Um diário para as gerações atuais



O diário da menina judia que registrou os horrores do nazismo tem sido constantemente redescoberto por leitores do mundo inteiro. Talvez essa seja uma das notícias a ser, sempre, mais celebradas; é impossível esquecer horror e necessário não esquecê-lo. Agora, talvez falte, ainda da parte dos leitores um engajamento mais profundo a fim de lutar para que o horror não ganhe a forma como tem ganhado contemporaneamente. Sabe-se que o mundo atravessa uma ressurreição da extrema direita interessada novamente no sangue e na condenação daqueles que como Anne Frank já um dia foram perseguidos, torturados e mortos.

No âmbito desse sucesso literário de um malogro, a obra ganha, pela primeira vez na Alemanha, uma adaptação para o cinema. Em Amsterdã, onde residiu a família de Anne Frank, já as ruas estão tomadas de cartazes amarelos advertindo os moradores de que se roda uma filmagem sobre a autora do famoso Diário. Certamente, nesse ponto, as filmagens concentram-se na fuga dos Frank que tiveram de abandonar sua casa para se esconder noutro lugar, onde as forças de Hitler não fossem capazes de atingi-los.

Não é a primeira vez que a vida de Anne é levada ao cinema e ao teatro, mas a valia desta película resulta no fato de ser conduzida por uma produtora alemã, a Zeitsprung Pictures, que recebeu o apoio do Fundo Anne Frank, herdeiro dos direitos da autora sobre o Diário e outros escritos da adolescente. Essa aprovação é indispensável para qualquer um que tenha a intenção de recriar a tragédia do Holocausto através dos olhos de Anne, sobretudo, no caso de produções que necessitam dessa vivacidade do realismo para a forma.

As filmagens se concentram na praça de Merwedeplein, hoje uma das antigas da capital holandesa, mas com edifícios de cuja planta data dos anos trinta. Foi no número 39 onde se instalaram os Frank em 1933, depois de abandonar sua Frankfurt natal em 1933 já por causa da perseguição aos judeus. Nessas ruas Anne brincou com suas amigas como se pode ver nas fotos que preservam sua infância (veja o fim desta post).




A única filmagem real da menina, inclinada sobre uma janela, foi captada também aí em 1941. Foi durante o casamento de um dos vizinhos e ela aparece numa janela contemplando a saída dos noivos. Um ano depois desse acontecimento, toda a família (os pais, Otto e Edith, e sua irmã, Margot) tiveram que esconder-se dos invasores nazi na parte de trás de uma propriedade dos canais de Amsterdã.

A Casa Anne Frank, hoje um museu dedicado à sua memória, foi construída nesse lugar. Mas, o lugar da casa museu não será utilizado nas filmagens porque tudo aí tem estado muito diferente desde que os Frank e outros quatro amigos se refugiaram entre 1942 e 1944. Nesse período Anne dedicou-se a escrita de seu Diário e as cenas correspondentes a essa época serão recriadas em estúdio.

Esta é pelo menos a sétima ocasião em que a vida da adolescente é adaptada para o cinema, desde produções britânicas a estadunidenses. O diário de Anne Frank, baseado na peça teatral de mesmo nome e dirigida por George Stevens, ganhou em 1959 três categorias do Oscar. Em 2014, Amsterdã deu palco para a estreia da peça Anne que será encenada permanentemente com foco para o público jovem.  

O Diário foi escrito entre 12 de junho de 1942 e 1º de agosto de 1944. Nessa época estão os oito refugiados estão escondidos no sótão do armazém dos escritórios comerciais de Otto Frank, fabricante de pectina para marmeladas. Em 4 de agosto de 1944, seguindo uma suposição de autoria ainda desconhecida, a Gestapo detém o grupo, mas os dispersa. Dos campos de concentração só regressou o pai de Anne. Sua mãe morreu de fome em Auschwitz. Anne e sua irmã morreram de tifo em Bergen-Belsen. Peter van Pels, o filho do casal amigo dos Frank que compartilhou do refúgio e pelo qual Anne teve uma paixão morreu em Mauthausen.

Recente edição brasileira para o livro de Anne Frank


No retorno a Amsterdã, Otto Frank recebeu o diário, batizado por sua filha como Kitty, das mãos de Miep Gies, uma amiga que os ajudou durante o esconderijo. Publicado pela primeira vez em 1947, em 1988  foi acrescentada cinco páginas retiradas pelo pai que considerava íntimas demais para o tornar pública. O material fazia alusão a conflitiva relação de Anne com sua mãe durante a reclusão e o despertar de sua sexualidade. Já muito recente o livro sofreu perseguição nos Estados Unidos por essas passagens.

Apesar de se dispor de informações fiáveis sobre a autenticidade do Diário, a Casa Anne Frank explica que a autora ainda teve reescreveu partes do texto, selecionou passagens e elaborou apontamentos sobre outros fatos; assim, tanto a primeira versão quanto a segunda não estão completas. Quando pensou em publicar o material, Otto fez cópia de algumas partes, mas além das cinco páginas terá suprimido outras partes do texto e fez correções.

A pedido seu, o amigo Albert Cauvern confeccionou logo uma versão do texto. E agora circulam as duas versões – a que se aproxima mais dos fragmentos originais do diário e a que foi publicada pelo pai de Anne. Aquela passou, no decorrer desses anos em que a obra circula por pesquisas de caligrafia sob responsabilidade do Instituto Holandês para Documentação da Guerra em 1986 e antes pela perícia de grafólogos alemães (1960) e pela Oficina Federal Alemã para Assuntos Penais (1980); em todas essas etapas a autenticidade dos papéis foi verificada como pertencente a Anne. 

Ligações a esta post:
>>> No nosso Tumblr reunimos imagens raras de Anne Frank em Amsterdã
>>> Leia uma lista com livros sobre o período da Segunda Guerra Mundial, aqui.


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual