O perigo das ideias prontas
Por Rafael Kafka
Um dia, eu
estava em um ônibus voltando para casa conversando com uma colega de trabalho.
Não lembro ao certo o tema de nosso embate de ideias, mas lembro que girava em
torno do comportamento de homens e mulheres, um tópico bastante comum para eu
me meter em pequenas querelas. Em dado
momento, a pessoa se vira para mim e diz que não respeito sua opinião. Respondo
em defesa que apenas ouvi sua visão e a questionei com a minha, ao que ela
retruca que isso é justamente não respeitar a visão do outro!
A cena em si parece banal, mas
se repete bastante em minha vida. É muito comum eu ouvir pessoas dizerem que eu
quero ser, sozinho, o dono da verdade; que eu quero questionar tudo e por
qualquer motivo quero entrar em um debate filosófico. O que talvez seja
verdade. Mas sinceramente, não vejo grande problema nisso. Claro que nem sempre
estamos dispostos a discutir temas banais de forma profunda, contudo a resposta
de que o outro não respeita nosso ponto de vista simplesmente porque o negamos
a colocá-lo em parênteses é indício de preguiça intelectual.
Digo isso, pois geralmente
quando ouço das pessoas que eu não respeito à opinião alheia percebo nelas uma
grande falta de presença de leitura em sua vida, seja a literária, seja a
teórica sobre quaisquer assuntos do cotidiano. O que ocorre em diversos
contextos de minha vida são pessoas as quais por preguiça, cansaço ou mesmo
impossibilidade de lerem um livro, absorvem pontos de vista feitos por outros
seres pertencentes a instâncias discursivas de imenso poder, a mídia. Com as
tribulações do cotidiano, tais verdades prontas soam perfeitas para seres que
por serem humanos precisam expressar visões sobre o que sentem diante do caos
que nos rodeia. E é nesse momento que vemos como as ideias prontas se repetem
como coro de um teatro de absurdo.
É muito comum vermos tal teatro
de repetição nas discussões do Facebook. Em diversos momentos, os temas do
debate nada tem a ver com este ou aquele partido e partem para uma visão mais
aprofundada do próprio sistema político brasileiro. Ainda assim, vemos uma
grande quantidade de pessoas acusando especificamente este ou aquele político
ou partido, sem sequer entender como funcionam as manobras que garantem a
deputados, senadores e outros representantes de nosso poder político a
manutenção de suas posições confortáveis.
Como dito acima, tais discursos
são produzidos por aparelhos midiáticos que estão ligados diretamente a
interesses de manutenção de poder econômico de suas classes. Demoniza-se
programas sociais e lados de uma questão ao invés de se discutir melhorias
políticas existentes recentemente e agregar de forma dialética todo um contexto
político assaz complexo. E ganham força por conta da existência de pessoas as
quais querem se expressar sem saber sobre o que estão falando.
*
Por esses dias, eu estava dando aula e o
tema da mesma era sobre o prazer da leitura. Há algum tempo, eu achava perda de
tempo em falar de leitura por si só, mesmo eu tendo sido alguém que conseguiu
se salvar na leitura devido à mediação de diversas pessoas que sempre me
incentivaram a seguir com livros embaixo do braço. Todavia, cada vez mais tenho
percebido que não são os alunos aplicados e que obtêm notas altas com grande
frequência os que propiciam as melhores discussões em sala, e sim aqueles que
são sujeitos leitores.
Em geral, meus alunos leem os
Best-Sellers da moda: Nicholas Spark, JK Rowling e John Green são autores que sempre vejo nos trend topics dos trabalhos das resenhas que peço a
eles. Tais autores anteriormente seriam vistos por mim com grande reserva, por
eu achar, em minha arrogância, que o correto é mesmo aprender a ler com os
clássicos, como foi o meu caso. Todavia, eu vejo esses jovens muito mais
sonhadores do que o leitor sem muitas perspectivas e romantismo o qual fui em
minha adolescência e com um grau de questionamento e sensibilidade que me fazem
pensar que eu nada era perto deles.
Em meu momento mais conservador
como mediador de leitura, desconfiei dos Best-Sellers por achar que a leitura
deveria ser voltada aos grandes temas críticos (segundo meu gosto, claro) para
favorecer o poder crítico dos jovens leitores. Hoje eu entendo que leitura
enquanto hábito é algo salvador por si só. A mente leitora é perigosa pelo fato
de que ela aprende a sair de si para questionar situações e valores diferentes
dos vividos por ela. Tal passo que pode parecer simples demais para não
leitores é de uma profundidade ontológica muito grande e é o verdadeiro cerne
da importância de se discutir leitura em nosso atual contexto político: um
sujeito leitor aprende a questionar fontes, a se questionar.
