Notas sobre O ano da morte de Ricardo Reis
Por Rafael Kafka
Nelson
Rodrigues era a favor da ditadura militar. Tradicional pensador conservador
(perdão pelo pleonasmo), Nelson era um ser que demonizava o ser feminino em
suas obras, que diga-se a verdade eram muito bem construídas em cima de um
pensamento misógino. Nelson dizia que não havia tortura nos métodos censores
dos militares até ele ter seu filho Nelsinho preso pela mesma ditadura e
torturado. Não conheço o resto da história, mas fico a pensar em como ele deve
ter ficado estarrecido ao ver sua verdade sendo tornada mentira assim.
Jack Kerouac, o Buda da geração
beat, escreveu mais de vinte livros entre prosa e poesia, fora suas
correspondências e diários. Um escritor de mão cheia que fazia da realidade a
sua obra por entender, como diz Barthes, que a literatura é linguagem e por
mais que se queira fazer da literatura realismo intenso, ela se nega a isso,
por ser representação. Kerouac, esse escritor de mão cheia, que em Big Sur fala do desespero da existência
como algo esmagador, apoiou no fim de sua vida a guerra do Vietnã, enquanto o
seu amigo Allen Ginsberg, que praticamente escreveu apenas Uivo, tornou-se um ícone da geração de 1968.
Kerouac emula os passos de
Ricardo Reis no livro feito em homenagem a ele por José Saramago. O heterônimo
de Pessoa, que vez por outra se depara com o já morto poeta criador de poetas,
circula pela cidade de Lisboa alienado de tudo o que se passa a seu redor,
querendo fazer do estoicismo a sua moral de vida, pregando que a felicidade
consiste em se contentar com o espetáculo do mundo até que um belo dia descobre que o
mundo não é um espetáculo passivo que nos deixa o livre direito de contemplação
sem sermos perturbados pelos fatos que nos rodeiam. Ainda mais quando esses
fatos são a ascensão das ditaduras fascistas e a tensão cada vez mais crescente
que daria origem à Segunda Guerra Mundial.
Saramago constrói engenhosamente
um romance que fala sobre a intelectualidade alienada de si mesmo e do mundo
que a rodeia. O ser humano é síntese de social e individual e quando pensa em
fechar em si mesmo, o indivíduo na verdade estar a negar, ou tenta negar, uma
parte fundamental de sua realidade: os fatos que compõem o contexto no qual ele
vive. Ao negar o social, o ser nega a si mesmo, pois procura fugir das
condições que permitiram a ele formar sua mente e, quem sabe, até mesmo nascer
enquanto ser humano.
Tal alienação se torna ainda
mais gritante em Ricardo Reis pelo fato de ele utilizar-se de uma filosofia de
cunho helênico, desenvolvida há mais de dois mil anos na Grécia antiga. Naquele
momento, os cidadãos que se entregavam ao espetáculo do mundo estavam em uma
situação de conformidade muito grande entre existência e contexto existencial.
Lukács aborda muito bem essa sintonia existente entre ser humano e universo
presente nas obras gregas, em especial nas epopeias. O romance surge quando a
existência humana começa a se despedaçar rumo ao mal-estar pós-moderno vivido
por todos nós hoje. Logo, diante de todas as demandas, notícias,
informações, manter uma postura estoica e helênica é algo que exige um esforço
muito grande por parte do ser.
Ricardo Reis se engaja em fugir
do espetáculo do mundo. Percorre as ruas de Lisboa procurando fixar em si cada
detalhe, cada sensação, mostrando o que há de comum entre todos os personagens
criados por Fernando Pessoa e ele próprio: essa preocupação em fazer da arte o
sentido da vida, tornando-a algo tão necessário que todo o resto, inclusive os
fatos políticos que podem destruir o mundo, deve ser ignorado.
Tais andanças por Lisboa se dão
após dezesseis anos de estadia no Rio de Janeiro. A vinda para o Brasil se dá
por conta dos fatos políticos complicados ocorridos em Portugal que podem levar
a uma revolta política a qualquer momento. Ao saber da morte de Fernando Pessoa
e ao perceber que em Brasil uma nova revolta política poderia estourar, Ricardo
Reis volta para Portugal e se aloja no Hotel Bragança, local onde conhecerá a
criada Lídia e Marcenda Sampaio, moça que sofre do problema crônico de
paralisia no braço esquerdo e que vem a Lisboa todo mês, por três dias, para se
tratar e ver se encontra uma cura milagrosa para o braço, sempre acompanhada do
pai. Com as duas, Ricardo Reis viverá momentos de envolvimento amoroso repletos
de tensão sexual e lírica: com Lídia, criada de Hotel, que parece não estar à
altura de Ricardo Reis por conta de sua ocupação, o amor será mais físico,
carnal, ao mesmo tempo em que ela será a dona de casa improvisada que cuidará
de todas as necessidades do poeta médico. Já Marcenda será o amor inalcançável,
que se concretizará de forma muito ligeira em um rápido beijo, o qual culminará
em sua derradeira fuga.
Enquanto encontra-se nas teias
do amor, Ricardo recebe as visitas de Fernando Pessoa, que depois de morto
ainda tem nove meses a percorrer pela Terra antes de sumir de vez. O surgimento
de Pessoa na obra tem muito de metalinguístico, pois nos faz pensar em alguém
que surgirá com respostas profundas para questões embaraçosas e apenas se
limita a falar ironias rasas e sem muitos fundamentos. Os diálogos entre os
dois poetas mais parece monólogos do que propriamente um debate de ideias haja
vista a mesma incapacidade de envolvimento no tocante ao que se passa ao redor.
