Jack Kerouac, modernismos e o desvairismo beat
Por Rafael Kafka
Atualmente, tenho
lido bastante Jack Kerouac. Li e resenhei Anjos
da desolação neste ano e atualmente estou a ler as cartas trocadas entre
ele e Allen Ginsberg. Na minha lista de espera já se encontram outros dois
títulos dele pelo menos: Tristessa, o
qual penso ler em algum fim de semana regado a café preto forte, jazz e blues;
e seus diários, os quais já comecei a ler algumas vezes, mas quero ler em um
momento de concentração profunda.
Vejo em Kerouac
muito do espírito antropofágico que caracterizou o espírito de nossos poetas
modernistas. Os ideiais do pensamento do Modernismo brasileiro são algo muito
caro para mim, mesmo eu ainda não tendo lido como deveria a obra desses
importantes intelectuais brasileiros. Até o momento do advento da literatura de
Mário de Andrade e seus condiscípulos, o fazer literário brasileiro era feito
por e para a classe burguesa. Víamos uma língua preocupada em criar uma
identidade nacional falsamente europeia, pretensão absurda que teve como ápice
o movimento parnasiano e suas tolas metas de criar uma arte perfeitamente
fechada em si mesmo, algo que daria um belo tema de conto surrealista, pois o
que é mais absurdo do que uma arte sem contato com a realidade, uma arte sem
vida?
A antropofagia
modernista prega justamente que a leitura e o choque entre culturas não deve
ser uma luta esmagadora de uma cultura com outra. Quando lemos um livro ou
conhecemos uma cultura nova, nosso universo pré- existente e os saberes ali
presentes não deixam de existir. Eles apenas se tornam em uma forma mais viva
que é, grosso modo, uma fusão entre o que somos agora e o que éramos antes da
leitura do texto novo.
Kerouac tem muito
disso. Há nele um pouco do sonho ingênuo do burguês que quer se desvencilhar do
mundo e apenas escrever sem parar, porque é a escrita que dá sentido a sua vida
por meio da concretização de vivências e sentimentos em formas verbais regidas
pela estética. Todavia, Kerouac representa o espírito inquieto do pós-guerra e
em um momento de esperança para a humanidade, quando se pensava que os grandes
conflitos bélicos e políticos cessariam para sempre, ele sai pelo mundo para
explorar os seus rincões e transformar suas experiências em literatura. Toda a
obra de Jack é baseada na premissa de diários de viagens e isso acaba dando a
ela um profundo sentido existencial e estético, ao contrário do que muitos
puristas mais conservadores no tocante aos instrumentos de crítica literária
possam achar.
Há um texto muito
interessante de Mário de Andrade no qual ele cria uma escola de pensamento
chamada desvairismo. Ao final do mesmo texto, Mário encerra o desvairismo,pois
segundo ele não há pretensões ali de se criar discípulos. O desvairismo é tão
somente uma provocação, o desejo de ver o outro tocado por esse desejo de ler e
escrever, de vivenciar o mundo que o rodeia, de se expandir sem fronteiras
enquanto o tempo mundano permitir isso. Outro texto muito belo de Mário é uma
carta escrita a Carlos Drummond de Andrade na qual ele diz que o poeta autor de
A Rosa do Povo deve sair mais de seu
escritório e de sua rotina produtora de textos verbais para andar pelos mais
belos rincões de nosso país, que possui em seu elenco tanto as belas paisagens
do Rio de Janeiro quanto a exuberância da floresta amazônica e da caatinga
nordestina. Nesse sentido, o desvairismo de Mário é um convite a seu amigo
Drummond para sair pelo mundo, contar o que vê e fazer disso a sua arte,
Quando leio as
cartas de Kerouac, vejo claro nelas o desejo sempre presente em seus textos de
ver o máximo possível de coisas e falar sobre essas visões. O experimentalismo
de Jack é a sina de um sensacionista que é marcado pelo signo da inquietude,
uma pessoa cuja temporalidade não é mais a mesma de um Bernardo Soares e se
encontra mais ligada a de um Álvaro de Campos antes da náusea dos dias finais
em que as sensações parecem não ser mais um motivo concreto para se manter
vivo.
Paul Ricoeur em
seu interessante ensaio Tempo e Narrativa
fala da temporalidade abordada por Heidegger em Ser e Tempo como sendo essa temporalidade marcada pelo signo da
inquietude. Se a temporalidade agostiniana era a temporalidade ligada à
eternidade da salvação em Cristo, a temporalidade inquieta é algo ligada ao
próprio devir do ser-para-a-morte: o ser humano é condenado a viver um carpe
diem, a saber-se finito e por isso mesmo cobrado o tempo todo a explorar o que
a existência tem a oferecer, ou a fechar-se sem seu casulo para fugir do
absurdo da existência.
Há em Kerouac
esse conflito entre temporalidades quando ele conhece o budismo zen, que mais
tarde vem a abandonar. É um momento de contratempo entre o modo de ser
andarilho inquieto e o modo de ser contemplativo e que procura a paz. Temos um
Jack em dúvida sobre viver o absurdo da existência incompleta e marcada pela
inutilidade inevitável de uma perseguição no rumo da completude e o desejo de
se afundar no Nirvana e ter paz.
Mas ele sempre
envereda mais para o lado do desvairismo com o seu jeito de ser ligado a
questões existenciais profundas e um amor pela escrita e pela leitura que
recuperam um pouco aquele ideal simbolista do fazer artístico enquanto algo
sagrado. Mas se os simbolistas se achavam escolhidos pela deusa da inspiração,
os beats eram na verdade pessoas as quais queriam fugir da monótona existência
por meio do exercício da escrita, por mais tosca e limitada que ela fosse.
