Eduardo Galeano
Quando no
dia 13 de abril de 2015 nos chegou logo cedo nos chegou a notícia sobre a morte
de Günter Grass não tardou minutos para sabermos da morte de Eduardo Galeano. Logo
nos demos conta que as vozes lúcidas do entre-século estão se calando. E a
pergunta que sempre nos fica em situações de luto como essas é, que outras
vozes poderão dizer o que só eles puderam dizer. É pergunta que nos vem desde
quando em 2010 ficamos sem José Saramago, outro nome de forte intervenção no
amplo debate político sobre a comunidade humana.
Eduardo Galeano
sempre será lembrado como o escritor de uma só obra: As veias abertas da América Latina. A obra é testemunha um dos períodos
mais negros na formação do continente. Na década de 1970, quando da sua
primeira edição, a maioria dos países era sustentada pela ditadura, o que logo
o fez um texto libertário. Mas eram também um livro-denúncia sobre a vassalagem
desde que aqui aportaram os europeus no final do século XV até o momento em que
passamos a ser a menina dos olhos de ouro para os Estados Unidos que repete, na
mesma proporção, mas agora com outros instrumentos, o ideal de roubo daquilo
que nos pertence.
As reações à
morte do escritor sempre tocaram no assunto; políticos, escritores,
intelectuais e leitores comuns lembram-no como alguém que ao longo dos últimos
40 anos buscou compreender a América Latina e ser voz em seu socorro. Era um
autodidata que foi se polindo e massificou uma cultura (a do não-servilismo) difícil
de encontrar mesmo num ensino superior. Por essa razão, logo foi convertido num
intelectual de esquerda.
Trabalhou
como funcionário de fábrica, desenhista, pintor, mecanógrafo e caixa de banco
entre outros ofícios. Nunca foi um escritor que teve pressa em se fazer
escritor, talvez porque tivesse ciência sobre o desenvolvimento dessa posição;
tanto que, As veias abertas da América
Latina só veio a lume quando tinha 31 anos e o próprio Galeano recordou na ocasião
que não dispunha dos conhecimentos suficientes para se colocar naquela posição que
passou a ocupar quando da publicação do livro.
Se colocarmos
as obras de Galeano entre a de muitos escritores notaremos que pela sua
particularidade não estão ao serviço de um fazer
artístico. Têm consigo muito a marca do texto jornalístico e de intervenção
como é sua obra mais conhecida. O escritor era eminentemente um escritor
político, isso está na sua escrita que, despojou-se de certas determinações literárias
para expressar de maneira sensível conceitos muito complexos. Galeano, podemos
dizer, arriscou-se compreender a realidade por mais difusa que essa se
apresente.
A imprensa
de direita sempre irá utilizar o epíteto de esquerdista como uma forma de
rebaixamento sobre a importância de seu pensamento ou das causas com as quais
se envolveu; mas, o uruguaio nunca esteve cego pela correnteza das ideologias. Um
exemplo? Nunca deixou de acreditar na revolução como alternativa para a América
Latina no modo como pensa a esquerda, mas nunca eximiu-se de criticar o regime
de Fidel Castro em Cuba. Os anti-Galeano não irão jamais dar pulso a essa posição:
preferirão ressaltá-lo amigo do bolivarismo ou do governo venezuelano e
enterrarão seus livros com as areias de um dramatismo dispensável.
A verdade é
que se perde de compreender, pelas reduções, uma das mentes mais inquietas e
brilhantes do nosso continente. Galeano, apesar de se identificar com esquerda,
muito provavelmente terá exercido uma postura de espreita crítica já que sempre
esteve aberto a reconhecer seus erros, ao extremo de tentar, no fim de sua
vida, um suicídio literário quando criticou sem piedade As veias abertas da América Latina. Outro exemplo disso, é o
célebre episódio de 2009 durante a Quinta Cúpula das Américas: na ocasião, o
presidente da Venezuela Hugo Chávez presenteou com um exemplar de As veias abertas da América Latina o
presidente dos Estados Unidos Barack Obama; ao escritor perguntaram depois
sobre o caso e ele respondeu saber que nem um e nem outro entenderia o texto.
O acontecimento
que causou uma celeuma entre os da imprensa marrom chegou a ser lido por José
Saramago com olhos muito positivos: um gesto de generosidade para um bom aluno.
Galeano teve a compreensão de um gesto “um pouco cruel”. Chávez entregou a
Obama um livro num idioma que ele não conhecia.
A última
aparição pública de Galeano foi em finais de fevereiro de 2015 para receber o
presidente da Bolívia Evo Morales, que esteve no Uruguai para a recepção de
posse de Tabaré Vázquez, o presidente eleito que substituiu Mujica. Magro e
sorridente, o escritor aparece recebendo um livro do presidente boliviano. Até
o último instante não teve preocupação com sua estatura literária, mas com a
batalha ideológica, da qual nunca recuou. Antes do papel de intelectual,
Galeano foi um tipo de que se compadeceu com a injustiça.
Foto: Rino Bianchi |
Quando foi
professor de Literatura na Califórnia, lembra Jorge Majfud, Galeano
expressou-se como alguém a quem lhe detestava certas ortodoxias – algo, aliás,
que tomou forma na sua obra e no seu pensamento. Quando compreendia que os
países não são donos de ideologias e nacionalidade não lhe dão privilégios éticos
porque pode servir a determinados grupos para agir antidemocraticamente em seu
nome, também deixa transparecer sua refutação ao dogmatismo ou fechamento sobre
determinadas visões.
