Grandes miudezas a Manoel de Barros
Por Pedro Fernandes
Poucos poetas
brasileiros terão alcançado entre os leitores a singularidade que Manoel de
Barros alcançou, ainda que seja acusado de permanência no mesmo, sobretudo, na ocasião
em que se esperou dele a tomada de outro impulso mesmo no seu pequeno universo
de miudezas e não tomou. Certamente por escolha própria e sobre essas decisões pessoais
não se deve dizer nada mais e acatá-las como um senso do poeta. Cada escritor, a certa altura, mede o
já-feito e, mesmo que não tenha para si nenhum projeto literário, faz uma
tomada de escolhas que já a própria obra lhe delega.
Há na construção
de sua obra uma coisa cara aos poetas de hoje e cara para outros nomes de seu
tempo. Penso na poética de Thiago de Mello, por exemplo. Esbocemos o mal para
depois dizer a estratégia adquirida pelo poeta pantaneiro. É que movido pelo
excesso da aparição midiática, por uma necessidade de ser a todo tempo
lembrado, por uma ambição sempre capaz de desatinar qualquer obra ou por uma impaciência
ou ainda pelas massagens de ego oferecidas em tempos de crítica em crise, tais
poetas desatinam a oferecer torto e a direito poemas. Esgota-se muito cedo ou não
constrói uma maturidade devida.
Não é o caso
de ser contrário ao caráter prolífico do poeta. Não. Há poetas que são movidos
por uma compulsão desgarrada pela criação – o que não é o caso, posso ser
redutor – do poeta brasileiro que foi, sempre, mais afeito ao trabalho de maturação
e reflexão sobre o verso. Ainda que se ofereça a metro o que devia ser
oferecido a quilo, há na distância da medida e no seu peso uma diferença: a
poesia necessita de um tempo até que ela prove para o seu criador que ela vale pena.
Nesse sentido, o trabalho do poeta se atém e muito a uma dimensão temporal que
diferencia do tempo corrido da contemporaneidade.
A maior
riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que
me aceitam como sou – eu não
aceito.
Não aguento
ser apenas sujeito que abre
portas, que
puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão
às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta
lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem usando borboletas.
Manoel de Barros,
antes de ser o poeta quisto, o que alcançou a unanimidade sobre sua obra, tinha
para si uma grande dimensão desse tempo outro do poeta. Além é claro de ser despossuído de qualquer ambição, soube pesar a seu
favor fundindo a brevidade das coisas mínimas não apenas como tema literário,
mas como forma. Essa é a grande diferença. A belíssima coleção editada pela sua
já antiga editora, com dezesseis pequenos títulos, é exemplo muito claro disso.
Explorou ao
limite aquilo que foi sedimentado pelo tempo da infância e trabalhado pela
argúcia de quem descobriu nesses sedimentos a possibilidade de transformá-lo em
poesia. E, enquanto os demais poetas veem o que está no mundo – se integra na condição
de espanto – Manoel de Barros vai pela via do avesso; olha as miudezas mas não constrói
sobre elas nenhum espanto, nenhuma exaltação. Constrói correntezas e oferece
outra posição como usuário do código
escrito. Esse trabalho é genuinamente poético, se compreendo por ele um
exercício pleno de ressignificação da língua pela criação.
Num
itinerário oferecido pela sua obra, agora depois de pronta (é sempre assim quando a vida biológica expira), pelo pouco
que conheço sobre sua poesia (e sempre me chegam poemas esparsos porque não há outra
forma de ler poesia se não dando tempo também a ela) noto que Manoel de Barros
sempre teve interesse em olhar para baixo e nunca terá se desvinculado
totalmente (coisa que nós, a gente comum, sempre vimos fazendo) do seu período de
infância – este em que é possível ver nas pequenas coisas grandes coisas.
Penso na infância
rural que tive e como minhas faculdades imaginativas eram capazes de tornar
grandes fazendas um cercado feito com restos de tijolos e pedra, uma grande boiada com
bichos de nome próprio e tudo com pedras, grandes poços artesianos em buracos
cavados no chão e como a partir dessas criações eu construía histórias e inventava
linguajar diferente para dizer o imaginado, forjar situações e conversas. E quantos valores afetivos não terei deposito nesse inventário de miudezas. Essas formas nunca estiveram
distanciadas de Manoel de Barros.
E agora penso na escolha de
sua filha, Martha Barros, dos poemas que catou ao longo da produção poética de
Manoel para chamar de Meu quintal é maior
do que o mundo, um verso que diz muito de uma obra que se enraizou num chão
próprio, mas alcançou universalidade fora desse chão. Seu trabalho poético é assim, um trabalho nascido na memória e, por isso, não segue cronologias; está parado num tempo paralelo ao nosso, mas em constante reinvenção. José Castello em prefácio
à edição diz que a tarefa da poesia do poeta pantaneiro “não é explicar, mas
desexplicar”; eu amplio pelo contrário: não é desexplicar, é dizer o mundo
pelo seu avesso (do nosso ponto de vista capaz quando muito de se espantar com a
nossa própria barbaridade ou insignificância, porque no caso do poeta, é dizer
o mundo tal como enxerga, despossuído de grandes propósitos).
Não vejo na
poesia de Manoel de Barros, na minha antologia particular e na antologia ora
publicada nenhum traço de inspiração – aquilo do poema vir e cair pronto na
página sem retoques. A mesma consciência sem ambições maiores do poeta deu
forma a uma poesia que é, antes de tudo, construção e alguns versos demonstram até
uma rigidez formal, mesmo quando dedicada a pensar insignificâncias. Se o poeta
tinha algum ritual de escrita, me parece que ele transparece no poema: era o de
uma dedicação ao que fazia.
A disfunção
Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de
a menos
Seno que o mais justo seria o de ter um parafuso
trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa
disfunção lírica.
Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica.
1 - Aceitação da inércia para dar movimento
às palavras.
2 - Vocação para explorar os mistérios irracionais.
3 - Percepção de contiguidades anômalas entre
verbos e substantivos.
4 - Gostar de fazer casamentos incestuosos entre
palavras.
5 - Amor por seres desimportantes tanto como pelas
coisas desimportantes.
6 - Mania de dar formato de canto às asperezas de
uma pedra.
7 - Mania de comparecer aos próprios desencontros.
Essas disfunções líricas acabam por dar mais
importância aos passarinhos do que aos senadores.
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