estávamos
tão acostumados a esses tropeços cotidianos depois de mais de um ano de
penúrias, que não pensamos muito na solução. Abrimos o pacote, dividimos em
duas partes iguais e mandamos para Buenos Aires apenas a metade, sem
perguntarmos sequer como íamos conseguir o dinheiro para mandar o restante.
Eram seis da tarde de sexta-feira e até a segunda não voltariam a abrir o
correio, assim tínhamos todo o fim de semana para pensar.
Já restavam
poucos amigos para explorar e nossas propriedades melhores dormiam o sono dos
justos na casa dos penhores. Tínhamos, certamente, a máquina de escrever com a
qual havia escrito o romance em mais de um ano de seis horas diárias, mas não
podíamos empenhá-la porque nos faria falta para comer. Depois de uma grande
revista na casa encontramos apenas outras duas coisas empenháveis: o aquecedor
de meu estúdio, que já devia valer muito pouco, e uma batedeira que Soledad
Mendoza havia nos presenteado em Caracas quando nos casamos. Tínhamos também as
alianças de casamento, que só usamos para a cerimônia e que nunca havíamos nos
atrevido de empenhar porque acreditávamos que seria mal agoiro. Desta vez
Mercedes decidiu levá-las de qualquer maneira como reserva de emergência.
Na primeira
hora da segunda-feira fomos à casa dos penhores mais próxima, onde já éramos
clientes conhecidos, e nos emprestaram – sem os anéis – um pouco mais do que
nos faltava. Apenas quando fomos ao correio nos demos conta de que havíamos
feito contrário: mandado as páginas finais antes das do começo. Mas Mercedes
não fez graça, porque sempre desconfiou do destino.
– A única
coisa que falta agora, disse, é que o romance seja ruim.
A frase foi
a culminação perfeita dos dezoito meses que levamos batalhando juntos para
terminar o livro em que depositava todas minhas esperanças. Até então havia
publicado quatro em sete anos, pelos quais havia recebido muito pouco ou quase
nada. Salvo por A má hora, que obtive
o prêmio de três mil dólares no concurso da Esso Colombiana que me serviram para
as despesas com o nascimento de Gonzalo, nosso segundo filho, e, para comprar
nosso primeiro carro.
Vivíamos
numa casa de classe média nas colinas de San Ángel Inn, propriedade do major
oficial da prefeitura, Luis Coudurier, que entre outras virtudes tinha a de
ocupar-se em pessoa do aluguel da casa. Rodrigo, de seis anos, e Gonzalo, de
três, tiveram nela um bom jardim para jogar embora não fossem para a escola. Eu
havia sido coordenador geral das revistas Sucesos
e La Familia, onde consegui por um
bom salário o compromisso de não escrever nem uma letra durante dois anos.
Carlos Fuentes e eu havíamos adaptado para o cinema O galo de ouro, uma história de Juan Rulfo que Roberto Gavaldón
filmou. Também com Carlos Fuentes havia trabalhado numa versão final de Pedro Páramo para o diretor Carlos Velo.
Havia escrito o roteiro de Tempo de
morrer, o primeiro longa-metragem de Arturo Ripstein, e de Presságio, com Luis Alcoriza. Nas poucas
horas que me sobravam fazia uma boa variedade de tarefas ocasionais – textos de
publicidade, comerciais de televisão, alguma letra de música – que me era o
suficiente para viver sem pressa mas não para seguir escrevendo contos e
romances.
Sem dúvidas,
desde há algum tempo me atormentava a ideia de um grande romance, não apenas
diferente do que havia escrito até então, mas do que já havia lido. Era uma
espécie de terror sem origem. De repente, no início de 1965, ia com Mercedes e
meus dois filhos para um fim de semana em Acapulco quando me senti atacado por
um cataclismo da alma tão intenso e arrasador que apenas conseguir evitar uma
vaca que atravessou na estrada. Rodrigo deu um grito de felicidade:
– Eu também
quando for grande vou matar vacas na estrada.
Não tive um
minuto de sossego na praia. Na terça-feira, quando voltamos ao México, me
sentei à máquina para escrever uma frase inicial que não podia suportar dentro
de mim: “Muitos anos depois, frente ao pelotão de fuzilamento, o coronel
Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou
para conhecer o gelo”. Desde então não interrompi um só dia, numa espécie de
sonho demolidor, até a linha final em que a Macondo foi-se para os diabos.
Nos
primeiros meses conservei meus melhores compromissos, mas cada vez me faltava
mais tempo para escrever tanto como queria. Cheguei a trabalhar de noite até
muito tarde para cumprir com meus compromissos pendentes, até que essa vida se
tornou impossível. Pouco a pouco fui abandonando tudo até que a realidade
insubordinável me obrigou a escolher sem rodeios entre escrever ou morrer.
