Alegorias dramáticas do herói romântico (Parte 4)
Por Leonardo de Magalhaens
© Alexandre Marie. Byron é Don Juan com Haidee, 1831. |
Don Juan, herói byroniano em questão
Este é um extenso poema – incompleto – em 16 Cantos, sendo escrito de setembro
de 1818 a maço de 1824, e alguns críticos consideram como uma amostra do
amadurecimento do Poeta que assume um tom irônico diante do herói romântico.
Herói que a própria obra de Byron ajudara a difundir por toda a Europa letrada,
e daí até as colônias europeias.
Em Don Juan evidencia-se
(tal qual nos primeiros Cantos de Childe
Harold) a destilação (e fermentação) das tantas leituras e vivências –
nesta ordem – do Poeta, em suas viagens pela Europa continental. Principalmente
o Mediterrâneo, onde se destacam a Itália – ainda não unificada – e a Grécia –
dominada pelos otomanos.
Vários autores recebem referência – positiva e negativamente – tais como
Homero, Safo, Aristóteles, Juvenal, Horácio, Virgilio, Longinus, Santo
Agostinho, Calderón, Shakespeare, Bacon, Congreve, Walter Scott, J. Milton,
Dryde, Pope, Wordsworth, Coleridge, Southey, Sotheby, Moore, dentre outros.
Vê-se bem o 'cânone' do Bardo romântico. E o Eu-lírico não perde uma
oportunidade de citar um autor clássico ou da época – 'mania' que veio a
contaminar o 'influenciado' Álvares de Azevedo.
O Eu-lírico narrador apresenta o herói, o protagonista, um hidalgo hispânico,
que descende de uma nobre linhagem. A nobreza de nascimento significa nobreza
de caráter? Veremos. A Obra e o Leitor são situados na própria narrativa. Situa
a voz que narra, situa o poema enquanto 'épico', a estrutura – dividido em doze
cantos (enquanto a narrativa se interrompe no 17º) – com muitas aventuras e
peripécias. Tudo o que promete um 'romance picaresco' (na melhor tradição que
contextualiza um “Don Quixote”)
Mas o Poeta despreza a Prosa tanto quanto despreza os 'clássicos' – desejar
“substituir todos os que vieram antes”. Ou seja, o Autor não espera a
autoridade de terceiros, de 'grande clássicos'. Cada poeta inventa suas
próprias regras ('que ninguém sabe'). Aqui o romântico se liberta dos clássicos
– mesmo a conservar a métrica, a rima, o verso, a estrofe. (Mesmo os
pós-românticos, o simbolista Baudelaire, e o surrealista Rimbaud, preservam o
uso do soneto e das demais formas clássicas.)
My poem 's epic, and is meant to be
Divided in twelve books; each book containing,
With love, and war, a heavy gale at sea,
A list of ships, and captains, and kings reigning,
New characters; the episodes are three:
A panoramic view of hell 's in training,
After the style of Virgil and of Homer,
So that my name of Epic 's no misnomer. (CC)
(“Meu poema é épico, e pretende ser / Dividido em doze; cada livro contendo, /
Com amor, e guerra, um temporal no mar. / Uma lista de navios, capitães, reins
reinantes / Novas personagens; os episódios são três: / Uma panorâmica visão do
inferno em processo, / Após o estilo de Virgílio e de Homero, / Assim que meu
nome de Épico não é equivocada.” CC, LdeM)
O fazer poético, o mundo literário, as influências, os editores, os críticos,
as publicações, tudo é comentado nos versos que se afastam da narrativa
propriamente dita – o récit – e se perde em digressões. Ainda mais
Byron, um desafeto a estes resenhistas e críticos, estes que criticam e não
sabem fazer. Como é famosa a sátira de 1809 contra os 'críticos escoceses'
('English Bards and Scoth Reviewers')
No Canto I temos a descrição do ambiente e personagem, e o início das
aventuras, mas a viagem pelo Mediterrâneo é relatada no Canto II, quando
ocorre o episódio do temporal, levando a um naufrágio, e – devido a falta de
alimentos – ao terrível canibalismo, na jangada à deriva. (Episódio que muito
impressionou Álvares de Azevedo, segundo veremos.)
Depois o trágico e macabro episódio, sabemos que Don Juan foi atirado a uma
praia, onde será encontrado por uma jovem grega. Ele ainda não sabe, mas está
numa das Ilhas Cíclades, ao sul da península grega, e aquela espécie de
Nausíaca (a mocinha que recebeu Ulisses na Odisseia)
mostrar-se-á solícita e amável, a ponto de se apaixonar pelo jovem
descenturado.
