Quando Gabriel García Márquez aprendeu a escrever
Por Winston Manrque Sabogal
“O coronel
destampou a garrafa de café e comprovou que não havia mais de uma xícara...”.
“Muitos anos
depois, frente ao pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de
recordar aquela tarde remota em que...”.
O universo
literário de Gabriel García Márquez se constrói na caribenha Arataca, quando
vive sua primeira infância com seus avós maternos: Tranquilina Iguarán Cotes e
Nicolás Ricardo Márquez Mejía. Ambos o envolveram com as narrações de suas
histórias. Ela contribuiu com a imaginação com seus relatos de defuntos,
fantasmas e mistérios do além e de cá; e ele, velho coronel aposentado, com o
pragmatismo e o raciocínio com suas recordações da Guerra dos Mil Dias e as
batalhas da vida diária. E em casa encontrou, também, o livro que definiria seu
futuro como escritor: um dicionário que foi presente do avô e que o menino leu
como se um romance, “em ordem alfabética e sem entendê-lo”.
Naquela casa
colombiana, sob sóis inclementes, formava-se o futuro. Com seus avós viveu até
os oito anos. Sua última recordação foi a fogueira onde, depois da morte do
coronel, queimaram suas roupas, entre elas os trajes de guerra, como os que o
próprio Gabriel usou em Estocolmo na entrega do Prêmio Nobel de Literatura em
1982. Tinha 55 anos. Aquela perda do homem que lhe criou numa casa invadida de
mulheres o acompanhou sempre e disse: “Hoje o vejo claramente: algo meu havia
morrido com ele. Mas também creio, sem dúvida alguma, que nesse momento era já um
escritor de escola primária ao que só faltava era aprender a escrever”.
No primeiro
tomo de suas memórias, Viver para contar,
o mestre de contos e romances indispensáveis e artigos de jornal exemplares
conta que lhe custou muito aprender a escrever. Ao final criou um mundo onde,
como disse Mario Vargas Llosa em Historia
de um deicidio, “esta vontade unificadora é a de edificar uma realidade
fechada, um mundo autônomo, cujas constantes procedam essencialmente do mundo
da infância. Sua infância, sua família, Aracataca constituem o núcleo de
experiências mais decisivo para sua vocação: estes demônios foram sua fonte
primordial”.
Outros demônios
em sua adolescência e juventude foram Kafka, Woolf, Sherezade, a Bíblia...
A linguagem de
toda sua obra parece ser feita “para contar histórias, para mudar o mundo
aterrador, para introduzir o homem sem que dê conta nos vales confortáveis do
sonho. Como se de um grande caleidoscópio se tratasse para mostrar a realidade
dos traços e das cores, mas ordenadas em vistosos encaixes, mágicos,
modificados, multiplicados por espelhos enganosos”, explicou Ricardo Escavy
Zamora, da Universidade de Murcia num congresso em homenagem aos Cem anos de solidão em 1992.
Escrever bem
para García Márquez “não é uma exibição de dotes estilísticos; é unir a noção
épica do idioma às épicas existentes”, dizia Carlos Monsiváis. Isso o levou à exploração
e conquista de novos territórios literários que, em palavras de Carlos Fuentes,
“não apenas reunia numa viga as grandes tradições da literatura hispano-americana
– mito de fundação, épica de destruição, história de recriação – embora que,
magistralmente, generosamente, demonstrava a compatibilidade dos gêneros de uma
época de seca literária determinada pela ditadura do nouveau roman francês, empenhado em converter a literatura em
deserto”.
A García
Márquez lhe encantava escrever, por isso não entendia quando alguém dizia que a
literatura era um sofrimento. “Outra coisa”, confessava, “é alcançar que o
leitor acredite em mim. Isso sim é um desespero até que se aqueça o braço e
tudo sai, e se mistura, e começa enfim, a tomar forma. Mas o leitor tem que acreditar
sempre, se não tudo foi um fracasso”.
Tentou desde
sua escola na fria Zipaquirá nos Andes colombianos. E se lançou ao grande
público num domingo de setembro de 1947 quando o jornal de Bogotá El Espectador publicou um conto seu, “A
terceira resignação”. Logo chegou o jornalismo em todos seus gêneros, enquanto
à hora do lazer fazia literatura. Dali e dessa lição saíram narrativas de “Olhos
de cão azul” ou “Os funerais da mamãe grande”, ou romances como Ninguém escreve ao coronel, Cem anos de solidão, O outono do patriarca, Crônica de uma morte anunciada, O amor nos tempos do cólera, Do amor e outros demônios.
Apesar de
reconhecer que o mais lhe interessava no trabalho de escritor era a concepção da
história, e o que mais lhe aborrecia era escrevê-la. Mas uma vez diante da
folha era um conquistador. Sobre a progressão de uma obra afirmava, “consiste
justamente em continuar escavando dentro de algo para ver onde se chega, onde
se encontra o botão que se busca e que é o mistério da morte. A vida, já se
sabe, não se decifrará jamais”. Sob essa premissa começou a escrever frases
como “O que dia que iam matá-lo, Santiago Nasar se levantou às 5h30 da manhã
para esperar o barco em que chegava o bispo. Havia sonhado que...”.
“Era inevitável:
o cheiro de amêndoas amargas sempre lhe lembrava o destino de um amor não correspondido...”.
Ligações a esta post:
Leia notas de Rafael Kafka sobre Cem anos de solidão, aqui.
Leia sobre Memórias de minhas putas tristes, aqui.
Quando da morte do escritor, Rafael Kafka escreveu-nos uma crônica com lágrimas; leia aqui.
* Tradução livre para "Cuando Gabriel García Márquez aperndió a escribir", publicado no jornal El País.
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