Não desisti,
porque Mercedes – mais que nunca – levou tudo quando acabamos de cansar os
amigos. Pediu créditos sem esperanças à tenda do bairro e o açougueiro da
esquina. Desde as primeiras angústias havíamos resistido à tentação dos
empréstimos a juros, até quando amarramos o coração e fizemos nossa primeira ida à
casa dos penhores. Depois dos alívios efêmeros com certas coisas pequenas,
apelamos para as joias que Mercedes havia recebido de seus familiares através
dos anos. O especialista da seção as examinou com um rigor de cirurgião, pesou
e revisou com olho mágico os diamantes dos brincos, as esmeraldas de um colar,
os rubis das pulseiras, e ao final nos devolveu com uma larga reprovação de
aluno displicente:
– Isto é
puro vidro!
Nunca
tivemos interesse nem tempo para averiguar quando foi que as pedras preciosas
originais foram substituídas por fundos de garrafas, porque o touro negro da
miséria atacava por todos os lados. Parecerá mentira, mas um de meus problemas
mais urgentes era o papel para a máquina de escrever. Tinha a má educação de
acreditar que os erros de datilografia, de linguagem ou de gramática eram na
realidade erros de criação, e cada vez que os detectava rasgava a folha e a
atirava à lixeira para começar de novo. Mercedes gastava metade do orçamento
doméstico em pirâmides de resmas de papel que não duravam uma semana. Esta era
talvez uma das minhas razões para não usar papel carbono.
Problemas
simples como esse chegaram a ser tão urgentes que não tivemos ânimos para
encontrar a solução final: empenhar o carro recém comprado, sem suspeitar que o
remédio seria mais grave que a enfermidade, porque aliviamos as dívidas
atrasadas, mas na hora de pagar as contas do mês caímos enforcados num abismo.
Por sorte, nosso amigo Carlos Medina, de velha e boa data, se empenhou em
pagarmos, e não apenas um só mês, mas vários mais, até que conseguimos resgatar
o carro. Há alguns anos soubemos que também ele havia tido que empenhar um de
seus bens para pagar as contas do nosso.
Os melhores
amigos vinham em grupos para nos visitar toda noite. Apareciam como por acaso,
e com pretextos de revistas e livros nos levavam cestas de supermercado que
pareciam casualidade. Carmen e Álvaro Mutis, os mais assíduos, me davam corda
para que lhes contassem os capítulos em curso do romance. E eu conseguia inventar-lhes
versões para aquela ocasião porque por minha superstição contar o que estava
escrevendo espantava os duendes.
Carlos
Fuentes, apesar de seu terror de voar naqueles anos, ia e vinha pelo meio do
mundo. Seus regressos eram uma festa perpétua para conversar de nossos livros
em curso como se fossem um só. María Luisa Elío, com suas vertigens
clarividentes, e Jomi García Ascot, seu companheiro, paralisado por seu estupor
poético, escutavam meus relatos improvisados como sinais cifrados da Divina
Providência. Assim que nunca tive dúvidas, desde suas primeiras visitas, para
dedicar-lhes o livro. Além disso, muito logo me dei conta de que as reações e o
entusiasmo de todos me iluminavam os desfiladeiros reais de meu romance.
Mercedes não
voltou a falar de seus trabalhados com o crédito até março de 1966 – um ano
depois de começado o livro –, quando devíamos três meses de aluguel. Estava falando
por telefone com o dono da casa, como fazia com frequência para alentá-lo em
suas esperas, e de pronto tapou o telefone com a mão para perguntar-me quando
esperava terminar o livro.
Pelo ritmo
que havia adquirido em um ano de prática calculei que me faltavam seis meses. Mercedes
fez então suas contas astrais e disse ao seu paciente caseiro sem o mínimo temor
na voz:
– Podemos
pagar-lhe tudo junto dentro de seis meses.
– Perdão,
senhora – disse o proprietário assombrado – Se dá conta de que então será uma
soma enorme?
– Me dou
conta – disse Mercedes, impassível – mas então é quando teremos todo o
dinheiro. Fique tranquilo.
Ao bom
soldado, um dos homens mais elegantes e pacientes que havíamos conhecido,
tampouco levantou a voz para contestar: “Muito bem, senhora, com sua palavra me
basta”. E tirou suas contas mortais:
– Espero o
sete de setembro.
Equivocou-se:
não foi sete, mas quatro, o primeiro cheque inesperado que recebemos pelos
direitos da primeira edição.
