O estado do bosque – José Tolentino Mendonça (Parte I)
Por Pedro Belo Clara
Numa
das primeiras ocasiões em que abordámos aqui o autor em epígrafe, trouxemos à
discussão um trabalho deveras original no cada vez mais extenso rol de obras
que tem vindo a publicar. Tratava-se de um livro de haikus, género onde
Tolentino jamais se aventurara.
O
trabalho que hoje apresentamos retoma essa linha de novidade. Pelo menos, em
parte. Editado em Janeiro de 2013, reproduz uma peça de teatro composta no
âmbito de um projecto proposto pelo Teatro Oficina, de Guimarães. Nem que seja
meramente pelo intuito de satisfazer a curiosidade, justificar-se-á a análise
dum trabalho exposto num género que, apesar de não estar totalmente inexplorado
pelo autor, rareia dentre os projectos que até agora assinou.
Falar
em Tolentino é, desde logo, referir a sua poesia, estilo onde se revela num
maior número de ocasiões. Embora o ensaio e a elaboração de artigos diversos
assumam um lugar igualmente meritório. O teatro, contudo, escasseia. Por isso,
será sempre interessante mergulhar num género cujo exercício está ainda pouco
desenvolvido, sem que isso lhe retire a qualidade e o interesse devidos.
Sabemos
também qual a importante figura que Tolentino, sem máscaras, encarna.
Conhecemos partes do homem religioso que se reflecte em seus trabalhos, embora
as vestes eclesiásticas sejam, como convém a uma idónea exploração, retiradas.
Não obstante as ideias que expõe nos temas que aborda, fá-lo como um indivíduo
que busca e indaga. Naturalmente, a crença cristã existe e procura um lugar de
convivência sadia com a contemporaneidade da era onde subsiste. A forma de
abordar o Homem moderno inserido num mundo global, onde a figura do divino
surge cada vez mais desfocada e distante, e seus demais conflitos, internos, na
relação com o que o rodeia, é um dos aspectos de maior interesse na obra de
Tolentino Mendonça.
É
claro, assim, de identificar o veio principal dum autor no trabalho que
publica. Por isso, não poderemos esperar que O estado do bosque se expurgue de
tal evidência. O livro, ou melhor, a reprodução em livro desta peça teatral
desde logo permite antever um carácter místico de profundas intenções.
Exploremo-lo, então.
A
peça compõe-se por sete cenas (a simbologia do número é por demais, evidente),
cada uma delas correspondendo a um diálogo entre personagens num cenário
distinto, mas sempre seguindo o rumo do dito bosque. No fundo, estamos diante
uma peregrinação até ao âmago do ser, a grande metáfora que o bosque assume. E
as personagens participantes são apenas cinco: John Wolf, o guia da floresta;
Peter Weil e Jacob, dois caminhantes de idades díspares; e Viviane Mars e o
Destino, duas mulheres de parca aparição.
A
primeira cena, "O diálogo da orla", desenrola-se entre Peter e John Wolf,
claramente duas personagens centrais em toda a peça. E é também das cenas mais
complexas, profundas e poéticas que o trabalho nos apresenta. O tom do mesmo é
muitíssimo bem lançado, lamentando-se apenas o facto de nem sempre ser mantido
na devida conveniência.
O
diálogo é assim, sem se estranhar após o que foi dito, densamente filosófico e
amiúde obscuro, o que concede à cena um contraste vibrante e, como dissemos,
profundo. Obviamente, adensa os contornos das personagens, desde logo
nitidamente definidas em termos da sua psique: Peter, o homem de meia idade
absolutamente assoberbado pela vida que teve, mecânica e sem sentido,
totalmente regida por condicionamentos internos e externos; John Wolf, um sábio
cego, versado numa “filosofia de caminho”, que orienta as almas sedentas de
renascimento pelas densas profundezas do bosque. E sublinharemos, desde já,
caso o leitor nos permita, a tremenda ironia que reside nesse facto: o guia da
floresta é um homem cego. As demais implicações, naturalmente abismais,
deixaremos à consideração de cada um.
Observemos
então os dados já ressalvados: diálogo profundo entre duas personagens
centrais, onde das entranhas do pensamento exposto, amiúde conduzido por Peter,
sobressaem ecos de uma existência de reacção, isto é, robótica, desprovida de liberdade
própria. Portanto, assim que o “eu” disso adquire consciência, apesar do peso
do hábito, da rotina de vida despojada, a necessidade de transmutação impõe-se.
