Günter Grass





O mundo das letras acordou mais pobre no dia 13 de abril de 2015. Morreu o escritor Günter Grass. A notícia chegou-nos cedo pelo Twitter da editora Steidl, responsável pela publicação da sua obra. O autor de O tambor ganhou, em 1999, o Prêmio Nobel da Literatura; no mesmo ano, o Príncipe de Astúrias. Nascido em 16 de novembro de 1927 em Gdansk, Polônia, o escritor sempre foi lembrado pela marca a Caim que carregou durante toda a vida: já sabíamos que em 1944 fora recruta na Força Aérea Alemã, mas em 2006 ele confessou, por ocasião da apresentação de sua autobiografia Nas peles da cebola, que tinha sido voluntário na unidade de elite da Alemanha nazi Waffen-SS quando tinha 17 anos.

De então, o autor foi quisto como um traidor e senhor do desserviço à Europa. José Saramago, muito amigo de Grass, foi uma das poucas vozes que se atreveu absolvê-lo da marca: “Ele tinha 17 anos. E o resto da vida não conta? Parece-me uma reacção hipócrita, de muita gente que talvez não consulta a sua própria consciência. Muita gente quer encontrar pés-de-barro em personalidades influentes”, disse o português ao El País. “Todos guardamos segredos. Mas parece, do ponto de vista daqueles que se escandalizaram, que não podemos guardar segredos. [...] Eu não condeno o Günter Grass” – rebateu noutra ocasião.

Günter Grass e José Saramago. A amizade entre os dois intelectuais ficou assinalada por várias iniciativas: a defesa do escritor português das acusações levantadas contra Grass e a cessão das ilustrações para o que seria o último romance de Saramago.

Sua relação com a cultura portuguesa ficou registrada no diário de viagens Em viagem onde fala sobre o Vale das Eiras algarvio onde tinha casa, sem televisão, com muitos desenhos a tinta de choco, de lula ou de polvo e plantas de que se ocupava, desde a década de 1980. Em Portugal, o Centro Cultural de São Lourenço, fundado pelo casal franco−alemão Marie e Volker Huber e já não mais em operação, recebeu-o frequentemente; foi aí que, em 1984, expôs os seus trabalhos de ilustração e a ligação não mais se quebrou − ali voltaria a expor em 1986, 1988, 1991, 1993, 1994 e 1999.  

Mas, voltando ao fato pelo qual sempre Grass será lembrado, é preciso dizer que o escritor nunca ocultou esse passado: apenas trouxe-o à tona em certa ocasião porque se sentiu incomodado a dizer sobre e só se ateve em dizê-lo em sua autobiografia porque foi aí que encontrou, parafraseando-o, melhor forma para contar. A aproximação com a juventude hitleriana se deu com 15 anos; estava imbuído de um patriotismo irracional, disse, e se apresentou à Marinha que o reprovou. Mas, dois anos depois, foi chamado à recruta em Dresde. Naquele contexto, de fato, parecia impossível dizer não ao regime e mais fácil ainda era se envolver pela forte presença da propaganda nazista de uma nova nação. Grass se disse seduzido e só, muito tarde, compreenderia o quão estúpido havia sido; a recruta aos 17 anos já não foi um desejo voluntário.

Nas semanas de soldado teve mais medo que culpa: “O que coloquei em minha autobiografia é que naqueles dias não me fiz certas perguntas e agora tenho de falar sobre. Por que morre um de meus tios num combate no início da guerra? Por que desapareceu um professor de minha escola que duvidou sobre a vitória final ou um de meus companheiros, testemunha de Jeová (contrariado a carregar uma arma)? A omissão dessas perguntas é a principal marca dos meus livros”, disse na ocasião. Confessar foi uma maneira de expiar o medo, ter outra posição diante dos acontecimentos e encontrar o fio da coerência na sua posição política. Entre as fortes críticas que recebeu durante toda a vida e carregará consigo pela eternidade está o pedido do ex-presidente polaco Lech Walesa de que devolvesse sua condecoração de cidadão ilustre de Danzig. De outra parte, muitos concordam que a confissão veio tarde demais.

Cena de O tambor, adaptação para o cinema do romance homônimo de Günter Grass. A peça de Volker Schlöndorff lhe valeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. 

