O meu memorial do convento
Por Pedro Fernandes
Agora já é
tarde para responder. Sempre que me deparo com uma grande construção ou mesmo
determinadas engenhosidades do dia-a-dia me pergunto sobre o esforço que terá
levado a invenção ou quantas pessoas terão sido necessárias para dar forma à
ideia que algum dia alguém teve. E a questão que inicialmente respondo é, qual
terá sido o momento da minha vida quando desenvolvi essa curiosidade historiográfica
(posso assim determiná-la), se desde sempre ou se depois de entrar em contato
com obras como Memorial do convento.
Dessas duas
possibilidades respondo que já é tarde para responder. Embora eu acredite que a
literatura tenha me despertado determinadas compreensões sobre o mundo,
acredito também em casos como a leitura do Memorial,
é que essa obra de José Saramago só terá causado o impacto que casou em mim por
uma razão, a de que, essa coisa de saber o porquê de determinadas existências
já tinha feito seu lugar em mim. E talvez tenha sido ela o que se reacendeu
quando li desse escritor não o romance em questão – que não foi a esta primeira
obra dele que li, mas O evangelho segundo
Jesus Cristo. Mas, não posso determinar com muita propriedade visto aquilo
que vivi e aquilo que busco ler tem implicações entre uma e outra, ao ponto de,
em alguns casos ser impossível assinalar com tanta liberdade que foi assim e não
de outra maneira, ou ainda que aquilo que me tornei determinou minhas escolhas
e elas depois me afetaram.
Só insisto
que, até onde minha memória alcança no passado, essa consciência historiográfica
que eu passo a chamar de consciência crítica se desenvolveu de outra consciência,
a imaginativa, trabalhada desde uma infância solitária e sem recursos que me
levava a fabricar determinadas situações e poder vivenciá-las ainda que
imaginariamente.
Quando li As pequenas memórias, outro título de
Saramago, e no qual reflexiona sua infância, encontrei-me nas suas vivências e
na maneira de percepção sobre o mundo. Mesmo sabedor que a memória sobre o
passado é atravessada por aquilo que somos no momento quando relembramos, não posso
deixar de crer que o que somos hoje é, necessariamente, produto daquilo que
fomos um dia. Mas, o contato com realidades tão distantes no tempo e no espaço,
me fizeram crer que há, entre todos os da comunidade humana, alguém cujo
interesse sobre o mundo é feito de outra maneira e não da maneira comum. Isto é,
há, não sei se condições, situações ou efeitos do destino (das três possibilidades,
a última me parece como a mais remota) que nos definem, e entre elas, a de
sempre se interessar por descortinar o aparente não para ver com olhos de
verdade (porque, afinal de contas, o que é isso de verdade), mas de uma maneira
que se distingue da via comum.
É verdade
que possivelmente qualquer um de nós tenha essa curiosidade especulativa sobre
como isso foi feito. Principalmente se estamos diante daquelas construções que
nos impactam os sentidos da percepção ou daquelas situadas em determinados
lugares da história quando o homem ainda não havia desenvolvido o instrumental tecnológico
que tem hoje ao seu dispor, o que torna, por mais complexa que seja a tarefa,
algo mais simples.
Mas, ainda
assim, poucos são os que se esforçarão por recriar
imaginariamente as condições desse processo. É essa curiosidade crítica que
terá levado José Saramago a escrever Memorial
do convento. Afinal, qualquer um dotado da sensibilidade imaginativa sai,
depois de visitar o Palácio de Mafra, tocado pela curiosidade em saber das
circunstâncias de construção do grande edifício erguido no entre-séculos XVII e
XVIII. Mas ninguém terá conseguido melhor materializar essa imaginação que o
escritor português. Esse feito é tão ou mais importante do que a própria construção
do monumento porque trata-se, evidentemente, de um esforço intelectual de proporção
semelhante ao esforço físico de erguer pedra sobre pedra as paredes do
convento.
O dado
histórico sobre a construção de um convento para padres na ocasião em que o rei
D. João V estava às voltas em querer que a rainha engravidasse e desse um
herdeiro para a Coroa portuguesa é tornado galhofa pelo narrador de Memorial do convento porque seu olhar não
se debruça sobre os do poder a fim de compreendê-los como os heróis que deram
forma a uma promessa assumida entre um rei e as forças divinas, mas de
desmascará-la como farsa. Nesse instante interessa-lhe, sim, dizer sobre aqueles
cuja história foi silenciada em nome de um simples desejo individual e megalomaníaco
do poder.
Eu poderei
ser acusado, como sempre sou, de ser alguém que tem gosto pela imposição da opinião
(o que não é verdade, sou apenas alguém que tem opinião e que muitas vezes não
comunga com o pensamento comum), mas digo: alguém disposto a visitar o Palácio
Nacional de Mafra necessita ler muito antes o romance de José Saramago. Construí-lo
imaginariamente. Sentir o esforço das vidas de gerações inteiras esfoladas e
gastas em carregar sob todos os sentidos o peso de uma existência fundada na
opressão dos ricos sobre os pobres. A principal razão para isso, é de não se sentir
apenas impactado com o poder do monumento, mas impactado, sobretudo com o desvario
do homem.
