O estado do bosque, de José Tolentino Mendonça (Parte III)
Por Pedro Belo Clara.
Chegando à penúltima cena da
peça que nos ocupou o discurso durante as últimas semanas, e recordando que a
mesma tem por número o VI e por nome "Diálogo do sonho", testemunhamos a entrada
da última personagem ainda não introduzida: O Destino. Que, a bem da verdade, é
uma presença feminina, concepção essa muito provavelmente influenciada pelas lendas das Parcas (ou Moiras, segunda a mitologia grega), as três deusas
tecedoras do destino humano.
Não estaremos diante de um novo
solilóquio, pois a cena desenrola-se a par com John Wolf, regressado após a
epifania existencial a que assistimos cenas atrás. No entanto, o episódio,
acontecendo como num sonho, constitui uma espécie de “descida aos infernos” protagonizada
por Wolf, o que poderá ser evidência que se estranhe tendo em conta a anterior
cena onde entrou e tudo aquilo que aí aconteceu. É, portanto, natural
conceber-se uma descida tal, vertiginosa e transformadora, antes de um momento
de revelação; nunca o contrário. Mas, dispostos os sucedidos do modo que estão,
poderemos aceitar o conteúdo da cena como uma espécie de teste que Wolf tem de
ultrapassar – a derradeira tentação.
Iniciando-se no tom obscuro que
é já seu apanágio, Wolf principia a cena em completa deambulação mental. Daí se
retiram diversos momentos que, uma vez mais, irão instigar a meditação naquele
que os acompanhar. Os mesmos, se os escutarmos e os sentirmos ribombar no âmago
que nos assiste, revelar-se-ão ainda mais absolutos, ainda mais apurados, ainda
mais lúcidos dentro da obscuridade que possam aparentar. Wolf ultrapassa o
limiar conhecido e pisa os terrenos além-fronteira: «No escuro mais a fundo, no
matagal espesso algo está mais vivo».
O discorrer prolonga-se:
«Nunca
existiram viajantes, só existiu a viagem. Nunca demos um passo, a terra é que
girou, a vida mudou de sítio (…). Nós somos fixos (…). Não existem navegadores:
existe o mar. O mar que busca... Busca a viagem em nós»
Será quase caso para confessar a
saudade já sentida pelo enigmático discurso de John Wolf... Não cativará ele a
nossa admiração?
«(...) o
mesmo escuro há milhões e milhões de anos ao nosso encontro... Nós não
seguimos... somos seguidos... pelas estrelas?»
E é neste estado de decifração,
onde Wolf apura os sentidos na tentativa de aclarar o que se lhe depara, que O
Destino surge: «John Wolf... então és tu... és tu que arrastas inocentes para o
bosque...». Desde logo se compreende como a nova personagem pode assumir o
arquétipo de “demónio”, digamos assim, iniciando o seu discurso com a tentativa
de minar a confiança de Wolf em seu trabalho e, por aí, ma opção de vida que
assumiu – a base da sua existência. Compará-lo-á, inclusive, à aranha que
aprisiona em sua teia os insectos que de alimento lhe servirão. Perante o
sucedido, Wolf tentará se escapulir, evitando o encontro com possíveis verdades
incómodas. Toda a insegurança da personagem é posta a descoberto.
O restante diálogo, algo longo,
evolui na mesma toada, vincando sempre a intenção de O Destino levar John Wolf
a admitir os seus reais motivos por conduzir pessoas até às profundezas do
bosque em plena escuridão nocturna. A conclusão, ou a mera imposição, por parte
do elemento tentador, da ideia que deseja sublinhar, é deveras interessante: «Julgas
que não sei que é por vingança que levas os que vêem à escuridão... à tua
escuridão, filho das trevas?». Concluindo, de seguida, o seu raciocínio com
base num acontecimento da infância de Wolf, filho de um pai distante e de uma
mãe que a cada dia se sentia mais só. Levada à loucura, a mãe correra na
direcção de um bosque perto de sua casa, seguindo sabe-se lá que apelo oriundo
de vozes que mais ninguém sabia escutar.
