Palavras cansadas da gramática, de Yao Feng (Parte II)

Por Pedro Belo Clara



O segundo volume da obra que temos vindo a discutir encerra um carácter, a nível temático, que se adivinha como “antologia de viagens”, na medida em que muitos poemas se debruçam sobre terras estrangeiras ou registam episódios das ditas deambulações, salpicados de fragmentos meditativos ou de índole contemplativa. É o caso, por exemplo, dos poemas "Amsterdan" («A reputada cidade do sexo»), "Passagem pelo Planalto Central" («O milho (…) // ri para mim / com a boca aberta / dentes todos amarelos / mas não de ouro») e "Viagem", que pela própria epígrafe não poderia ser mais explícito («Todos os dias o pôr do Sol é um aborto / e o relógio tem em si a suficiência do tempo»).

Sublinhemos, contudo, como o habitual carácter reflexivo de certos poemas, ou das imagens evocadas / registadas pelos mesmos, abrange com maior frequência a natural passagem do tempo, em parte fomentadora da ruína do Homem. Já antes, no primeiro volume, se havia verificado pontuais meditações a respeito (e ainda se constatará o incremento das mesmas, como em breve explicaremos), mas em "Paisagem ao longe" o carácter anteriormente referido ganha um fluxo maior. Permite assim ao leitor entrar em contacto directo com a parte da visão de Feng que regista o suceder das estações, ao qual o Homem jamais ficará imune. Daí, em parte, a melancolia que perfuma a parte central deste trabalho. Citamos, a respeito, e de modo integral, o poema "Fim".

Talvez no Inverno
me tenhas oferecido uma pedra
acesa, tão acesa que a guardava
ora na mão esquerda, ora na mão direita

Viraram-se os dias como páginas
e a pedra, pouco a pouco, esfriando
O que as minhas mãos juntaram
acabou por ser apenas sombra.

Com o avançar das páginas, nota-se como os versos dos novos poemas se vão tornando mais extensos, concretizando já o prelúdio daquilo que se irá encontrar, de modo mais frequente, no terceiro e último volume desta obra. Contudo, os assuntos abordados são, em génese, os mesmos, apenas expostos sobre outros modos e feitios. Não obstante, a criativíssima e penetrante visão de Feng permanece incólume, adquirindo traços cada vez mais definidos e profundos. Por merecer cada segundo investido na sua leitura, voltamos a citar na íntegra mais um poema: "Relíquia".

A cama do doente, velha e gasta,
e, na mesa, as flores de plástico que não sabem o que é
murchar
Os familiares, ainda saudáveis, cercam a cama a chorar
formando um muro de lágrimas
Lá fora, as sumaúmas, bem florescentes
reflectem-se no vidro da janela como manchas de sangue

Começamos a arrumar os pertences pessoais do defunto:
agenda, telemóvel, espelho, pente, casaco,
sapatos, remédios
Entre eles o velho relógio Seiko
continua a fazer
tiquetaque, tiquetaque, tiquetaque...

O silêncio com que termina o poema é deveras extraordinário. Pela sua significância, pela sua profundeza, pela sua simplicidade. Um pungente retrato elaborado em sóbria linha e por hábil mão, do qual cada um, nele reflectido a seu modo pessoal, conseguirá retirar os sentidos que considerar mais próprios.

Também a crítica política, não muito comum, adquire o seu espaço. E nas modulações habituais de cada poema, consubstancia-se e assume o relevo que lhe é apanágio. Vejamos as estrofes finais de "Aos mortos na mina de Carvão Taiping (Paz Eterna)":

Todavia, no mundo dos vivos
o vento continua soprando frio e a energia
é cada vez mais precisa.
O crematório? Tornou-se mais uma fonte de energia
do Estado.

Um retrato cru, mas autêntico.

A partir dele, podemos também justificar a decadência e ruína do Homem e de sua condição, antes referida. A sua base é o aparente “vazio” que habita o ser, a existência egóica que insistentemente leva a cabo, a fome por uma razão ou sentido amiúde saciada, sem resultados satisfatórios, na paixão dos efémeros prazeres. E daqui nasce um contraste, tão nítido em "O mar não precisa dessas coisas": a simplicidade dos elementos e da natureza em si, tão livres e espontâneos, ganha revelo se comparada com a sofrível forma com que o Homem conduz a sua vida.

