Miasmas da Ditadura: A merda do mundo
Por Alfredo
Monte
“Lendo
alguns relatórios, o psiquiatra soube que o general sentia, às vezes por várias
horas seguidas, um forte cheiro de pudim queimado (...) Já estava na hora de
tudo aquilo terminar. O psiquiatra cobriu o general, fez que sim respondendo a
alguma bobagem que ele estava falando, abriu o envelope com o papel em que
deveria escrever o laudo, assinou antes e, sentado à minúscula mesa, escreveu
em letras redondas e muito compreensíveis apenas uma linha: Augusto Pinochet
Ugarte não apresenta boas condições mentais.
O general Pinochet, por outro lado, é um
filho da puta”.
(Ricardo Lísias, “Anna O.”)
“Os gritos
surgiam ora em português; ora na língua inaudita e livre dos Kiña; ora na
língua inconfundível da dor”.
(trecho de “Apiemieke?”)
1
Thiago Roney é um jovem de Manaus, prestes a
completar 30 anos, que vem demonstrando apreciável ambição como escritor: já
fez duas versões do seu livro de estreia, O estouro da artéria de um cavalo
húngaro — e a segunda, com relação à original, é uma prova e tanto de
amadurecimento da sua prosa — e agora se arrisca em aventuras editoriais, sem
contar o desafio de desenvolver uma obra em parceria: o seu selo, Thysanura,
lançou recentemente A merda do mundo, coautoria dele e de Arcângelo Ferreira
(nascido em Parintins, em 1969).
Os onze textos são apresentados como contos,
dois deles escritos por Ferreira (“Pausa” e “As transfigurações de um tempo
imóvel”), dois outros, por Roney (“O cano duplo da anarco-sindicalista” e
“Apiemieke?”), os demais a quatro mãos (“Os minotauros de Pancrácio”, “Está
feito”, “O Velázquez de Danúbia”, “A merda do mundo”, “O baile das carnes”, “A
fenda e as pedras” e “Quando o teu nome cortou minha memória”), mas também
podemos tomá-los como capítulos de um romance, girando em torno de um velho
militar (ora apresentado como coronel, ora como general), Pancrácio, torturador
contumaz no regime militar pós-1964.
Em torno dele se constrói um universo
miasmático, nos umbrais do onírico, num tom com seu quê de expressionista, e
também de alegórico, sempre remetendo, no entanto, a esse período sombrio da
vida brasileira, quando torturadores tinham à sua disposição um “baile de
carnes”. Sobrevivendo a ele, atormentado e decrépito1, Pancrácio
como que convoca o mitológico, o monstruoso, o labiríntico, minotauro ele mesmo,
num “contratempo”2, sem nunca ter enfrentado um Teseu redentor,
assim como nunca enfrentamos de forma satisfatória os anos de chumbo, por conta
de um tortuoso conceito de anistia e conciliação.
A Memória, aqui, toma a forma de uma dança
macabra, em que os passos evocam referências literárias (Scorza, por exemplo),
musicais (Soza, por exemplo), geracionais (tanto a juventude daquela época como
a de agora, fascinada por Roberto Bolaño)3 e arrastando “comboios de
ressentimento”.
Nesses espelhos deformantes, “o caminhão do
velho Pancrácio” (“bruto general nojento disfarçado de caminhoneiro”) não por
acaso “tem a força de mil novecentos e sessenta e oito cavalos” (1968, o ano
que nunca terminou, ano do AI-5). E todos têm de enfrentar o Tempo, “esse poema
de amor e ódio deixado nos muros de Pompeia”. Uma Pompeia de desaparecidos e
procurados pelo regime, que povoam a infância do narrador de “As
transfigurações de um tempo imóvel”. Uma Pompeia (aliás, uma nação imaginária, Maro)
invadida pela merda do mundo, onde o indivíduo é “enclausurado na multidão”.
E o impune Pancrácio terá de se haver com o
lamento das tribos amazônicas massacradas em nome da Ordem e do Progresso:
“Porque era o certo, seus vermes! Se não aprenderam a serem civilizados, tinham
que morrer mesmo, porra! Por quê? Não viram a importância da civilização? Por
que quem pergunta sou eu, por que não morrem de uma vez, caralho? Nem pra
morrer vocês servem?”.
No final das contas, nessa mistura do histórico-memorialístico
(quase a contrapelo) com um onírico muito marcado pelo fisiológico (e sobretudo
pelo escatológico), Pancrácio “deixa as lembranças fluírem, as inventa. Aponta
um estigma do lado interno das coxas e diz que as marcas são como os vestígios
da existência. Mas aquela não iria retratar em narrativa, iria ficar nela para
todo o sempre, levaria para o túmulo. Deixaria no arquivo de sua memória
individual, para ele memória coletiva era uma fantasia perversa da Ordem que
ajudou a forjar”.
2
Lastimavelmente, apesar dessa virtual
riqueza de veios temáticos, em torno dos miasmas que a ditadura deixou em nossa
atmosfera civil, A merda do mundo também é miasmático do ponto de vista
textual.
Com a exceção de “Apiemieke?”, todos os
textos deixam a desejar. Além da monocórdia, eles são truncados e muitas vezes
incompreensíveis4. Em uma das Fisiologias (a da Solidão) de Ricardo
Lísias, o narrador afirma: “Acho patéticos os ficcionistas que continuam claros
no século XXI...São artistas vulgares. Pessoas ignorantes. A limpidez
ficcional, no mundo contemporâneo, revela personalidades simplórias”5.
Não, não estou exigindo esse tipo primário de limpidez, mas a senda oposta, a
da amorfia obscura, também não me parece uma opção viável.
O que podemos entender da seguinte passagem:
“É impossível ficar na sombra de uma fotografia, pois a fotografia é a própria
sombra”???!!! Ou então: “Muito mais que uma catarata da dor em um menino, era
uma toxoplasmose ocular de um pau de arara”???!!! E “minhas manhãs nunca foram
tardes de baralho”!!!???
Há contos particularmente toscos, como “A
fenda e as pedras”, que joga com referências sem que os autores se preocupem em
dar uma mínima vestimenta ficcional para elas.
O coitado (nesse sentido específico,
evidentemente) do Pancrácio, um achado dos autores, acaba perdido nessa
mixórdia.
Mesmo não apreciando o resultado, sou obrigado
a confessar que, sem embargo desse tratamento miasmático e confuso, A merda do
mundo ainda assim assombrou estes meus dias, especialmente as noites, desde a
leitura, com sua conjunção da evocação de um regime terrível e um clima
alucinatório. Portanto, há um imaginário muito válido e virtualmente possante.
Tomara que os autores algum dia consigam dar conta dele em termos verbais
convincentes, apesar de não exatamente “límpidos”. Afinal, Roney já provou que
pode se reinventar na escrita, para proveito nosso. Era o caso, aqui.
Notas
1 “...aquela
assinatura saturada de Tempo seria do decrépito coronel Pancrácio?”, lemos em
“Pausa”.
2 “Como
desatar os nós enjaulados nos buracos do contratempo”, lemos em “Os minotauros
de Pancrácio”.
3 Como vemos
em “A fenda e as pedras”.
4 Numerosos
problemas de revisão atrapalham também, ortográfica e sintaticamente.
5 Em outra
delas (a da Amizade), lemos: “Apenas escritores muito ingênuos acreditam em
ficção histórica”.
Comentários