Será isso, afinal, que em cada
um, e de cada vez que até eles viaja, John Wolf inconscientemente busca? Que
espécie de guia, assim, será, levando outros para lugares que somente ele
próprio anseia? É esta a base da tentação de O Destino, embora no término da
cena se entenda o porquê de tudo isso: o ego da mulher de nome masculino
sente-se ferido, e de igual modo intenta ferir John Wolf, baralhando os seus
sentidos, levantando poeiras há muito assentes nas funduras do ser. A vingança
que o acusa de engendrar é, no entanto, encabeçada pela própria delatora no
auge do seu temor em perder o controlo que exerce sobre os Homens: «Eu
avisei-te. Não rivalizes comigo». Isto levar-nos- á, a nós, leitores, a
questionar muitas das assumpções que ao longo da cena foram sendo realizadas
com base do discurso afiado de O Destino. Afinal, quem tem razão? A nova figura
que surge para confundir Wolf ou o cego guia do bosque, libertador de Homens?
Ultrapassada a questão, eis que
se nos depara o limiar da derradeira cena da obra que tem preenchido o nosso
habitual espaço de discussão. Falamos da sétima – eterno número místico –, que
invariavelmente só se poderia denominar de "Diálogo do bosque".
Finalmente em plena peregrinação
pelo espaço mais falado ou subentendido em toda a peça, reúnem-se os elementos
óbvios: os caminhantes Peter e Jacob e John Wolf, o guia. A cena desenrola-se
de noite, ainda que Wolf disso não pareça fazer distinção, num instante, em
primeiro momento, de espera. Aguardam Canopus, a estrela que lhes servirá de
sinal de partida até às funduras do misterioso bosque. A referência
astrológica, e de igual modo mitológica, não se despe de significado: o seu
nome reevoca o piloto do navio de Menelau, quando este se lançou em busca de
Helena de Troia. Referindo esta personagem, e sendo ela feminina, é possível
que algumas das ideias antes expostas, quando debatida a cena a esta anterior,
se reforcem no recurso a esta intencional alusão. Contudo, não é uma via
exclusiva, a ser verdadeira. Wolf não procurará aqui a mãe perdida num bosque
distante no limiar da demência. A sua condução de peregrinos faz-se de modo
despojado e, por isso, destituído de intentos egóicos à percepção mais atenta,
embora se possa aceitar que também o faça de forma a calcar um caminho
semelhante àquele onde sua mãe se perdeu. Em acréscimo, conduz outros
peregrinos ao âmago de si mesmos, até a Anunciação se tornar manifesta. Será
expiação? Ou libertação? Para responder a essas questões entraríamos no frágil
domínio da especulação, pelo que toda a reflexão deve simplesmente ser
depositada nos braços de quem a quiser fomentar. O carácter é ambíguo. Que cada
um, então, se por certezas se interessar, investigue por si e acalente a
hipótese que lhe parecer mais clara.
Os princípios da cena
desenrolam-se em ameno e circunstancial diálogo entre as personagens, todas as
três, quase meta-linguístico em determinando momento. Muito levemente faz-se
sentir a obscura linha de tom poético que Wolf em jeito espontâneo tão bem
orquestra, linha essa que agora aparenta também estender-se às restantes
personagens. Sinal fatídico, mas em luminoso sentido, que estão mais preparadas
que nunca para concretizar a sua viagem? Certamente. É, no entanto, neste tom
ora sereno ora brevemente poético que ambas dão conta do que afinal diante de
si se desenrola, quando a dita estrela surge no céu nocturno:
Peter: Na região
meridional do céu, o mundo parece abrir-se...
Jacob: Onde,
onde?
John Wolf: Mais
brilhante que o sol.
Jacob: É
isso a terra que buscamos?
John Wolf: Em
cada homem repete-se uma estrela, uma casa, um bosque.
Peter: Que
estranho! Ainda não começámos a andar... a porta do bosque ainda não se
abriu... e no entanto parece que já estamos a caminhar há muito tempo.
Jacob: Nada
mudou, mas tudo é tão diferente...
É precisamente neste momento que
a viagem se inicia. E os peregrinos sentem de pronto o apelo do que se
manifesta diante de si, vibrando nas funduras de suas sequiosas almas:
Peter: Há
como que uma esperança.
Jacob: Sinto-a.
É um desejo de viver. Viver livre do nome. Livre do sangue. Livre da
respiração.
«É a noite. É o bosque» – o
chamamento surge, enfim. Um vazio, um nada anterior ao começo do mundo, a
Origem em plena anunciação. Nada será como dantes. Como o poderia?