(…)
a nossa alegria e tristeza, cada vez mais dependem do corpo,
cada vez mais precisam de evacuar
(…)

No entanto, o mar não precisa dessas coisas
nem desta humanidade tão superior.

«Tão superior» mas, a níveis de profundidade, tão completamente inferior.

Apesar das modificações estilísticas, os temas expostos são os que habitualmente povoam os trabalhos de Feng. A unidade do volume pode assim não ser muito visível durante a sucessão dos poemas, mas ao nível da forma e do conteúdo revela-se deveras sólida.

Sobra-nos, portanto, "Avançar" – a terceira e última parte do trabalho sobre o qual  temos vindo a conversar. A única, sublinhamos, que não foi escrita em português. A tradução do original em mandarim deve-se a Fernanda Dias, cuja sensibilidade posta no ofício que lhe coube merece o louvor de Feng nas primeiras linhas deste projecto.

Apesar da sugestão dada pelo poema de abertura, "Esplendor", a maioria dos trabalhos presentes no volume vestem a indumentária habitual, quer ao nível do conteúdo quer ao nível da estética (as respectivas mutações foram já antes expostas), sendo resultado de um persistente exercício de meditação sobre, essencialmente, o destino, a passagem do tempo e o binómio morte / renascimento. São tempos tais que marcam inúmeras vezes os ritmos da poesia de Feng.

Reparemos como o poema abordado no parágrafo anterior se foca magistralmente no pormenor, extraindo dele toda a beleza que pulsa na singularidade dos instantes, tão banais ao julgamento de leigas percepções. 

No mar
à flor das ondas
vagas enlaçam vagas, como amantes

No mais frágil âmago da vaga
brilha o sol

Temos, portanto, a cristalização do momento, tecido em palavras, num breve poema embebido no melhor que o haiku tem a oferecer.

Mas trata-se, como dissemos, de um caso ímpar. Pois logo se percebe o corpo do volume e toda a sua extensão e relevo. Assim, destacamos os poemas "Avançar", "Sina" (um raríssimo caso de “poema compacto”) e "Colector de névoa" como alguns dos mais representativos. Por ordem de enumeração, apresentamos, no intuito de o elucidar, estimado leitor, os respectivos excertos:

Vogam nuvens, passa o tempo
por mais que as tentes deter
seguem em frente, a voar

Nem eu permaneço no mesmo lugar
(…)

Sina, imensa e remota, etérea, enigmática
imponderáveis os fios que a tecem
(…)

Aclamo o primeiro raio do dia
suando sob o sol.
Vi tanta gente morta
na música fúnebre

É meu uso ritualizar
recalcar a dor
deixando escorrer dos olhos
não tristeza, mas algo pétreo
(...)

As palavras estão, como já sabemos, “cansadas de gramática”. E tal fadiga ou fomenta uma revolta estilística (que, a existir, é deveras contida) ou expressa o peso que uma existência que perdura na continuidade da memória fomenta. Pode, assim, existir algo mais além do retrato? Não que esse surja como meio de fuga, mas uma busca, um intento, uma ânsia visceral?

De modo personificado, o "Em busca da luz" pode resgatar alguns íntimos suspiros. Não se trata de salvação, expurgo ou expiação... Provavelmente de conhecer o que se pode extrair daquilo que cintila para além da torpe realidade. E quem sabe se daí não se resgata um sentido revelador, mesmo que somente o silêncio sobeje? Mesmo que a escuridão teime em reinar?

Volto a luz à lâmpada
e de súbito está de novo escuro
quem prende lá fora a falena-da-noite
e a ensina a aceitar a obscuridade?

Depois de um treino sem fim
a falena de asas rasgadas
já não sabe voar
arrasta-se no crepúsculo
rasteja lenta como um caracol
a caminho da luz.

Embora escrito no dialecto materno do autor, no derradeiro volume deste livro a ligação a Portugal mantém-se, como atestam as referências de dois poemas em particular. Extraídos de viagens e estadias por lusas terras, sublinham a destacada presença do dito país no canteiro dos afectos de Feng. Não só por aquilo que oferece, mas também pelas pessoas que o habitam. Trata-se de "Amor por um cavalo" e "O almoço dos poetas", donde respectivamente se extraem as seguintes palavras:

No Alentejo
vi o cavalo
(…)

Simples, absoluta, perfeita criatura
nem sinal de impureza no brilho do olhar
pastar e galopar – e nada mais
nenhum anseio por uma vida melhor