Os meses
restantes vivemos em pleno delírio. O grupo de meus amigos mais próximos que
conheciam bem a situação, nos visitavam com mais frequência que antes, sempre
carregados de milagres para seguirmos vivendo. Luis Alcoriza e sua companheira austríaca,
Janet Riesenfeld Dunning, não eram visitas frequentes, mas armavam em sua casa comemorações
históricas, com seus amigos sábios e as mulheres mais bonitas do cinema. Muitas
vezes eram simples pretextos para nos ver. Ele era o único espanhol que podia
fazer fora da Espanha uma paella igual às de Valência, e ela era capaz de
mantermo-nos no ar com suas artes de bailarina clássica. Os García Riera,
loucos do cinema, nos arrastavam à sua casa na noite dos domingos e nos
transmitiam a demência feliz para afrontar a semana seguinte.
O romance
estava então tão avançado que me dava o luxo de seguir enriquecendo o argumento
falso que improvisava para as visitas dos amigos. Muitas vezes escutei
recitados por outros, a quem nunca havia contado, e me surpreendia da
velocidade com que cresciam e se ramificavam de boca em boca.
No final de
agosto, de um dia para outro, me apareceu no entorno de uma esquina o fim do
romance. Não usava papel carbono e não existiam fotocopiadoras de canto, de
modo que era um só original de umas duas mil folhas. Foi um manjar dos deuses
para Esperanza Araiza, a inolvidável Pera, uma das boas mecanógrafas de Manuel
Barbachano Ponce em seu castelo de Drácula para poetas e cineastas na colônia Cuauhtémoc.
Em suas horas livres durante vários anos, Pera havia passado a limpo grandes obras
de escritores mexicanos. Entre elas, A região
mais transparente, de Carlos Fuentes; Pedro
Páramo, de Juan Rulfo, e vários roteiros originais dos filmes de Luis Buñuel. Quando
lhe propus que me passasse a limpo a versão final do romance, era um rascunho
repleto de remendos, primeiro com tinta negra depois com tinta vermelha para
evitar confusões. Mas isso não era nada para uma mulher acostumada a tudo numa
jaula de loucos. Não só aceitou o rascunho por curiosidade de lê-lo, mas também
porque lhe pagaria logo depois a parte que pudesse e o resto quando me pagassem
os primeiros direitos de autor.
Pera copiava
um capítulo por semana enquanto eu corrigia o seguinte com toda a sorte de
emendas, com tintas de distintas cores para evitar confusões, e não pelo
simples propósito de fazê-lo mais curto, mas de elevá-lo ao maior grau de
densidade. Até o ponto que esteve reduzido quase à metade do original.
Anos depois,
Pera me confessou que, quando levava à sua casa uma única cópia do terceiro capítulo
corrigido por mim, o datiloscrito caiu ao entrar no ônibus fugindo de uma chuva diluvial e as folhas
ficaram flutuando na correnteza da rua. As recolheu empapadas e quase ilegíveis,
com a ajuda de outros passageiros e em casa as secou com um ferro
de passar.
Minha maior emoção
desses dias foi um sábado em que não tive correções do capítulo
seguinte e chamei Pera para dizer-lhe que só levaria alguma coisa na segunda. Ao fim de um
largo titubeio se atreveu perguntar-me se Aureliano Buendía ficaria no fim com
Remedios Moscote. Quando lhe respondi que sim, soltou um suspiro de alívio.
– Bendito
seja Deus – exclamou; se não houvesse dito, não poderia dormir até
segunda-feira.
Nunca soube
como foi que nesses dias recebi uma carta intempestiva de Paco Porrúa – de quem
nunca havia ouvido falar – na qual me pedia para a editora Sudamericana os
direitos de meus livros, que conhecia muito bem em suas primeiras edições. Partiu-me
o coração, porque todos estavam em editoras diferentes com contratos de largo
tempo, e não seria fácil liberá-los. O único consolo que me ocorreu foi dizer a
Paco que estava perto de terminar um romance muito longo e sem compromissos e
que em poucos dias podia enviar-lhe a primeira cópia terminada.
Paco Porrúa
aceitou por telegrama e na volta da correspondência me mandou um cheque de
quinhentos dólares como antecipação. Justo para os nove meses de aluguel que havíamos
nos comprometido a pagar por esses dias e não encontrávamos como, por um mal
cálculo meu para findar o romance.
De todos os
modos, a limpa transcrição de Pera com três cópias em papel carbono estendeu-se
em duas ou três semanas a mais. Álvaro Mutis foi o primeiro leitor da cópia
definitiva, antes de mandá-la para impressão. Desapareceu dois dias, e ao
terceiro me chamou com uma de suas fúrias cordiais, ao descobrir que meu
romance não era na verdade o que eu contava para entreter os amigos e que ele
repetia encantado para os seus.
– Você me
fez ficar como um trapo, caralho! – gritou. Este livro tem nada a ver com que
nos contava.
Logo,
morrendo de ri, me disse:
– Menos mal
que este é muito melhor.
