Vanessa Maranha romancista
Por Alexandre Bonafim
Vanessa Maranha é uma das jovens
e promissoras escritoras brasileiras da atualidade. Seu romance de estreia, Contagem
regressiva (Ed. Off-flip), vencedor do prêmio Off-flip, não somente atesta a
mesma sensibilidade, a argúcia da contista de Oitocentos e sete dias, como também
a insere no time dos romancistas de talento.
Contagem regressiva possui uma
ironia ao estilo machadiano, principalmente de O Alienista, aliada ao humor do
Campos de Carvalho de A lua vem da Ásia. E isso não é pouco. Vanessa, em sua
elegante narrativa, insere-se em importante eixo de leituras de nosso cânone,
revivendo, de maneira pessoal e criativa, o que temos de melhor em nossa
história da literatura. Faz isso, no entanto, com personalidade e afiada
agudeza crítica, o que a eleva à categoria de artesã da palavra, aprendiz dos
grandes mestres, mas também mestra ela mesma, sem influências meramente fáceis
e reprodutoras. E não ficamos apenas por aqui. Além dessa ironia recheada de um
riso matreiro, malandro, podemos também observar o doce e lúdico lirismo de um João
Ternura de Aníbal Machado. Eis, enfim, uma composição de influências que tornam
Contagem regressiva uma obra de elevada fatura estética.
A narrativa não segue uma
linearidade cronológica. Principiamos contemplando o desfecho do destino de
João, protagonista da trama que, num ato heroico, decide-se internar por vontade
própria em um hospício. O gesto de se autoproclamar louco é um índice, enfim,
de nossa era de banalização da racionalidade científica, o que faz da
inteligência de João um verdadeiro corte na ditadura do pensamento técnico,
muitas vezes castrador e alienante.
Essa
primeira etapa do romance, mais meditativa e ácida, haja vista que o narrador
destila uma ironia mordaz, principalmente devido à consciência de sua idade e
de seu cansaço existencial, desvela-nos importantes reflexões sobre nosso tempo
e os costumes contraditórios e estranhos arraigados pelo senso comum. É o que
podemos observar no seguinte fragmento: “Não entendo tanta dieta e magreza, não
compreendo a onda mortal de saúde, moços anabolizados, moças encharcadas de
testosterona nos seus corpos rígidos e plásticos, levando marmitas para alfaces
e granolas à religiosidade das refeições insípidas de três em três horas. Não
compreendo não comer com gosto e prazer, mas beber e se drogar tanto. Não
compreendo tanto antidepressivo, quando, houve um tempo, era chique certa
melancolia, certo ar blasé. Sou um ultrapassado” (p.73- 74). O colocar-se como
louco, como no caso do famoso conto machadiano, deixa em evidência, pela
ironia, a loucura nossa de cada dia, diluída no absurdo de um gestual reificado
e caduco.
Na última
etapa do romance, vislumbramos o narrador menino, deslumbrado pelo mundo, pelas
mil experiências malucas na busca vã e lúdica de erradicar a morte, a fim de
fazer ressuscitar o avô falecido. Aqui Vanessa cria personagens memoráveis,
repletos de graça, de leveza, de encantamento poético. Ficamos arrebatados com
o anjo Nicolau, com a tia-avó Palmira, com a louca e clarividente Saula. O
texto muda de luminosidade. Aqui, diferentemente da primeira sequência do
romance, há a explosão da cor, da música, dos gostos, das texturas. A narrativa
é invadida por uma onda solar de juventude, de encantamento mágico. O humor,
antes mordaz, atenua-se, torna-se doce, lírico. A ironia crítica cede espaço ao
onirismo infantil, ao devaneio tipicamente bachelardiano. Tal devaneio fica
tangente no recorte conciso e contundente do seguinte diálogo entre a tia e o
menino: “- Então, tia, você não acha que eu sou louco? – Louco nada. Você é
criança.” (p. 130). Clarividente, a infância desvela-se no texto como uma
metáfora viva para o verdadeiro destino do homem, levando-o à prodigalidade de
um existir mais vasto, venturoso e verdadeiro.
O título, Contagem
regressiva, a despeito de trazer um viés trágico, desvela-nos, pela inversão da
narrativa ao avesso, da velhice rumo à infância, o signo de uma esperança.
Esperança, sobretudo, calcada na força do devaneio infantil, capaz de aliviar e
desfazer a ditadura da racionalidade e da sensatez. É preciso um pouco de
loucura lúdica, de menino, para suportarmos a contagem regressiva rumo à morte.
Vanessa
Maranha, com sua criatividade vigorosa, com sua linguagem expressiva, marcante,
talhada pela ironia e pela graça da alegria, permite-nos, assim, em seu romance
de estreia, momentos recheados de encantamento e prazer. Eis, enfim, uma romancista
de fôlego e talento, escritora já devidamente madura, pronta, enfim, para nos
legar ainda outros muitos momentos de excelente literatura.
***
Colunista do Letras in.verso e re.verso; é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é professor adjunto de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Estadual de Goiás, unidade de Morrinhos. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa e Brasileira, atuando principalmente nos seguintes seguimentos: poesia portuguesa, literatura portuguesa, literatura brasileira, poesia brasileira.
Comentários