A poesia potiguar na virada do milênio
Por Thiago Gonzaga
A poesia não
quer adeptos, quer amantes.
Federico
García Lorca
Bastante
interessante e válido o trabalho organizado pelo poeta areia-branquense
Anchieta Rolim, Poemas de Amigos. Publicado recentemente em formato digital,
traz uma boa seleção de poemas de uma das melhores safras que o Rio Grande do
Norte tem na atualidade, em se tratando de poetas.
Ler Poemas
de Amigos me fez relembrar uma frase dita certa vez por Umberto Eco, que
definiu o efeito poético como a capacidade que um texto oferece de continuar a
gerar diferentes leituras, sem nunca se consumir de todo. Esta é a sensação
causada pela leitura do trabalho, em que constam poemas de Anchella Monte,
Jarbas Martins, Clauder Arcanjo, Marcos Silva, Jota Medeiros, François
Silvestre, Mário Gerson, Lívio Oliveira, Shauara David e muitos outros, onde o
signo verbal se transforma a cada nova leitura.
Os
escritores aí reunidos parecem estar em sintonia quando intuito é deixar um
belo trabalho para a posteridade. Mergulham na linguagem, imergem em lirismos,
fazendo do poema um ser vivo, repleto de plurissignificações, de maneira que
sempre será visto de uma nova forma, com uma nova leitura, se recriando, se
renovando, fazendo aquilo que o linguista
Chomsky chamou de níveis de competência e
desempenho. Ou seja: o nível de competência refere-se ao nível de
domínio técnico da linguagem, e o nível de desempenho é onde o falante cria em
cima do nível de competência. O ato de criar e trazer novas formas poéticas é
bastante trabalhado no livro. Não faltam criatividade e talento para tantos
momentos de invenção e técnica.
Abaixo um
bom momento de criatividade, onde o poeta trabalha a intertextualidade com o
texto bíblico.
Gênese
(José
Saddock)
Antes era o
nada.
O nada,
porém, solitário e vazio,
E percebendo
que nada lhe antecedera
Como nada
lhe sucederia,
Fez-se deus
e senhor do nada.
E assim, do
nada, disse: faça-se o princípio.
E assim se
fez.
Vendo que a
princípio tudo era bom,
Criou o
relógio
(o engenho
que do nada fez o tempo).
E fez-se
tarde e manhã: primeiro dia.
Na obra, há
alguns poemas mais sintéticos e outros despojados de expressão lírica; há
também outros com bastante inspiração, expressão de sentimento e estados da
alma. Ainda outros abordam a nossa atual
realidade; são poemas engajados, com característica social. Exemplo:
Menino do farol
(Camila
Rodrigues)
Observando
assim de longe,
Perecem mais
vítimas que culpados.
Através do
vidro embaçado,
Onde o calor
não atinge o ego,
Desvairado
destino incerto
Que antes de
errar já foi condenado.
Menino
franzino,
De olhar
tristonho,
Vagando na
rua como se num sonho,
Por pouco
não foi atropelado.
Fica
zanzando anestesiado
Reação
causada pela substância ingerida,
Tentando
esquecer as mazelas da vida,
O menino
passa o dia lombrado.
Ao longo do
livro aparecem muitos temas e ideias em ritmos variados, provando a
multiplicidade e sintonia da nossa poesia com a brasileira de modo geral. Esse trabalho é importante, também, por ser a
primeira reunião de poetas potiguares desse inicio de século (a última reunião
de poesia potiguar foi publicada em 1998 por Assis Brasil).
Da mesma
maneira que não se pode compreender a
cultura portuguesa sem Camões, a inglesa
sem Shakespeare, a italiana sem Dante, a alemã sem Goethe, só se compreenderá
melhor a literatura brasileira quando se
fizer o exato balanço dos trabalhos
regionais , incluindo trabalhos e leituras
dessa natureza.
***
Thiago Gonzaga é colunista no Letras in.verso e re.verso. Nasceu em Natal, é graduado em Letras e especialista em Literatura Potiguar pela UFRN. Autor dos livros Nei Leandro de Castro 50: anos de atividades literárias e Literatura Etc. Conversas com Manoel Onofre Jr. Dentre os vários trabalhos inéditos que possui destacam-se Novos Contistas Potiguares e Personalidades Literárias do RN. Como pesquisador da literatura do estado criou o Blog 101 livros do RN (que você precisa ler), com interesse por autores e livros locais sob diversos aspectos.
Comentários