Não recordo então
se tinha o título do romance, nem de onde, nem quando, nem como ele me ocorreu.
Com nenhum dos amigos de época, nem em nenhum livro de tantos que pude
precisar. Nem mesmo falei com alguém como meu irmão Eligio Gabriel, o mais digno e
intenso de invenção dos vários que foram publicados sobre o tema. Por sorte,
não haverá de faltar algum historiador imaginativo que se encarregue de
inventar.
A cópia que
Álvaro Mutis leu foi a que mandamos em partes pelo correio, e outra foi levada
de volta por ele próprio pouco depois de uma de suas viagens a Buenos Aires. A terceira
circulou pelo México entre os amigos que nos acompanharam durante os momentos difíceis.
A quarta foi a que mandei a Barranquilla para que lessem três protagonistas
cativantes do romance: Alfonso Fuenmayor, Germán Vargas e Álvaro Cepeda, cuja
filha Patricia guarda como se um tesouro.
Quando recebemos
o primeiro exemplar do livro impresso, em junho de 1967, Mercedes e eu rasgamos
o original que Pera utilizou para as cópias. Não ocorreu de pensarmos nem muito
menos que podia ser apreciável por todos, com o terceiro capítulo apenas legível
pela chuva e pelo ferro de engomar. Minha decisão não foi nada inocente nem
modesta, mas rasgamos a cópia para que ninguém pudesse descobrir os truques de
minha carpintaria secreta. Sem dúvidas, em alguma parte do mundo pode haver
outras cópias, e em especial as duas enviadas a Editora Sudamericana para a
primeira edição. Sempre pensei que Paco Porrúa – com todo seu direito – tenha guardado
como relíquia. Mas ele disse-me que não, e sua palavra é de ouro.
Quando a
editora me mandou a primeira cópia das provas de impressão, as levei já
corrigidas a uma festa na casa dos Alcoriza, sobretudo por causa da curiosidade
insaciável do convidado de honra, Luis Buñuel, que teceu toda sorte de especulações
magistrais sobre a arte de corrigir, não para melhorar, mas para esconder. Vi
Alcoriza tão fascinado pela conversa que tomei a boa determinação de lhe
presentear com as provas: Para Luis e Janet, uma dedicatória repetida, mas que
é a única verdadeira: ‘do amigo que mais lhe gosta neste mundo’. Junto a
assinatura escrevi a data: 1967. A menção sobre a assinatura repetida e a frase
final se deviam a uma dedicatória anterior que havia feito no livro para os
Alcoriza. Vinte e oito anos depois, quando Cem
anos de solidão havia feito sua carreira, alguém recordou aquele episódio
na mesma casa, e opinou que as provas com a dedicatória valiam uma fortuna. Janet
as retirou do baú e exibiu na sala, até que fizeram a piada de que com isso
podia sair da pobreza. Alcoriza fez então uma cena muito sua, dando golpes com
ambas as mãos no peito, e gritando com seu vozeirão bem impostado e sua
determinação carpetovetônica:
– Pois eu
prefiro morrer a vender essa joia dedicada por um amigo.
Entre a ovação
de todos, peguei a mesma caneta da primeira vez que ainda conservava e escrevi
debaixo da dedicatória de dezoito anos antes: Confimado, 1985. E voltei a
assinar como a primeira vez: Gabo. Esse é o documento de 180 folhas, com 1026
correções de meu punho e letra, que será colocado em leilão no dia 21 de
setembro deste ano na Feira do Livro de Barcelona, sem participação nem
benefício de minha parte.
Que não haja
dúvidas de que é uma operação legítima. O que desconcerta alguns é por que as
provas originais estavam em meu poder, se devia havê-las devolvido a Buenos
Aires para que fizessem as correções finais na primeira edição. A verdade é que
nunca as devolvi corrigidas de meu punho e letra, mas que mandei por correio
apenas uma lista de correções copiadas à máquina linha por linha, por temer que
o tomo se perdesse na volta.
Luis
Alcoriza morreu em 1992, aos setenta e um anos, em seu retiro de Cuernavaca.
Janet o seguiu e morreu seis anos depois ao lado de um pequeno núcleo de seus
amigos fiéis. Entre eles, o mais fiel de todos, Héctor Delgado, que os havia
adotado como pais e se ocupou deles nas vacas magras da velhice mais e melhor
que se fossem seus pais verdadeiros. Antes de morrer, eles o nomearam seu
herdeiro legítimo por testamento. O único que me parece injusto desta história
por sua vez inverossímil e memorável é que Luis e Janet viveram seus últimos
anos com milhares de dólares guardados a salvo do tempo e das traças no fundo
do baú pela invencível dignidade ibérica de não vender o presente do amigo que
mais os quis neste mundo.
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