Mas, Descascando a cebola, apesar de ser um testemunho muito original sobre a Guerra não é a obra mais emblemática de Grass, característica que deve ser atribuída a O tambor; publicada quase imediatamente após o conflito de 1945, a narrativa sobre vida de Oscar Matzerath recebeu tanto elogios como críticas daqueles que viram no livro um espelho demasiadamente real sobre o levante do nazismo. A popularidade dessa obra levou o escritor aos tribunais pela acusação de pornográfico; polêmica que voltou uma vez mais à tona quando, em 1978, Volker Schlöndorff levou a obra ao cinema e ganhou por ela o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Depois de deixar de escrever romances em 2014, Grass, grande defensor do chanceler socialdemocrata Willy Brandt, voltou a figurar no centro de outras polêmicas. Fora essas ocasiões, em 2012, publicou um poema “Aquilo que tem de ser dito”, no qual acusa Israel de colocar em perigo a paz mundial por sua capacidade de produzir bombas atômicas. O governo israelense reagiu ao texto proibindo o escritor de entrar no país. Nesse poema, ele já assegurava que era seu último esforço como escritor. Consciente dos horrores da guerra, Grass demonstrou estar ao serviço de dizer não ao conflito armado; exercício que se manifestou ainda nas ilustrações cedidas para dar forma a outro adendo contra as armas, o romance inacabado do amigo José Saramago, Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas.

De sua obra, destaca-se ainda O gato e o rato e Anos de cão que junto com O tambor constituem a trilogia de Danzig. Escreveu ainda O linguado, A caixa, Um vasto campo e Últimas danças. Como ensaísta publicou Meu século, uma compilação de suas reflexões sobre o século XX. Além disso, dedicou-se ao teatro com obras como Os plebeus ensaiam a revolta.



Além da literatura e das artes plásticas, Grass nunca se absteve de seu compromisso político e foi um dos intelectuais mais ativos desde sempre. Distanciando-se, mais tarde, do Partido Socialdemocrata, esteve como personagem em boa parte dos debates políticos das últimas décadas. Em 1990 se mostrou contrário à unificação da Alemanha. “A lúgubre experiência de Auschwitz, que não se pode comparar a nada, exclui a possibilidade de um só estado alemão”, disse oito meses depois da dissolução da República Democrática Alemã. Para o escritor era preferível discutir uma confederação de estados alemães.

Antes, em 1989 redigiu uma carta ao então presidente dos Estados Unidos, George Bush (pai) cobrando-lhe a urgência de um diálogo com a Nicarágua. Durante o governo de George W. Bush deu várias declarações nas quais acusava-o de ameaça à paz mundial por querer, a qualquer custo, uma guerra contra o Iraque e o Afeganistão. Muito antes, foi um dos defensores de Salman Rushdie quando o escritor recebeu ameaça de morte pelo regime iraniano por sua obra Versos satânicos.

“A literatura vive da crise, floresce entre os escombros e sua função é profanar cadáveres” – disse na altura de recepção do Prêmio Príncipe de Astúrias em 1999. Na ocasião, Grass ainda alfinetou a condecoração pela presença massiva de homens e dedicou seu discurso às mulheres e convocou todos à leitura: “Não há espetáculo mais bonito que olhar uma criança que lê”; “Será o livro o que tem sempre a última palavra, mesmo que seja só em formato de folheto”.



Quando recebeu o Prêmio Nobel no mesmo ano. Sem muitas polêmicas para a ocasião, Grass recordou o Grupo 47, esse punhado de escritores jovens alemães que, com Heinrich Böll e alguns outros padrinhos literários, começaram desde cedo uma nova tradição literária em seu país depois da catástrofe moral e intelectual do nazismo. Já na década de 1960 o grupo fizera intercâmbio a fim de reativar uma larga tradição de comunicação e interdependência entre as literaturas alemães e suecas – fato que, deverá tê-lo feito conhecido entre os do país do Nobel. Grass assumiu a lacuna entre Arno Schmidt e Böll por retratar o colapso dos valores humanos como apocalipse ou tragédia. Preferiu para tanto o método mais parecido com o do jornalista anônimo, alguém que depois de Homero, refletiu o heroísmo marcial como a luta entre rãs e ratos.

Ligações a esta post:
>>> Leia o poema "Aquilo que tem de ser dito" publicado aqui.
>>> Leia aqui sobre o livro Alabardas, de Saramago, que tem ilustrações de Günter Grass.
>>> No Tumblr do Letras, nove imagens raras de Günter Grass.
>>> Veja trabalhos de artes plásticas (desenho e pintura) de Günter Grass, aqui.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Mortes de intelectual

16 + 2 romances de formação que devemos ler