É assim que conhecemos a bela personagem Haidée, aquela mocinha apaixonada que
será o refúgio de ternura para o herói sedutor (e seduzido!). Haidée é mais uma
idealização de amor feminino do que uma realidade – ou melhor, é mais um
contraponto as mulheres de antes e depois, na vida do herói. Haidée consegue
unir desejo e ternura – enquanto as demais, no máximo, despertam desejo.
Assim esse 'Ulisses' moderno é salvo por sua 'Nausíaca' – e é o leitor (ou
leitora) que espera o affair desse
Don Juan. Mas haverá um sério impedimento – o pai da mocinha, como veremos. De
início, a afeição resolve tudo. Como se comunicam? Ele não sabe grego, ela não
sabe espanhol... Então, romanticamente, será o amor o nobre mensageiro...!
Assim são várias stanzas dedicadas ao
restabelecimento – e enamoramento – de Don Juan.
O eu-lírico – o Autor, o Poeta Byron – interrompe vez ou outra a narrativa para
comentar ou ironizar. Quando Juan e Haidée tentam se comunicar, o Autor comenta
os métodos de aprender idiomas com as jovens, principalmente belas jovens, e de
que não foi assim que ele 'aprendeu' o inglês, “Tanto inglês eu não pretendo
falar, / Ao aprender tal idioma com seus pregadores.” Em suma, o autor não
perde uma oportunidade para ironizar os hábitos dos ingleses. No mesmo tom de
um Swift (século 18) ou de um Oscar Wilde (século 19/20).
Mas continuemos no idílio amoroso de Juan e Haidée. É assim amar e ser amado.
Terá Juan esquecido os amores de outrora? Pois os sentimentos mudam; sabemos
que o amor é inconstante (ainda que o Autor se revolte contra essa
'inconstância', nada pode fazer...), visto que o coração muda com o dia e a
noite, e as nuvens, as estações. O Poeta odeia o amor efêmero e busca um 'amor
constante'. (O mesmo ideal de Petrarca e Camões, como podem ver...)
O Eu-lírico não perde oportunidade de julgar o protagonista, a trama, a
narrativa ('récit'), a desvelar as possíveis simbologias, onde certamente
Haidée é uma espécie de Beatrice, aquele símbolo do amor singelo (ainda mais na
primeira paixão de uma virgem) Este paralelismo (ou paródia, no sentido de
'narrativa paralela') se situa em relação a Dante e também Milton (se Eva pode
ser a heroína da história), pois tratam-se de personagens femininas trágicas,
pois as “tragédias findam-se em morte”, segundo sabe o Poeta.
O idílio de Juan e Haidée será interrompido e destruído pela chegada de um antagonista,
o próprio pai da jovem grega. É justamente a intervenção do pirata Lambro que
possibilita o ápice dramático. O pirata vem a cruzar os mares para afundar o
amor dos jovens. Aqui há todo um conhecimento geográfico do Autor. Cenários no
mar Mediterrâneo, o mar Egeu, o norte da África. Cenário das tantas sagas
gregas, a Odisseia de Ulisses em sua volta para Ítaca...
O pirata Lambro é aquele tipo digno de sagas de piratas. Um homem astuto e
paciente, acostumado ao comando, de temperamento forte. Acostumado às
explorações marítimas, saque de outros povos. O personagem é moldurado pela
descrição de belezas e riquezas da cultura grega e otomana. (Lembrar que a
Grécia, na época, estava sob domínio otomano, e a Monarquia grega começaria em
1833 – durando até 1973, ora contando com apoio alemão ou britânico. Byron
morreu justamente nas lutas de independência da Grécia, em 1823-24)
Em homenagem à Grécia há um poema dentro do poema, com 16 estrofes, entre
as stanzas LXXXVI e
LXXXVII, numa espécie de hino à cultura helênica – no mesmo sentimento que
encontramos no Canto II de Childe
Harold. Esta é uma parte de muitas referências, farta erudição. Em relação
às chansons, baladas, Dante, Goethe,
Homero, Shakespeare, Coleridge, Wordsworth, mais digressão, mais referências, a
Ariosto, Horacio, Southey, mais Wordsworth, mais Homero, e Pope, Dryden,
Boccaccio, ah, tantas leituras! É até pedante esta insistência autoral em ficar
citando suas miríades de leituras – apesar de toda a fineza da ironia. (Está
aqui a 'mania' do nosso romântico Álvares de Azevedo – em listar miríades de
leituras e autores!)
“Mas estou digressando”, se desculpa o Autor, sempre perdido entre leituras e
vivências, out of time, fora do
tempo, em vários tempos, em vários lugares, reais e imaginários – este
'esfumaçamento da realidade' também encontramos em poemas de Álvares de
Azevedo, instáveis em épocas e lugares.
