Sobre Corpo de festim, de Alexandre Guarnieri
Por Pedro Fernandes
toda a vida
contida numa exígua partícula,
–
desdobrável de si própria –, equilibrada
sobre a
mesma progressão desenfreada;
deuses
ferveram-na numa caldeira aquecida
ante o
clarão do big bang / cozeram-na por milênios,
lenta, nas tripas
da mais velha estrela / e lá, aprisionada,
como o maior
espetáculo da via láctea, além do limbo
centígrado
dos organismos bioquímicos,
replicou-se
a enzima de sua fina
( e elástica
) matematicidade
// até que
[...]
Alexandre
Guarnieri escreveu Corpo de festim,
livro que integra o lento e sofisticado processo de lapidação poética porque
passa todo poeta comprometido com a palavra. Sim, porque sempre existiu, mas
tem ganhado forma com cada mais cinismo, o poeta criador de formas falsamente
manipuláveis e, logo, facilmente quebráveis ao dinamismo do tempo. Não é porque
o material verbal que o poeta utiliza é estranho ao universo acusado tantas
vezes de pertencer às formas frágeis. Não. É o trabalho intelectual de
maturação da palavra. Isso é que se apresenta logo à superfície do poema. Isso
é que dá ao poema a dimensão laminar.
O poema deve ser lâmina. Faca que abre a carne do tempo. Objeto de montar. Peça
de um corpo. Um corpo. Um poema não se sustenta apenas do espanto, da liquidez,
da matéria repisada. Como criação, um poema só se sustenta como organismo.
Quando
cruzei os olhos por sobre o título (Corpo
de festim), o último termo me arrastou para um tempo quando li poço, festim, mosaico – um dos primeiros
livros da poeta Marize Castro. Os dois nomes e as duas poéticas estão muito
afastados pela forma: sim, uma coisa é apenas um suntuoso banquete, assim,
solto entre a marca escura e colorida; outra, é o corpo tornado suntuoso
banquete, tornado matéria de exploração particular. Mas, há, além do mesmo
termo (festim), uma linha que leva de
Marize Castro a um poeta como Alexandre Guarnieri. (É uma convicção muito
arriscada a que ofereço, mas o que a crítica diante de poesia, se não uma voz
que se arrisca? Ou nos arriscamos ou não saímos da mesmice que nos embebeda e
depois faz pose com tapinha nas costas para as redes sociais.) Esta obra dividida
em três “capítulos” – nascida dessa averiguação microscópica da existência,
como se apresenta no poema-epígrafe e ponto de partida destas notas, até o fim,
quando o corpo banqueteado é tornado, de novo, microscopia simbólica – não
provoca a impressão do lirismo como sucede ao leitor da poeta de poço, festim, mosaico. Na obra em
análise aquilo que dá forma ao poema é extraído da matéria orgânica ainda viva;
o corpo em festim é uma complexa
máquina cuja percepção do poeta é de fotografar com palavras seus membros, seu
funcionamento, seus fenômenos, que ora
são separados como se peças: “o sangue”, “o suor”, “do sêmen ao leite materno”,
“a urina”, “a pele”, “a cabeça” – para mencionar apenas alguns destes textos de
Corpo de festim. Sua poética se
nutre, assim, de uma maior objetividade. É como se nela contivesse aquela
dimensão mais bruta da existência. Claro que há nisso tudo certa natureza
singela. (E uno por minha conta as pontas da linha que tentei visualizar entre
duas poéticas diversas, não para dizer que uma é melhor ou está acima da outra,
mas para ressaltar as particularidades do eu-poético.)
Corpo de festim colocou-me ainda diante
de outra sentença – a gestada por Francis Ponge sobre seu método criador (My creativ method): “PARTI PRIS DES
CHOSES / ÉGALE / COMPTE TENU DES MOTS”. Apesar de Alexandre Guarnieri não se
utilizar de choses (nessa obra não,
mas em Casa das máquinas, livro
anterior, sim) – quando muito torna matéria e formas orgânicas em coisas – aqui
se trata, como na sentença de Ponge, numa verbalização, ou mais exatamente,
numa transformação em palavra daquilo a que palavra se refere. Ao ponto de, se
não palavras no dicionário que signifique aquilo que poema pede para significar
é da competência do poeta criá-las ou enlarguecer sua estrutura gráfica por
outros elementos fazendo do texto um exercício pictural. Como em Ponge, o
essencial desse fazer poético é a compreensão da função da palavra, não propriamente
com a de designação da coisa, mas a de ideia ou noção do seu significado. Esse
método criador, evidentemente, não anula o sujeito ou voz lírica diante do
referente, afinal, a noção de significado do signo continua sendo atribuição
subjetiva (novamente, coincide-se um e outro fazer poético, reabrindo, para
logo fechar, a linha entre Alexandre Guarnieri e Marize Castro).
