Revisitando histórias bíblicas: Caim, de José Saramago
Por Cláudio Capuano
"A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus,
nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele".
"Caim é o que odeia deus".
Saramago, Caim
Após dezessete anos da publicação de O Evangelho segundo Jesus
Cristo, o escritor português José Saramago retomou um tema criado a
partir do evangelho: Caim. Publicado no segundo semestre de 2009, o livro
é um romance, no qual, por meio da figura do primeiro filho do primeiro casal
humano, somos confrontados não só com o tema, mas também com os posicionamentos
em relação aos preceitos religiosos de base judaica do nosso prêmio Nobel de
1998.
A leitura de Caim é fluida, agradável, instigante. Nela nos
deparamos com uma história, cujo princípio coincide com início da Bíblia. Nos
dois primeiros capítulos, ali estão Adão e Eva às voltas com a incipiência do
existir. Ganham a fala, comem do fruto proibido, perdem o direito de estar no
paraíso. Uma vez expulsos, são informados por um querubim, de que não são os
únicos humanos sobre a Terra.
É só no terceiro capítulo que aparecem Caim e Abel. De breves
referências à infância comum dos dois, chega-se à situação do assassinato.
Tendo suas oferendas a Deus sistematicamente rejeitadas, Caim, tomado pela ira
e pela inveja, arma uma cilada e mata o irmão. Dá-se o primeiro dos inúmeros
encontros entre o personagem e Deus. Em todos, configuram-se desentendimentos
gerados por absoluta diferença de pontos de vista. Se Deus se indigna com o ato
do personagem contra o irmão, ele se defende dividindo com o próprio Deus a sua
responsabilidade. Tivesse ele aceitado os seus sacrifícios, os únicos que ele
poderia oferecer, e não teria ocorrido o fratricídio.
Não há no livro um único posicionamento crítico em relação às
incoerências do texto bíblico, assim nos apresentado pela voz de um narrador em
terceira pessoa, que seja novidade para quem acompanhe minimamente a trajetória
literária de José Saramago. No romance, Caim tem um constante confronto
ideológico com Deus. Enquanto este é o tirano-vingador, capaz de trucidar
populações inteiras, sem poupar nem crianças, aquele é o leitor cético dos
tempos bíblicos, cujos pensamentos, quando não são por ele mesmo verbalizados,
o são constantemente pelas palavras do narrador, eco anacrônico da voz do
presente no pensamento do personagem.
Como o Caim bíblico, o do romance é marcado por Deus e condenado a
errar indefinidamente. Pode-se extrair, contudo, justamente do tipo de errância
empreendida pelo personagem o que há de realmente notável no romance. Se o Caim
bíblico será condenado a errar pelo mundo, o de Saramago erra pelos tempos...
bíblicos. Por um mecanismo de natureza fantástica, o personagem se vê diante de
fronteiras temporais. Ao cruzá-las, transforma-se em testemunha ocular de
episódios do Antigo Testamento.
O primeiro lugar a que chega é a terra de Noh. Ali reina Lilith, figura
ausente no Evangelho. Poderosa e sedutora, Lilith leva para a sua cama os
homens que deseja, para usá-los e destruí-los. Alertado dos perigos que lhe
podem advir de um encontro com a mulher, o jovem Caim obviamente não consegue
lhe passar despercebido. Lilith percebe o jovem trabalhador, sujo pelo ofício de
pisar o barro, e o convoca ao palácio. A cena que antecede o primeiro encontro
íntimo dos dois é emblemática e guarda um aspecto de que podemos nos utilizar
para ler Caim: a constante passividade subitamente interrompida por atos
bruscos.
Imundo, o personagem é levado até a senhora da cidade. Antes é
preparado para o encontro. Amas o lavam por completo. Caim, como em diversos
outros momentos da narrativa, deixa-se ficar, passivo, expectador dos
acontecimentos. Igualmente passivo ele se manterá, mesmo quando elas, ao se
deterem no seu sexo, provocam-lhe ereção e ejaculação. É quando subitamente se
dá conta do que foi fazer ali.
Somente na presença de Lilith é que ele sairá do estado de passividade.
O jovem que desperta o desejo da senhora de Nod, o assassino do irmão, é também
o homem casto, pela primeira vez unido sexualmente a uma mulher. Caim revela-se
tão vigoroso no ato sexual que se diferencia dos outros homens com quem Lilith
esteve. Contrariando o usual, o personagem permanece na cidade como seu preferido.
Caim naturalmente desperta ciúmes em Noah, marido de Lilith, que trama
a sua morte. O personagem, porém, leva na testa a proteção de Deus, sob a forma
de um sinal negro. Lilith vinga-se dos escravos envolvidos na emboscada, mas
poupa o marido. Caim, por sua vez, revela-lhe toda a sua história. Mesmo
sabendo que a mulher engravidara, o primogênito de Adão parte de Nod.
A partir desse momento, inicia-se o trânsito do personagem pelos tempos
bíblicos. Não há, contudo, um respeito cronológico aos acontecimentos. O
primeiro encontro de Caim é com Abraão, que está prestes a sacrificar a Deus o
filho Isaac. O personagem se antecipa ao anjo, impede o ato e reprova tanto a
atitude de Abraão quanto a de Deus, que exigira tal sacrifício. Em um segundo
encontro com Abraão, Caim o encontrará mais novo, antes do nascimento do filho,
e se envolverá no episódio da destruição de Sodoma. Há nesse momento uma
primeira referência à morte indiscriminada de pecadores e inocentes na cidade,
sobretudo de crianças.