Ocorrendo isso, um indivíduo
dificilmente vai crer de forma tão cega em uma notícia veiculada por outro
canal de comunicação. No geral, haverá uma procura por outras fontes que
ratifiquem ou refutem aquela informação e os possíveis comentários políticos
ali presentes.
Claro que sempre há o perigo de
a leitura se tornar em si mesma uma forma de alienação. Saramago serve como
exemplo de citação para dois casos opostos. No discurso do Nobel de 1998, ele
afirmou ser uma pessoa analfabeta, seu avô, o ser humano mais sábio já
conhecido por ele. Não à toa, em diversos de seus textos as pessoas simples, do
povo, adquirem uma importância muito grande para a história. E não à toa
também, em um de seus romances mais famosos, há uma crítica sutil e profunda ao
comportamento leitor elitizado de quem se afunda no mundo das palavras e
desaprende a ler o mundo real. Em O ano da morte de Ricardo Reis vemos no heterônimo de Pessoa uma criatura nada consciente do universo que o
rodeia, mesmo sendo médico e poeta. Lídia, uma simples criada de hotel e
submissa ao poeta de inspiração helênica e estoica, leva a ele o choque da
realidade fascista que naquele momento toma conta de Europa e Portugal.
Nesse momento, chegamos talvez
ao porquê de antigamente eu não levar a sério Best-Sellers e o discurso da
leitura por si só: o processo de mediação não deve apenas levar leitura, e sim
inquietude, desassossego ao leitor. Para que ele não recaia no mundo das ideias
prontas e da alienação. A diferença do leitor alienado e do simples repetidor
de informações descrito no começo deste texto é que geralmente o leitor
alienado é tão encantado pelo prazer da leitura e dos sonhos trazidos por ela
que não se perde em questões tolas ligadas ao plano banal da realidade.
Pude
detectar demais isso em mim nos meus 17/18 anos e mesmo até meus 22 anos ainda havia diversos resquícios dessa ignorância política. Para piorar, todo leitor
se sente tentando a escrever suas histórias, mesmo que na forma de diários, na forma de notas inconstantes sobre seu dia-dia ou em rascunhos de contos e
poemas. O leitor que se torna escritor percebe então em si diversas coisas as
quais ele quer transformar em literatura e diante de tanto a ser escrito e a
ser lido não se sente tentando a entender a complicação que é esse nosso mundo.
Vemos muito isso na literatura de aspiração e inspiração burguesa do século
XIX, onde os poetas malditos eram apenas seres os quais fugiam a lógica de
crescimento econômico sem abrir mão do conforto para escrever suas rebeldias. O
poeta maldito, na verdade, é muitas vezes um leitor sossegado, um leitor que lê
por status, para mostrar o quanto é cool, descolado, charmoso, o que fala bem e
domina uma grande gama de saberes e temáticas.
*
A alienação é algo tentador
demais pelo fato de o mundo ser algo fragmentado, confuso, caótico. É mais
fácil se fechar em si mesmo do que encarar as diferentes camadas de realidade
que nos rodeiam. O leitor desassossegado é um ser sedento por essa
realidade, por essa leitura, é um ser capaz de sempre estar a se renovar por
ver nisso o próprio sentido político do ato de existir.
O perigo das ideias prontas é
justamente o sossego, a paz falsa diante da calmaria do ato de ler não
comprometido com a realidade. O perigo reside justamente no fato de ideias
serem dadas sem que se aceite questionamentos a elas e isso é perigoso demais
pelo fato de que uma pessoa a qual não se dispõe a mudar será sempre um
receptáculo de verdades acabadas e ao não aceitar o questionamento pode dar
asas à violência institucionalizada na forma de fascismo.
É o que de certa forma vemos
hoje em dia nas ruas de nosso país: vemos uma classe de leitores sossegados
pensando que entendem algo sobre justiça social replicando seus valores para
uma classe de simples receptores de informação dada pelos jornais e que por
condições de vida geralmente bastante simples não conseguem ir muito além
disso, dessas informações acabadas. Todas essas pessoas lutam contra um demônio
comum a todos nós, mas sem entender como esse demônio se materializa em nossas
vidas, seja na roubalheira de grandes nomes, seja em nossos próprios atos
corruptos. Tal demônio é a corrupção, isso que desde o descobrimento de nosso
país (entre aspas, claro) marca a história de luta de classes e etnias dentro de
nossa cultura.
Ao que parece, cada vez mais
esse discursos cego, cheio de ódio, contra a corrupção e contra aqueles que as
grandes mídias colocam como sendo os únicos culpados de toda a história que nos
assola, ganhará força. Cada vez mais, será preciso se discutir como
desassossegar leitores para levarem o desvairismo do ato de ler aos outros.
Cada vez mais teremos de tirar forças de algum canto para não perdermos a fé de
que algo pode ser feito.
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