Isto porque o Autor – apossando-se do Narrador/Eu-lírico – permite-se divagar
sobre o leitor ideal, imaginado, para o qual o escrito 'aparecerá exótico',
aquele esperado “leitor gentil” a espera de algum conto exótico (aqui para
rimar com “Quixotic”, quixotesco), “Ao leitor gentil do nosso clima sóbrio /
Este modo de escrita aparecerá exótico” (“To the kind reader of our sober clime
/ This way of writing will appear exotic,” Canto IV, VI) O 'clima sóbrio' é uma
referência a Grã-Bretanha, e seus habitantes, que 'torcem o nariz' para as
digressões iconoclastas do Bardo – coisa que Sterne e Swift sempre provocaram,
ou Rabelais e Voltaire, na França.
De digressão em digressão, atrasa-se o triste desenlace do idílio amoroso entre
a jovem Haidée e o aventureiro Juan. Por que deve morrer um amor tão jovem, tão
sincero? Até o Autor se comove... Algo aqui de Romeo and Juliet – e de Tristan & Isolda, com algumas
referências a um tal rouxinol ('nightingale') – símbolo romântico por
excelência, vide a peça de Shakespeare e a ode de Keats (Ode to a Nightingale).
Mas a presença do pirata Lambro – a interdição ao 'amor livre' – a autoridade
paterna – a força de repressão – vem macular as estrofes onde a moça Haidée
sente alegria e aflição, esperança e medo, enquanto Juan imagina-se diante de
uma ameaça – mas é desprezado pelo prepotente patriarca. Eis o momento
dramático (para arrepiar as leitoras!) quando Juan enfrenta o pirata e seus
capangas. Ali o pai que Haidée obedece em submissão – e roga para que Juan
também seja submisso! A moça se coloca entre o pai e o amante – quase dizemos
que ela se oferece em sacrifício... A filha enfrenta o pai em nome da paixão.
Mais romântico, impossível...!
Mas Juan é ferido ao enfrentar os piratas e em seguido vai preso para um navio,
que deve seguir para o Oriente. O Narrador se comove com as 'vicissitudes' que
narra – um jovem rico e belo, Don Juan, a sofrer assim por causa de um amor
sincero. (As leitoras, certamente, se comovem...) Haidée sofre de amor,
enquanto Juan é embarcado para ser vendido como escravo. O herói sofre nas
feridas o que a jovem sofre no peito. É quando Haidée morre de amor em
ultrarromântica poética narração. A Beleza morre em nome do Amor, pois “Mais
cedo ou mais tarde o Amor é o seu próprio vingador” (LXXIII) E ferido e
algemado, D Juan está no navio que navega para a Turquia, onde será um pobre
escravo entre outros tantos prisioneiros.
Quem são os demais prisioneiros? Vítimas de piratas, de corsários, de turcos
armados até os dentes. Há uma trupe de artistas italianos – que inserem comédia
na tragédia: ironias com o universo italiano [absorvido nas leituras/
vivências, pois os Cantos III e IV foram escritos em 1820, quando Byron morava
na Itália]. Em suas digressões, o Autor precisa encerrar o Canto IV, e
debate-se como narrar para agradar leitores e editores, como manter um 'estilo'
– tal um Ariosto ou um Fielding – como sobreviver para a posteridade. Tudo isso
no poema!
No plano narrativo, temos o mercado de escravos – uma 'salada' de
nacionalidades. Uma digressão sobre a escravidão, a desumanização do Outro, o
uso (compra e venda) de pessoas, um mercado mantido pela “Sagrada Porta” (ou
seja, o Império Otomano). Pachás negociam escravos para algum grão-vizir ou
para o Grande Sultão. Mas o canto já finda, por demais longo. No próximo, o
leitor saberá para onde vai o herói Don Juan.
O Canto V abre com digressões autorais sobre 'poetas passionais' ('amatory
poets'), certamente os sentimentais, que se envolvem nos relatos, enquanto
discute a 'impessoalidade' de Platão, Ovídio, Petrarca, mestres de 'estilo'.
Enquanto isso descreve a fronteira entre Europa e Ásia, ali no Mar Egeu. O
Bósforo, o Ponto Euxino, e a bela Constantinopla. Seus recursos estilísticos
são a mescla de conhecimento geográfico britânico da época mais mitologia grega
(um estilo meio Defoe mais Homero...)