Jacob: (…) Faltam-me
palavras para dizer o que vejo.
O entusiasmo é crescente nesta
fase, e poderemos mesmo afirmar que o mesmo cresce de igual forma no leitor. As
revelações sucedem-se em diálogos curtos, mas intensos. Deles, vamos
acompanhando, como mudas testemunhas, o resultado das percepções de cada
personagem perante a construção subtil da nova realidade (em especial daquelas
que pela primeira vez peregrinam, pois Peter e Jacob assumem, a dada altura, o
protagonismo da cena), uma revelação gradual acontecendo por intermédio de um
suave movimento. E é Peter que alcança talvez a maior profundidade da
significância de tudo aquilo, ainda que não se isente de dúvida: «É como um
despertar. Há um despertar?».
De súbito, o acontecimento.
Ei-lo, sem que ninguém o espere, embora para ele se tivessem aprontado há muito:
Jacob: Repara,
repara... ali no verde argênteo do bosque...
Peter: Ressoa
a luz.
John Wolf: Peter...
Jacob... Digam apenas: Seguir-te-ei...
Na maior das renúncias reside a
única revelação.
O restante ficará ao critério de
cada um. Terá de o ser. A peça aqui se encerra, fazendo jus ao misticismo que a
pauta desde o início. Não saímos da sala defraudados, certamente.
É deveras interessante explorar
Tolentino no papel de dramaturgo. Conhecemos o seu traçado original e
naturalmente transversal à maior parte da sua obra publicada. Porém, outros
prismas se dão a conhecer e certos temas e aspectos aprofundam-se ou
simplesmente adquirem um novo significado.
É curta a obra que retoma a
herança de Perdoar Helena, o seu primeiro trabalho dentro do género (2005), não
obstante as sete cenas que a erguem e o tempo de discussão que ocupou neste
espaço de debate. Mas, como afirmámos em tantas ocasiões passadas, a substância
que nela habita é esparsa e profunda, fértil em diversos caminhos de
introspecção. O que certamente a enriquece e a torna um aprazível alvo de
leitura – pelo menos para quem não teve a hipótese de a acompanhar
presencialmente, no teatro. É verdade que as quebras do teor filosófico e
enigmático do diálogo a aligeiram e, com isso, embora também sirva tal acto
para auxiliar a caracterizar psicologica e comportamentalmente as personagens
em causa, a peça absorve picos de uma certa inconstância que, de algum modo,
tendem a diminuí-la. Felizmente, não são comuns. E, como dissemos, até se
aceitam mediante o risco que propõem, ainda que se preferissem outros meios de concretizar
a intenção da mesma abordagem.
Também as referências presentes
em cada cena escasseiam, as que em trabalhos do género são habituais e fomentam
aos olhos do leitor o enquadramento da cena e dos seus componentes. Eles
existem, de facto, sempre que se sublinha uma fala que se quer murmurada ou uma
reacção explicada, mas quase nada ficamos a saber sobre o espaço físico de cada
cena, como se um enorme silêncio a rodeasse. Mesmo em pleno bosque nada se
parece escutar, nem mesmo os sons naturais da noite que tomba sobre o lugar.
Desconhecemos se essa omissão é propositada. Ou seja, se existiu no manuscrito
da peça e se se removeu da versão impressa ou se nunca se pensou sequer esboçar
tais referências. O silêncio que sugere proporciona uma ausência que eleva os próprios
diálogos, como se surgissem dum vazio profundo. E tal efeito poderá muito bem
ter sido intencional.
Tome-se o ponto de análise que
se desejar, será facto indiscutível que diante de nós se apresenta uma obra em
aparência breve e simples, mas que em si oculta riquezas ambíguas e fundas,
prontas a serem descobertas. Não pelo lado intelectual do tema, mas pelo lado
empírico, isto é, pela experiência directa, pela transposição do dito para a
realidade pessoal de cada um. As palavras serão absorvidas, mas de pronto
morrerão. São palavras, no fundo. Morrem a partir do momento em que são ditas
ou escritas. Há, portanto, que ir para além delas. A obscuridade mística da
obra é, por si só, um convite à realização de tal passo. Só assim o leitor poderá
empreender a caminhada ao âmago do seu bosque, qual John Wolf reencarnado. Até
que se depare com o que nunca julgou encontrar. E a derradeira das renúncias
aconteça, enfim.
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Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).
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