Na sua errância – quer seja no encontro com Moisés ou Josué, quer seja
por assistir aos sofrimentos de Job – Caim passa a confrontar o seu único
crime, o fratricídio, aos inúmeros desmandos cometidos por Deus, em nome de por
à prova o seu próprio poder, com toda a falta de propósito que isso possa
encerrar.
Antes do último encontro, com Noé, Caim retorna a Nod e se reencontra
pela última vez com Lilith. Lá sabe do nascimento do filho e da morte de Noah.
Antes de morrer, o marido de Lilith dera à cidade o nome de seu filho: Enoch.
O último episódio do livro envolve Noé, Caim e Deus. O personagem vê a
construção da arca e nela toma lugar quando acontece o dilúvio. A embarcação
será o surpreendente palco da batalha final entre Caim e o criador.
Mesmo se lermos o romance como romance, a ficção como ficção, o que por
si só esvaziaria qualquer discussão de ordem religiosa, não é possível deixar
de perceber um interessante ponto de vista exposto no romance. Há a defesa de
uma ética, de uma retidão de conduta, reveladas pela coerência de atitudes
tanto do protagonista, quanto de Lilith, apesar de ambos terem uma trajetória
marcada por atitudes reprováveis do ponto de vista religioso.
Muito pouco nos informa a Bíblia a respeito de Caim. Após matar o
irmão, segue para o desterro. Dele só se sabe que deixou descendência a partir
do filho Enoch, unido a uma mulher não nomeada.
Símbolo da mulher que age, Lilith assume no livro o lugar da esposa de
Caim, mãe de Enoch. A união de ambos revela ao leitor ser possível, partindo de
histórias moralmente condenáveis, manter uma dignidade que sobrepõe tais tipos
de valores. A Lilith do livro de José Saramago é o que é. É digna justamente
por não se envergonhar de sua natureza. Revela-se inclusive capaz de amar um
homem, independentemente de seus erros.
Caim é o fratricida, autor do primeiro e terrível crime da humanidade.
Por isso cumpre a pena de jamais ter pouso, de jamais poder estar em paz. Assim
lemos no livro, no qual os nomes próprios são sempre grafados em minúsculas:
“para caim nunca haverá alegria, caim é o que matou o irmão, caim é o que
nasceu para ver o inenarrável”(p. 142).
O personagem, no entanto, guarda em si uma pureza, uma ingenuidade que
lhe faz grande e forte diante de Deus:
Apesar de assassino, caim é um homem intrinsecamente honesto, os
dissolutos dias vividos em contubérnio com lilith, ainda que censuráveis do
ponto de vista dos preconceitos burgueses, não foram bastantes para perverter o
seu inato sentido moral da existência, haja vista o corajoso enfrentamento que
tem mantido com deus, embora, forçoso é dizê-lo, o senhor nem de tal se tenha
apercebido até hoje, salvo se se recorda a discussão que ambos travaram diante
do cadáver ainda quente de abel (p. 143).
Em seu romance de 2009, José Saramago se utiliza de recursos
discursivos frequentes em seus textos. A ficção preenche lacunas de
significação encontradas, nesse caso específico, pelo texto bíblico consagrado
como versão oficial. Trata-se de um claro diálogo estabelecido com a Bíblia. No
entanto, ao trazer Lilith para a narrativa, a discussão se amplia, pois coloca
em pauta a validade de outras versões de histórias que sempre circularam no
seio da cultura ocidental.
A representação imaginativa do cotidiano dos primeiros tempos bíblicos
é outro procedimento que assemelha a presente obra a tantas outras, também de
sua autoria. Da mesma forma, as personagens Lilith e Eva se apresentam como
forças femininas, comparáveis a tantas outras criadas pelo romancista português
em sua extensa bibliografia.
Por fim, merece destaque a presença de um narrador cuja voz nitidamente
ecoa do presente, fazendo o leitor não se esquecer de que o texto lido tem
autoria definida e não representa uma verdade dos fatos. É o que ocorre no
trecho:
Que eles não disseram aquelas palavras, é mais do que óbvio, mas as
dúvidas, as suspeitas, as perplexidades, os avanços e recuos da argumentação,
estiveram lá. O que fizemos foi simplesmente passar ao português corrente o
duplo e para nós irresolúvel mistério da linguagem e do pensamento daquele
tempo. Se o resultado é coerente agora, também o seria na altura porque, ao
final, almocreves somos e pela estrada andamos. Todos, tanto os sábios como os
ignorantes (p. 47).
Em suma, vemos em Caim o autor de sempre: inteligente,
cáustico, irredutível em suas convicções éticas. O que de passional pode haver
nas discussões a respeito do romance são fruto certamente da escrita apaixonada
e apaixonante de José Saramago.
Nota:
O texto de Cláudio Capuano é reproduzido aqui como um gesto de homenagem ao professor que morreu no último domingo (03 de março). Formado em Geologia e Letras, Cláudio lecionava Literatura Portuguesa na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro desde 2010. O professor é autor de Tudo que trago são papéis: história, escrita e ironia no teatro de José Saramago.
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