A própria personagem admite os “sinais” que julga receber: a frase «Take my
hand» («Pega em minha mão») é diversas vezes repetida, como um convite a
iniciar esse catártico percurso.
Eis,
assim, a razão de Peter percorrer o caminho para o bosque, ainda que disso não
possua total convicção. Ele que resgata a personagem da mitologia grega Dafne,
perante a impotência de Apolo transformando-se em árvore. Metáfora, assim, para
a própria condição do Homem que se mecaniza diante do peso da sociedade e do
seu imposto estilo de vida, Homem esse que, com o tempo, fatalmente assumirá a
forma de uma árvore – e quando disso tiver consciência será, é claro, tarde de
mais para retroceder no místico processo.
Vejamos
alguns excertos das intervenções de Peter que comprovam o que tem vindo a ser
exposto:
«O
sol brilha... os teus filhos dão guinchos de alegra porque, com os remos, os
salpicas de água... a tua mulher está reclinada na proa, a luz da tarde
bate-lhe na cara e ela tem os olhos fechados e sorri... mas tu já não és o
mesmo.»
«A nossa vida torna-se tão estranha, sem que
ninguém suspeite.»
«Depois acordas uma manhã e, sem explicação,
dás por ti prostrado. A capacidade de abraçar o que te pertence (…) foi-te
roubada. Tudo o que de longe te acompanha torna-se agora selvagem nas tuas mãos
(…). Assistes a isso e perguntas: o que é que aconteceu, onde é que tudo
terminou?»
«Um dia acordamos e não tens mãos. São galhos,
pinças desajeitadas cheias de folhas... Os braços pesam-te como ramos e tu não
sabes mais... E quando te olhas ao espelho investe contra ti uma mata confusa.»
O
diálogo acontece na orla do bosque. Logo, representa o prelúdio do que virá. E
é na iminência do desconhecido que a existência humana é conduzida a uma forma
de “crise”. Tudo se questiona, de tudo se duvida. Só agitando o fundo das águas
se as poderá depurar. Estamos assim diante do fim do conhecido; naturalmente,
no início, ainda não anunciado, de algo novo.
John Wolf: Tens medo?
Peter: Sabes o que sinto?
John Wolf: Sim...
Peter: Sinto que o teatro acabou.
Dessa
transformação pessoal, como veremos mais adiante, nem John Wolf, o guia, se
verá excluído. Curioso, não o acha, caro leitor? Num percurso de transmutação,
de renascimento, de morte do antigo e florescimento do novo, nem quem guia o
“eu” se vê a salvo do processo... Que diferença, assim, poderá residir entre
guia e guiado? Entre mestre e discípulo? Mas deixemos a retórica de parte e
retomemos, também nós, a viagem em direcção ao bosque.
A
segunda cena, como já permitimos antever, regista uma quebra do tom meditativo,
e até em certas passagens levemente metafísico, verificado anteriormente. Em "O
diálogo da casa", cujo espaço físico da cena desde logo se deduz, assistimos à
introdução de Jacob na narrativa, encontrando-se ele em diálogo directo com
Peter. Apesar desta personagem logo na primeira cena ter sido profundamente explorado
de modo psicológico, determinados aspectos, como motivos e intenções, agora reforçar-se-ão.
Ainda que aqui se marque a apresentação de uma nova personagem, é a psique de
Peter que se explora, bem como parte da história de vida do enigmático John Wolf,
o guia de sessenta e três anos, cego desde os onze.
Na
verdade, Wolf é a razão de Jacob iniciar esta viagem. Queria conhecê-lo, de tão
curioso que ficou ao saber, pelo artigo de um jornal, da história do mesmo. É,
assim, pela boca de Jacob que o percurso de Wolf se vai desenrolando diante do
nosso olhar, enquanto consolidamos a justa posição de leitor. Dentre as
ocorrências cronológicas que vão sendo expostas, destacamos a poesia sóbria de
um momento que, para muitos, seria de profunda tristeza ou revolta – o
desvanecimento da faculdade visual de John Wolf:
«A paisagem apagava-se nos seus olhos, e ele
não sentia medo. Sem ver, olhava. Era como se aceitasse a nova forma de
solidão»
Aceitar
será, assim, um modo de transcender.