Essa constatação
sobre um antidogmatismo e um antiortodoxismo nos leva a compreendê-lo como
figura cujo compromisso nem foi político e nem foi ideológico. “Isso é evidente
apenas a alguém que termina de ler um de seus livros, qualquer que seja, e logo
começa a ler outro. Não há ortodoxia, não há dogma em sua obra. Se algo se
repete é esse respeito pela prosa, essa imaginação profusa de mostrar cada
coisa desde o princípio, essa sensibilidade pela injustiça, sobretudo pelas injustiças
institucionalizadas, essa valentia de não vacilar quando o mundo vai para outro
lado e os sábios do poder têm razão”, diz Majfud.
Tal como o
amigo José Saramago, o compromisso de Eduardo Galeano foi com os direitos
humanos, com a verdade e com a justiça. Sim, seus livros foram arma em momentos
que na América Latina bastava pensar ou sonhar diferente para ser sequestrado,
torturado e desaparecido. Mas, associar o escritor apenas ao epíteto de
libertário, intelectual de esquerda ou a favor da democracia é insuficiente.
Prova disso
está em sua obra e está em falas como a que fez durante a última visita que fez
ao Brasil em abril de 2014 durante a Segunda Bienal do Livro em Brasília: “Em
todo o mundo, experiências de partidos políticos de esquerda no poder às vezes
foram corretas, às vezes não, e em muitas ocasiões foram derrubadas porque
estavam corretas, o que deu margem aos golpes de Estado, às ditaduras miliares
e períodos prolongados de terror, com sacrifícios e crimes horrorosos cometidos
em nome da paz social e do progresso. Em outras ocasiões, a esquerda cometeu
erros muito graves.”
Galeano é a
voz dos de debaixo, alguém que fez da palavra ferramenta ou instrumento de
remodelagem dos modos de ver, ser e estar no mundo.
Eduardo Galeano abraça Ernesto Cardenal ao lado de Julio Cortázar em 1980. |
Sua carreira
como escritor teve início nos jornais; no início da década de 1960 foi chefe de
redação no semanário Marcha, periódico
que se tornou influente pela colaboração de nomes como Mario Vargas Llosa e
Mario Benedetti. Foi editor e diretor do jornal Época. Quando no exílio em Buenos Aires dirigiu a revista Crisis, um espaço dedicado à cultura. A saída
do país abortou o andamento do projeto. Jorge Videla havia assumido o poder o
nome do escritor figurava na lista dos esquadrões da morte.
As veias abertas da América Latina
Desde sua publicação
em 1971 que o livro tornou-se um clássico. Com a obra Galeano quis analisar a
história do continente latino-americano, quis pensar uma integração das nações sob
um mesmo trunfo histórico: o da exploração econômica e da dominação política desde
a colonização europeia até quando de publicação do livro. Naquele contexto, o
mundo estava preso pelo impasse da Guerra Fria e estava em curso a era das
ditaduras militares no continente.
O livro logo
foi identificado com as ideologias revolucionárias e da esquerda, o que levou-o
à censura na Argentina, Chile, Brasil e Uruguai durante o período em que esses
países estavam sob jugo da ditadura. Pela defesa desse ponto de vista, Galeano
foi preso em seu país e depois obrigado a exilar-se. Foi para a Argentina e depois para a Espanha.
Quarenta
anos da publicação, o escritor chegou a confessar que não leria novamente esse
livro. “Não seria capaz de lê-lo de novo. Cairia desmaiado”, disse durante a
última visita que fez ao Brasil. O episódio não aponta para um suicídio literário,
mas demonstra que Galeano assumiu um tom mais mesurado para analisar o maniqueísmo
político a que foi condenado a obra.
As veias abertas, segundo o autor, foi
publicado numa ocasião em que não tinha formação suficiente para dar pulso a
essa tarefa: “tentou ser uma obra de economia política, só que eu não tinha a formação
necessária” – lembrou. “Não me arrependo de haver escrito, mas é uma etapa que,
para mim, está superada”.
Quando Back
Obama recebeu de presente o livro das mãos de Hugo Chávez, a obra passou a ser
um dos dez títulos mais vendidos na Amazon no só dia. Se o presidente leu ou não
é outra história, mas terá ao menos sabido que este é um título que a só tempo
entre o tom lírico e amargo é um potente instrumento de humanismo.
Outras obras
E, além do
título famoso, deixou-nos outras obras necessárias. No Brasil, há versões para As palavras andantes, Bocas do tempo, a trilogia “Memória do
fogo”, obra que forma um inventário apaixonante da saga da América e sua
história (personagens, mitos, lendas, batalhas, vencidos e vencedores), De pernas pro ar, Espelhos – uma história quase universal, Futebol ao sol e à sombra, O
livro dos abraços, Os filhos e os
dias, Mulheres, Vagamundo, Dias e noites de amor e de guerra, O teatro do bem e do mal. E, numa das muitas viagens ao Brasil,
escutou num mercado de Fortaleza, Ceará, um poema em cordel sobre a origem das
cores do papagaio – a história lhe serviu de fonte para a escrita de História da ressurreição do papagaio.
Com essa obra recebeu vários prêmios; entre os mais importantes que estão o
Casa das Américas, duas vezes ganhador, em 1975 e 1978 e o Aloa, na Dinamarca,
em 1993.
Ligações a esta post:
Durante a Copa do Mundo de 2014, compilamos trechos de Futebol ao sol e à sombra, aqui.
O blog do projeto Um caderno para Saramago compilou o texto de José Saramago sobre Galeano.
No Tumblr do Letras quatro registros raros da vida de Eduardo Galeano, aqui.
O blog do projeto Um caderno para Saramago compilou o texto de José Saramago sobre Galeano.
No Tumblr do Letras quatro registros raros da vida de Eduardo Galeano, aqui.
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