No meio dos escravos, o protagonista se destaca – tinha uma 'aparência de inglês'
('English look') ao permanecer altivo, com sangue-frio. (Aliás, este Don Juan é
um hispânico demasiadamente anglo-saxão...!) Um outro escravo busca fazer
amizade com jovem tão distinto meio a multidão de miseráveis. Juan não tem
aparência de 'cão servil'. Aqui toda uma visão eurocêntrica dos povos orientais
– onde se confundem turcos, russos, caucasianos, armênios, etc. – no que são
marcados pelo 'exótico' – povos curiosos para a ávida curiosidade dos leitores
europocêntricos.
É este o choque cultural entre o Ocidente e o Oriente que foi muito explorado
nos chamados 'contos orientais' – Lara, Giaour, Sardanapalus– onde as
personagens exóticas, de turbante e sabres desfilam a sequestrarem mocinhas
indefesas. E eis ali o cristão Juan meio aos servos turcos, como se fosse
mercadoria de troca! Ah, a bela decadência do nosso bom mocinho europeu!
O Poeta não poupa ironias ao 'desmitificar' as 'fantásticas viagens' aos países
estrangeiros, que 'qualquer idiota' publica e 'exige aplausos'. Aliás, o que
não faltava na Inglaterra e França eram os livros sobre viagens, relatos de
viagens, paródias de relatos de viagens, como os clássicos Robinson Crusoé, de Defoe, e Viagens
de Gulliver de Swift, ou Cândido
de Voltaire (mais inspirado nas 'digressões' dos ensaios de Montaigne...)
À narrativa
se mesclam considerações sobre o narrar, sobre outros narradores, sobre as
circunstâncias em que se processam o ato de compor e escrever, sobre a época da
escrita, sobre as leituras antigas e recentes – tudo forma um mosaico que
enreda o leitor – no espaço de poucas stanzas,
o Autor faz referências à mitologia grega, narrativas bíblicas, clássicos
latinos, costumes ingleses, anedotas italianas, considerações filosóficas
cheias de ironia.
É difícil acompanhar as voltas e reviravoltas, as vicissitudes deste herói
picaresco Don Juan de Byron – que os críticos consideram diferente daquele Don
Juan tradicional do folclore ibérico, típico das comédias de um Tirso de Molina
– pois se o hispânico é mulherengo, debochado, e até perverso, em Byron, o Juan
é seduzido, é sincero (e por isso irônico) e sempre a lutar pelo que considera
justo.
Sendo Don
Juan a obra final de Byron, deixada pois incompleta, não podemos deixar de
comparar com a primeira – Childe
Harold – e observar as mutações, avanços e retrocessos da arte poética
do Autor. Há claras diferenças. Se Harold é melancólico, é um tanto Hamlet
(assim como Manfred é um anti-Fausto), Juan é um sujeito vitalista,
instintivo, aventureiro, irônico.
Contudo, se traçamos um plano comparativo, a personagem mais plena – mais
shakesperiana, digamos –, da obra Duan Juan, é a jovem grega Haidée – bela,
singela, bucólica. Mais uma ninfa salvadora do que uma adolescente. É a
presença de um sentimentalismo deveras 'lírico' num poema que se destaca pelo 'satírico'.
Na verdade, todo o meu interesse – enquanto leitor – se esgota após a morte de
Haidée. Há um exagero digressivo (julgado 'estilístico') quando o essencial já
foi dito. [Assim como é difícil ler os exageros cultistas de um Padre Vieira ou
as figurações fáusticas-barrocas de Faust II.] Ler a sátira pela sátira
não faz, hoje, mais sentido. Para ler Don Juan – e entender quem são
os 'ironizados' – precisaremos de notas de rodapé.
Se comparamos Autor e Protagonistas, podemos dizer que Juan é o Byron errante,
exilado – não o jovem nobre entediado, aquele Harold, cheio de sonhos. Pois os
sonhos foram destruídos em contato com a realidade – esta mesmo descrita no
poema final – onde encontramos naufrágios, canibalismo, piratas, escravidão,
exploradores, cossacos, mercenários, e não aquela natureza maravilhosa, aqueles
amores eternos, aqueles heróis nobres, aqueles patriotas que morrem pela
dignidade.
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Leonardo de Magalhaens (Leonardo Magalhães Barbosa), crítico literário, escritor, tradutor, escreve e traduz desde os 15 anos. Tem 3 volumes de poemas e 3 volumes de contos, todos inéditos, além de dedicar-se a um ciclo de romances em seus columes. Divulga sua contribuição ensaística de crítica literária, especializando-se em autores vivos, demasiadamente vivos. Belorizontino, atualmente estuda Letras na FALE/UFMG, com ênfase em literatura brasileira. Escreve aqui e aqui.
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