Vamos
acompanhando o diálogo e de igual modo o espanto e admiração que Jacob cultiva
por Wolf. Mesmo cego, foi músico residente numa orquestra, professor de
musicologia, guia de museu... Até ao dia em que decidiu abdicar de tudo. Como
uma veste que não mais se ajusta ao corpo que a envergou, deixou para trás toda
a vida que conhecia e, cego e só, abraçou o desconhecido. Viajou milhares de
quilómetros e num pequeno (e pobre) país de África se decidiu estabelecer,
tornando-se o único fisioterapeuta existente no lugar. Talvez John Wolf
estivesse, e tal interpretação será tão válida como qualquer outra, mediante as
informações que o diálogo nos faculta, em busca de si próprio. E tal despojo,
cada vez maior, somente beneficiou o encontrou com o seu “eu” mais profundo.
Em
todo o caso, a sua nova condição, aliada à sua cegueira, que invariavelmente o
tornou mais sensível a respeito do valor das pequenas coisas (curioso,
reforce-se, como um cego vê mais do que quem possui olhos sãos), fomentou a
dita “filosofia de caminho”. A mesma, sendo resultado de uma forma de
despertar, jamais exclui a poesia do belo. Eis um exemplo:
«(...) a passagem de tudo, mesmo de um sopro
de vento, deixa uma luz que lhe serve de mapa».
E
assim, após passagens por muitos outros bosques, Wolf chega, como eremita, à
entrada desse mesmo que para o caso importa. Porque razão se propôs a ser guia?
Que oculto impulso o levou a tal? Uma vez mais, Jacob esclarece: «Diz que
aprendeu que a estrada é o remédio mais antigo». Interessante, diga-se, a
colagem de sentidos entre a frase que Tolentino coloca na boca desta sua
personagem e o belíssimo texto de Al Berto presente em O anjo mudo (obra também
aqui discutida em tempos), onde este confessa os potenciais curativos aliados
ao acto de viajar.
Além
do exposto, como dissemos, introduz-se, ainda que indirectamente, outra
personagem: a etóloga Viviane Mars. A mesma será motivo de uma brevíssima
discussão entre os dois intervenientes da cena, onde se desenrolará o diálogo
provavelmente mais banal de toda a peça. Será aqui, portanto, que o corte do
registo que dominou a cena anterior, e ainda dominará a maior parte das
vindouras, se verificará. Contudo, somente se confirma aquilo que antes se pôde
antever: John Wolf é a personagem que mais incita o ritmo obscuro e filosófico dos
diálogos que concedem uma profunda significância a este trabalho. As cenas onde
a sua presença se denota são, assim, as que se erguerão em torno de tais
características.
Apesar
de Peter, durante o instante que abordávamos, espicaçar Jacob para admitir o
seu romântico interesse na dita, certos momentos poderão ser sublinhados devido
ao relevo do entendimento que subtilmente proporcionam. Desde já, uma
referência os pigmeus, que «vivem na floresta sem alterar nada», e a mesma
«alimenta-os, protege-os». Temos, portanto, um ideal de vivência em destaque,
uma proposta existencial que se baseia na aceitação do mundo e numa
não-intervenção, de modo a permitir o fluir do natural fluxo da vida. Poderemos
até afirmar que, segundo a mesma, se o contrário se verificasse, a intervenção
deliberada, motivada pelos egóicos impulsos do Homem, assumir-se-iam os efeitos
contrários, naturalmente devastadores. É por em tantos instantes da narrativa
se permitir este espaço de reflexão que só podemos lamentar, como já o dissemos,
a não constância do mesmo.
Um
outro momento ainda a ser digno de relevo surge da insistência de Jacob perante
Peter, no que à assumpção dos seus motivos para empreender a viagem central à
obra diz respeito. Vai transparecendo o crescente nervosismo da personagem, bem
como a sua confusão interna e o receio perante o desconhecido que o espera. «Cheguei
aqui passando por cima de que rebentações e penhascos...», admite. Depois,
deixa escapar a confissão sobre a qual muito se poderá pensar: «há um momento a
partir do qual ninguém sabe se está a viajar ou simplesmente a fugir». E talvez
seja mesmo essa a derradeira questão que cada viajante, diante si próprio,
deverá honestamente colocar.
Ligações a esta post:
Leia sobre Estação central, de José Tolentino Mendonça aqui.
Pedro Belo Clara escreveu sobre A papoila e o monge, o livro de haikus a que se refere, num tem texto dividido em três partes: a primeira delas pode ser lida aqui; a segunda aqui; e terceira aqui.
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Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).
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