Alexandre
Guarnieri compreende que o processo de criação da linguagem poética deve
procurar possibilidades em áreas esgotadas de significado; constrói, com isso,
um reaquecimento da linguagem. Também não prende o poema à sua natureza
espartilhada e recuada num canto escuso da página. A força com que constrói
determinados artefatos poéticos – e aqui penso em títulos como “ânus humano ( .
) ônus santo”, “[ ] corpo de prova [ ]”, para citar dois exemplos – não permite
acomodar-se em fronteiras determinadas. A poesia não é apenas lâmina. É também
o jorro do corte. A linguagem e a forma poética constituem-se, assim, em dois
problemas especificamente poéticos. O esforço linguístico em achar a palavra
que exprime o que o poeta quer referenciar não se atém à medida métrica,
rítmica, sonora, isto é, à forma, embora, compreenda que há nos poemas jorrados como esses dois que
citei acima como exemplos um movimento musical muito bem construído. Se leio
“ânus humano ( . ) ônus santo” em voz alta consigo fazer com que a leitura se
dê quase de maneira cavalgada. O poeta está no limiar da construção lírica
tradicional e moderna. É evidente que, nesses poemas em diálogo com a prosa, o
predomínio da linguagem, seu absolutismo, se constitui na forma destruidora da lírica. A poesia de Alexandre Guarnieri é um festim verbivocovisual, para fazer
chegar aqui um termo caro à poesia concreta que trabalha a palavra a ponto de
torná-la artefato visual.
Por fim,
depois de comentar sobre o trabalho de maturação sobre a palavra – que poéticas
como a de Corpo de festim deixam
sugerir – busco também um termo (afinal será outro o trabalho da crítica se não
maturação sobre a palavra?) cujo interesse não seja o de reduzir, classificar
ou determinar, mas compreender essa obra. Corpo
de festim se constitui numa cartografia sobre o corpo. É uma obra
fronteiriça com a forma de um atlas. Ou o olhar sobre um atlas. Olhar não
perscrutador, tão somente; nem só imaginativo ou imaginário; de nenhum modo
contemplativo. É um olhar criador de formas. Uma necropsia de natureza verbal
sobre uma estrutura que não é só órgãos e sistema. O corpo é também discurso. É
um sopro, objeto. Nada. É materialidade
constituída e determinada pela palavra que o desenha. Ou substância química.
Átomo. Duas unidades comprimidas que se confunde forma condensada do dizer
poético que Alexandre Guarnieri ora comprime (volte a reler o poema que abre essas
notas) ora deixa jorrar, um big-bang.
Seja do
ponto de vista formal e criativo, seja do ponto de vista temático, Corpo de festim se apresenta, desde já, como
um título fundamental para cena literária brasileira porque não se habitua aos
fenômenos gastos e fartamente utilizados pela poesia de apelo midiático. Como
disse na ocasião em que li Casa das
máquinas, Alexandre Guarnieri busca se filiar a uma extensa tradição do
verso, sorve poéticas renegadas ao fora do cânone (e penso aqui, em quantos
ecos pude ouvir da poesia de Souzalopes, um nome cujo trabalho de apresentação
pública tem sido um dos exercícios do próprio poeta de Corpo de festim) para compor uma poética muito particular e
sobretudo compromissada com o caráter real da poesia: ser criação.
Ligações a esta post:
>>>Leia sobre o primeiro livro de Alexandre Guarineri, Casa das máquinas aqui.
>>>A 10ª edição do caderno-revista 7faces trouxe poemas do poeta referentes ao livro Corpo de festim e outros inéditos. Acesse a edição aqui.
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