O contato obra-espaço
certamente servirá na compreensão sobre outras investidas que demonstra o grande
poder materializado pela força das vontades humanas. Isto é, o relato
saramaguiano alcança, por sua universalidade, numa maneira lúcida de refletir
sobre a condição humana de opressão sobre o seu semelhante. E isso está impresso
em qualquer grande construção, sobretudo as que se articulam caracteristicamente
com o convento de Mafra. Ou seja, a compreensão desse desvario do poder servirá
ao olho do viajante diante de qualquer monumento cuja grandiosidade se impõe
pela sua estrutura física.
O que o guia
nos conta é que o espaço foi pensado para ser a moradia de treze frades da
Ordem de São Francisco; num período em que a Europa, sobretudo a Itália e a
França, estavam interessadas na construção de grandes obras, o rei português, a
fim de não se sentir isolado desse espírito progressista e já dono de colônias como
o Brasil, viu que aquela seria a oportunidade de ingressar Portugal no âmbito das
grandes nações. Há sempre por trás de tudo certo desejo de grandiosidade que se
confunde com um interesse de eternidade. O que sempre esquecemos é que, para
além dos confins desse mundo, não há qualquer registro que diga sobre nossa
existência e sobre a existência das grandiosidades que construímos.
Assim, de
treze, o espaço chegou a ser uma comunidade para trezentos religiosos e palácio
real. O próprio D. João V nunca chegou a ver o fim da obra. Por mais que tenha
relutado na possibilidade teve de, para atender à sua ganância, de inaugurá-la mesmo
tendo grande parte da construção por concluir. Conta-se mais de 52 mil
trabalhadores e gerações inteiras condenadas ao trabalho forçado. E é essa a
história que José Saramago fez pública quando escreveu o Memorial.
O prédio é arquitetonicamente
simples, sobretudo, quando estamos no seu interior. Mas tudo aí foi pensado
para, ao agregar o que havia de melhor, ser um espaço de muito luxo: os mármores
preciosos, as madeiras exóticas, as melhores mobílias, as grandes obras de arte.
Na pintura, sabe-se que D. João V encomendou uma coleção de telas de cunho
religioso que é uma das mais significativas do século XVIII; na escultura
basta compreender que toda a estatuária da basílica foi encomenda joanina a
grandes mestres italianos, o que fez do espaço o que reúne a mais significativa
coleção de escultura barroca italiana fora de Itália. Quando a família real
fugiu para o Brasil, conta-se que muita coisa desse patrimônio foi retirada às
pressas e trazida para cá. Mas, antes, durante o reinado de D. José I, os mais
de trezentos frades foram enviados para o Convento da Arrábida, em Setúbal e o
espaço passou aos cônegos de Santo Agostinho.
Essa ocasião
talvez seja uma das mais prolíficas da memória do lugar; ao invés de abrigar um
grupo de homens cujo o esforço era apenas de comer, dormir e rezar, em Mafra se dá a consolidação da Escola de Escultura então dirigida pelo
italiano Alessandro Giusti, o que terá transformado o lugar num importante centro de peregrinação cultural e artística. É desse período o início da construção da biblioteca eleita
uma das mais belas bibliotecas desde sempre no mundo. Para se ter noção sobre a
importância desse tesouro, os visitantes não podem ultrapassar o pórtico de
entrada aos arquivos, o que me restou contentar-se em contemplar à luz da imaginação
o extenso corredor forrado em mármore rosa, cinza e branco, as estantes em
estilo rococó e uma coleção que, segundo os guias, chega a quase quarenta mil
livros. Entre as preciosidades soube que aí está uma segunda edição original de
Os Lusíadas, de Camões.
No mais,
sobram quinquilharias de farmácia, instrumentos
cirúrgicos componentes de um hospital capaz de abrigar pacientes que das celas
podia ouvir a missa na capela ao lado; os aposentos do rei numa extremidade, e
o da rainha na outra – o que logo me fez recordar o “cerimonial do sexo”
descrito em Memorial do convento. As
várias salas, cada qual com um sentido e muito de suntuosidade – o destaque
aqui é sala de caça cuja decoração é uma ode à matança de animais, outra fase
do palácio, quando este se tornou o lugar onde os membros da família real
passavam férias para dedicar-se às caçadas. Enfim, artigos que contam a
história de um tempo e que nos leva a alcançá-lo ainda que minimante pela imaginação
e força produzida pela atmosfera do lugar. A suntuosidade evidencia até qual
limite podemos alcançar para provar a nós mesmos nossa capacidade do heroísmo,
mas revela-nos, em simultâneo, um vazio angustiante que certamente se confunde
com o mesmo sentimento dos que um dia habitaram um lugar como este.
Ligações a esta post:
"O meu memorial do convento" é o terceiro texto da série "Crônicas de Lisboa".
No primeiro texto, Pedro Fernandes fala sobre a Fundação José Saramago, aqui.
Depois, sobre o Café A Brasileira e Fernando Pessoa, aqui.
Comentários