A inquietude
temporalizada em uma série de afazeres e viagens existenciais e geográficas é o
signo de uma geração inquieta a qual preocupava-se apenas em andar sem rumo
pelo mundo, como se estivesse a fazer de suas vidas um signo bastante icônico
do que é o viver humano: uma caminhada por uma estrada infinita rumo ao nada. O
desvairismo beat é a preocupação tão somente em viver e relatar o que se viveu
e levar isso a algum leitor que por ventura também se sinta tocado pelo desejo
de viver a mesma viagem doida.
É isso que leva
Ginsberg e Kerouac a provocarem o seu amigo e ícone beat Neal Cassady a
adentrar no universo da escrita. Infelizmente o projeto literário de Neal
duraria pouquíssimo devido a sua muita prematura morte. De qualquer forma,
vemos como os beats acreditavam na escrita não como uma missão sagrada de
egocentrismo artístico burguês e sim como comunicação do que é fundamental ao
ser humano: a sua própria existência. Por isso, quase todas as obras beats são
relatos de vida que realmente ocorreram, apenas transformados em uma forma
influenciada pela música negra, em especial o Bebop. Eles não têm vergonha de
serem vistos como limitados intelectual ou esteticamente por falarem apenas de
si, pois a sua arte poética é justamente essa: falar de si. Pregar uma espécie
muito interessante de sensacionismo lírico e inquieto.
Falo tudo isso, pois como disse em meu texto sobre Anjos da desolação, em alguns momentos
considero Kerouac como um autor muito desprovido de talento para as questões
sociais. Porém, há nele um engajamento muito profundo com as individualidades
humanas as quais se ameaçavam perder em um novo mundo marcado pelos
totalitarismos de direita e de esquerda. Assim como Clarice Lispector, vemos em
Jack um resgate do humano, resgate esse bastante provocador por levar o ser a
se sentir na inquietude de compartilhar leituras e escritas.
A obra de Kerouac
é uma obra que cativa a mim e a diversos leitores justamente por esse seu
desvairismo. Temos diante de nós um escritor extremamente limitado do ponto de
vista da escrita, mas que ainda assim é capaz de comover com suas histórias
tortuosas de andanças sem limite. A antropofagia literária em seus textos é
marca constante, pois o tempo todo temos diante de nós um autor preocupado em
indicar leituras aos amigos e a incentivar os mesmos a produzir sua própria
obra. Algo muito similar ao pouco, infelizmente, lindo por mim até o presente
de Mário de Andrade.
Havia na
literatura do século XIX uma pretensão a ser uma espécie de guru espiritual. Os
escritores eram vistos e gostavam de ser vistos, ao que me parece, como
portadores de respostas acerca das grandes questões humanas. Rimbaud em uma
carta chega a dizer que o poeta é uma espécie de profeta que leva aos seres humanos
banais verdades as quais apenas seres especiais, os poetas, são capazes de ver
e atingir. Claro que devemos entender a própria forma de produção dos saberes
existentes naquele momento e lembrar do que Foucault fala sobre o intelectual
em um texto de sua Microfísica do Poder:
se antes o intelectual era um ser erudito fora das massas e que era visto como
capaz de dar todas as respostas necessárias ao bem-estar dos seres comuns, hoje
ele é alguém imerso na massa, produtor de um saber descentralizado, vivenciando
os mesmos processos que massa vive, com a diferença de que assume uma postura
crítica desses processos, a qual, porém, não pode dar a ele a ilusão egotista
de se sentir intocável pelos fatos os quais ele experimenta em seu crivo
crítico.
O que Foucault
diz reflete-se bastante na antropofagia vivenciada por Mário e os modernistas e
por Jack e os beats: o escritor aqui não tem mais a pretensão de saber tudo e
sim a de ver tudo, a de contar tudo, a de sentar em um boteco ao som de samba
ou jazz e falar de todas as coisas que o tocam profundamente, sejam os
problemas políticos de um país que ainda precisa deixar de ser sem caráter,
seja o desejo de fugir das grandes questões políticas por elas parecerem
cabeludas demais para uma intelectualidade assustada diante de um mundo que a
cada dia se torna mais e mais fragmentado. O saber e fazer literário deixa de
querer ser algo racional ou dotado de sabedoria profunda e que deve ser ouvida
para se tornar algo ligado às massas e aos temas mais banais do cotidiano e por
isso ele se torna mais belo.
A antropofagia é
signo de todo leitor inquieto. Aquele leitor que quer ler sem parar, que
largaria o trabalho só para ficar em casa lendo ou que se esforça em ler mais
páginas mesmo quando os olhos já estão cansados vive dentro de si o desvairismo
pregado por Mário e Jack. Tal leitor é uma criatura perigosa, pois nunca para
de ler, de questionar de ler o que leu e de ir atrás, seja em bibliotecas seja
na internet, de fontes que refutem ou contestem o que ele leu. Tal leitor
sempre quer conhecer as influências e feitos de seus artistas lidos, quer
conhecer os locais percorridos por ele e por isso mesmo é alguém mais difícil
de contentar com a pobreza das respostas prontas.
É por isso que
Mário foi revolucionário ao instigar com diversos outros parceiros o movimento
modernista. E é por isso que Jack foi revolucionário a um ponto que talvez
nunca tenha compreendido claramente ao provocar jovens escritores a escreverem
obras despretensiosas em si que levaria muitos outros leitores a querer colocar
o pé na estrada e seguir por aí para ver o mundo com seus próprios olhos.
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