Em Faro
poetas vindos de seis países
estamos sentados na orla do mar

Ao oceano dedicámos os poemas líricos
às ondas restituímos o grande peixe
que os dentes transformaram em alfinete
para as enfeitar

Geralmente duvidamos de um livro que contém um prefácio, um posfácio, uma entrevista ao autor e ainda um ensaio sobre a poesia do mesmo (além do conteúdo  que dele se espera, é claro). Pois um bom livro divulgar-se-á por si só, e o excesso de marketing em redor do mesmo mina a confiança de quem, mais avisado, se prepara para o adquirir. Se é efectivamente tão extraordinário, porque necessita de uma campanha massiva para o divulgar? Para o tornar visualmente mais atraente e aceitável? A promoção de todas as formas de arte deterá certamente a sua importância, mas ultrapassando determinadas barreiras cairemos inevitavelmente nos exageros do mediatismo.

Não é, contudo, o caso da obra em questão. Apesar do talvez excessivo número de anexos, justifica, a nosso ver, cada palavra que contêm. Prefácio e posfácio, assinados por Fernando Pinto do Amaral e Carlos Morais José, contribuem para enquadrar o leitor ainda não versado na obra de Yao Feng na temática e estilo que o espera. Ademais, a entrevista muitíssimo bem conduzida por Raquel Abi-Sâmara, publicada no Portal de Periódicos da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, permite um contacto mais direito e íntimo com o autor – bastante bem-vindo, diga-se. E o ensaio competentíssimo orquestrado por Egídia Souto, completando o ramalhete, assume-se como um complemento necessário a toda a análise que venha a ser feita a respeito de Feng. Os acrescentos ao livro despojam-se, portanto, de qualquer rotulagem menos meritória antes sugerida.

Yao Feng, o homem que traduziu Eugénio de Andrade para o público chinês, será um autor ainda por descobrir para a maioria dos leitores portugueses e, principalmente, brasileiros. Não obstante os louvores que na pátria de Camões já obteve e os livros que aí publicou. Contudo, é a sua curiosa proximidade com essa nação, também como consequência das históricas relações entre os dois povos, que em diversos aspectos o torna tão familiar ao público que o deseja artisticamente conhecer. Além disso, destaca-se ao fomentar uma fusão interessantíssima entre dois modos distintos de entender e trabalhar a poesia. Em todo o caso, temos em mãos um livro que pode muito bem ser considerado um expoente do tipo de poesia que nos oferece, onde o belo e a ruína, sem que um se permita macular pelo outro, habitam numa harmonia que se julgaria impossível. Torna-se, assim, indispensável a sua leitura por parte dos amantes da poesia breve, musical e cristalizadora de imagens.

Ligações a esta post:
Leia a primeira parte do texto aqui.

 ***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).


Comentários

yaobrisa disse…
Prezado Sr. Pedro Clara

Sou Yao Feng e chegeui aqui por acaso. No entanto, gostava de agradecer a sua leitura crítica sobre o meu livro Palavras Cansadas da Gramática. Gostei muito da sua crítica e queria que o seu artigo fosse publicado em Macau onde cá trabalho, caso tenha a sua autoriração.

Muito obrigado e um abraço

Yao Feng
Pedro Belo Clara disse…
Caro Yao Feng,

Foi num misto de surpresa e satisfação que recebi o seu deveras amável comentário, que muito me honra. Ainda para mais por não me saber crítico de género algum, antes um leitor. Foi nesse registo que elaborei estes textos, à semelhança de muitos outros aqui partilhados: sob a óptica de um mero leitor. Fico, por isso, extremamente satisfeito por saber que de algum modo o meu trabalho lhe agradou.

Tratando-se de um autor que muito admiro e respeito, ao que se somará essa obra que tanto gosto me deu ao lê-la, sobram poucas palavras para exprimir a minha gratidão. É claro que tem a minha total autorização para publicar este texto em Macau (provavelmente, dado o tempo que passou desde a sua criação, impõe-se uma nova revisão...). Se possível, gostaria que oportunamente me pudesse dizer se prevê que a edição ocorra em meio físico ou virtual, dado que teria muito gosto em ver o resultado final (e se possível adquirir uma cópia).

Renovo os meus sinceros agradecimentos, sublinhando que o texto encontra-se aqui publicado em duas partes - espero que se tenha tido apercebido desse facto.

Um abraço e até breve.


Pedro BC.

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual