O novo romance de Harper Lee



Já findou as peregrinações ao número 20/23 da Rua Greville de Londres. Editoras de meio-mundo estiveram aí para negociar a publicação dos papéis recém-descobertos de Harper Lee, Go, set a watchman. O manuscrito é o embrião de um clássico da literatura estadunidense, O sol é para todos, aparecido agora 55 anos depois. O entusiasmo para aquisição dos direitos é coisa rara no mundo dos leilões editoriais; e desde o anúncio do inédito na manhã de 3 de fevereiro de 2015, em Nova York, que as edições do primeiro romance logo desapareceram das livrarias e o título passou a figurar na lista dos mais vendidos.

No Brasil, a edição já tem data de publicação: final de julho – apenas duas semanas depois de ser publicada nos Estados Unidos. No país da escritora a edição terá uma tiragem de 2 milhões de cópias. Aqui ainda não se tem notícia sobre cifras, mas é a José Oympio, editora que já publicou o único romance de Lee há algum tempo, que ficou com a incumbência de trazer a esperada obra aos leitores brasileiros.

Todos os editores logo depois de aceitarem a publicação assinaram um documento de confidencialidade para não revelar detalhes nem da obra nem das negociações. E, antes, à entrada da sala para o fechamento das negociações todos eram obrigados a deixar fora telefones e quaisquer elementos para cópia ou registro. Depois foram levados a diante das folhas soltas do manuscrito a fim de que lessem por alto e tivessem noção do conteúdo – duas horas, quatro horas... Poucos eleitos. No final receberam um pacote que incluía cópia impressa e digitalizada.

A descoberta do manuscrito e a decisão em publicá-lo parece contrariar o desejo da autora que nem publicou mais nada depois do primeiro romance; mas, o sucesso de vendas do romance da década de 1960 e a peregrinação dos editores têm demonstrado uma coisa: é já este o acontecimento editorial do ano. Harper Lee pertence à raça de escritores longe dos holofotes, como J. D. Salinger. Estreou há meio século com a história do advogado Atticus Finch que defende um negro acusado de estuprar uma branca; a história é narrada por Scout, a filha de Finch.

Depois disso a escritora calou-se. Nada mais de entrevistas; nada mais de aparecer e agora já com 88 anos segue fiel ao seu silêncio. O que fez foi divulgar apenas um breve comunicado sobre a descoberta do manuscrito e seu interesse vê-lo publicado. Ou seja, já não estaríamos diante de uma contrariedade de seu desejo. Mas, o silêncio de Lee durante todos esses anos serviu para alimentar todo tipo de teorias da conspiração; uma das mais malévolas sustinha que, na verdade, o autor de O sol é para todos, ou de parte do livro, não era a escritora, mas Truman Capote, seu amigo de infância e um dos personagens do romance. Outra teoria, mais verossímil, é que sem a ajuda de Lee, que o acompanhou durante as viagens ao Kansas em buscas de informações, Capote dificilmente haveria escrito A sangue frio. Lee não era um estilista como Capote, mas, como disse uma vez o escritor Allan Gurganus, Capote carecia do “sentido ético” de Lee.

Agora, ela vive em Monroeville, sua cidade natal, no estado do Alabama, numa residência para idosos. Na mesma cidade onde nos anos 1950 escreveu Go, set a a watchman. A história é que o manuscrito foi, desde então, extraviado depois de ter seguido um conselho do seu editor na época Tay Hohoff. Ele lhe sugeriu que seria interessante a história de uma jovem vietnamita que tratasse sobre a igualdade, os direitos civis e a amizade contada do ponto de vista de quando essa mulher fosse criança e a chamavam Scout. Assim nasceu, de verdade, O sol é para todos – pelo menos era o que se acreditava até essa descoberta.

O êxito acompanhou o romance desde o 11 de julho de 1960 quando chegou às livrarias. E, possivelmente, esse sucesso lançou sombras e levou ao esquecimento o embrião original. E ficou assim até meados de 2014, quando ninguém esperava aparecer um conjunto de folhas já amareladas pelo tempo; aí pode estar, de fato, a origem da história sugerida por Tay Hohoff. Nesses papéis surgidos do passado, uma mulher chamada Jean Louise, Scout para bem conhecimento de todos, vive em Nova York, onde já não lhe alcançam os gritos de Calpurnia, e um dia viaja para encontrar seu pai, Atticus Finch, no povoado de Maycomb. Foi o que ficou revelado até o momento através do comunicado breve da própria escritora.

“Eu era uma escritora nova e fiz o que me disseram”, disse a autora. “Não era consciente de que [o livro original] havia sobrevivido, assim me surpreendi e me alegrei quando minha querida amiga e advogada, Tonja Carter, o descobriu. Depois de muito pensar e de muitas dúvidas, compartilhei a novidade com um pequeno grupo de pessoas nas quais confio e me convenci depois de escutá-lo a recomendação pela publicação. Me honra e impressiona que se publique agora depois de tantos anos”.

Gregory Peck e Harper Lee durante as filmagens de O sol é para todos.


Nesse intervalo de tempo – ou desde sua publicação – O sol é para todos, publicado na época da luta pelos direitos civis, alcançou uma posição além do romance: o filme em que Gregory Peck interpreta Atticus Finch contribuiu para o êxito. Mas, o romance ganhou a pauta dos debates sociais mais acalorados de seu tempo. A autora recebeu o Pulitzer e naquela ocasião vendeu mais de trinta milhões de exemplares. Segue sendo uma obra lida nas escolas, num país onde o trauma pelo racismo ainda sobrevive. E, justamente por essa marca, nunca terá seu significado esgotado.

Essa condição – a da aparição do manuscrito perdido e a do sucesso de O sol é para todos – é exemplar para 2015. É que justamente nesse ano alcançamos o cinquentenário das históricas marchas realizadas por Martin Luther King da cidade de Selma, interior do Alabama, à capital do estado, Montgomery em busca da igualdade dos direitos civis para negros. Finch, um homem justo, o farol da moral, e Scout, a moça rebelde e independente, em situações como as vividas ainda hoje, mantém-se firmes. E o romance ganha por esse contexto novo fôlego como se uma Bíblia civil, um manual de cidadania que ensina aos jovens caras lições do passado e a respeitar o outro, a colocar-se no seu lugar.

A peregrinação, então, foi para ter acesso ao primeiro sopro de inspiração da obra já exitosa. E o silêncio deixará de existir em breve, mas, até lá uma procissão de perguntas se apresenta: falará a autora? O romance será tão bom quanto seu único livro conhecido? Scout será advogada como seu pai? Que terá se passado com seu irmão Jem e seu amigo Dill? O que pensará Atticus Fisch, vinte anos depois de defender sem sucesso Tom Robinson? Seguirá de pé a Mansão Radley? E Boo? Seguirá solitario e em silêncio?

O que ninguém duvida é que deverá sair um filme, tal como aconteceu com O sol é para todos em 1961. E então todos poderão saber o que fizeram Scout e Jem com aquele conselho dado por Atticus de que alguém não conhece verdadeiramente uma pessoa até não se coloque em sua pele. O romance tem, na versão original, 304 páginas e será publicado tal como foi escrito, sem revisões.


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