Em certo momento da história,
vemos a polícia pedir a presença de Ricardo Reis para investigar sobre os
motivos que o trouxeram de volta para Portugal depois de tanto tempo longe. De
forma sutil, Saramago mostra o quanto o assustador aparato policial de um
Estado totalitário então nascente tem todas as possibilidades de transformar a
vida dos cidadãos em um inferno na hora em que bem entender. Mas Ricardo Reis
parece, após o susto inicial, não se preocupar muito com isso. O mais curioso é
que como o Nelson Rodrigues da vida real, ele passa a defender um sistema
político, o fascismo de Salazar, que a qualquer momento pode aniquilá-lo se
quiser, tudo baseado nos jornais que atestam em todas as suas páginas, no
melhor da propaganda extraoficial, que agora Portugal terá paz e sossego.
Aparentemente, mesmo do alto de
sua inteligência, Ricardo Reis está mais preocupado em viver a sua vida da
forma mais pacata do mundo. Para ele, o importante é se conformar com o
espetáculo do mundo, mesmo que para isso, para que essa tranquilidade seja
garantida e nada perturbe a tranquilidade do mundo, uma ditadura precise matar todos
aqueles que a ela se opõem.
Saramago consegue em mais um
romance com temática universal abordar de forma genial questões importantes
ligadas ao debate dos gêneros. No decorrer do romance, vemos uma série de
frases ligadas a Lídia como que reforçando que o lugar da mulher é como
serviente ao homem. Porém, dono de uma fina e profunda ironia, Saramago aos
poucos mostra como o pensamento em questão na verdade mostra o quanto homens em
geral são dependentes de mulheres e, moldados pelo pensamento patriarcal, não
conseguiram se tornar autônomos nem para fazerem as tarefas mais básicas de seu
cotidiano. Lídia é quem parece ter mais contato com a realidade e tendo como
intermediário o irmão marinheiro começa a questionar a visão de Ricardo Reis,
que do alto de sua intelectualidade, como um Kerouac ficcional que se tornou
realidade, está preso à imagem que todos acham a mais confortável para manter o
espetáculo do mundo algo belo.
Já próximo do final do romance,
temos o desencadear dos fatos que darão origem ao fascismo em suas mais
variadas formas e começamos a perceber as posições políticas alienadas e
conservadoras de Fernando Pessoa e Ricardo Reis. Mesmo não sendo um grande
leitor desse poeta português, muito de seu desejo de fugir à realidade me foi
percebido em todos os heterônimos dele que pude ler: a visão antifilosofia de
Caeiro e o pensamento sensacionista de Bernardo de Guimarães e Álvaro de
Campos, além dos ditos valorizadores da arte de Pessoa e o espírito estoico do
aqui abordado Ricardo Reis, fizeram-me ver uma seita de poetas preocupados em
existir por meio da poesia, em fazer da arte o sentido da existência.
O ponto máximo do romance é o
momento em que Ricardo Reis se depara com os barcos sendo atingidos no porto
por serem revoltosos contra o sistema. Ali ele percebe o atroz universo da
guerra ferindo de todas as formas o seu espetáculo belo e, em um ato banal,
decide a se encaminhar junto com Fernando Pessoa para o além. Tal morte tem
muito de metalinguístico também, por mostrar claramente que por mais que tenha
tentado se dividir em vários, Pessoa deixou muito de si, mais do que queria
até, em seus poetas inventados.
O ano da morte de Ricardo Reis é mais um dos romances de Saramago
que pode ser dividido em diversas camadas analíticas. Há aqui muito do romance
histórico que procura resgatar os fatos de uma época para mostrar de que forma
tais acontecimentos ainda influenciam o pensamento, ou a falta dele, em nossos
dias. Há muito de metalinguístico por questionar os limites do real e do
fictício dentro da literatura. Há também muito de questionar os limites da
intelectualidade dos considerados grandes gênios de nossa literatura e da
literatura mundial (até Unamuno sofre brevemente com a ironia saramaguiana) que
parecem adorar fazer odes e elegias ou discutir a profunda metafísica das
coisas pouco banais aos olhos deles e se sentem chocados diante de qualquer
choque de realidade, negando-se a pensar sobre a realidade. Há também muito da
discussão de gêneros, mostrando Lídia como mais uma das grandes mulheres
criadas por Saramago (ao lado de Blimunda e a mulher do médico, minhas
favoritas) como criaturas vindas do povo e de uma condição inferior,
construindo uma verdadeira epopeia de superação de sua “natureza” sempre
estando acima em força e sabedoria do que seus homens.
Por mais que a questão de
gêneros muito me atraia, a camada que mais me tocou nesse livro foi a da fuga
da realidade que os intelectuais poetas gostam de realizar diante da crueza da
realidade do mundo. Quando saiu da prisão nazista em que foi mantido preso,
Jean-Paul Sartre mudou bruscamente sua forma de fazer filosofia e literatura e
passou a fazer do pensamento uma ferramenta de combate contra opressões e
injustiças. Simone de Beauvoir reitera em suas memórias que depois daquele momento
em que o nazismo se mostrou como a mais real das ameaças, não haveria mais como
ignorar o que se passava no mundo e que a visão de ambos estava profundamente
modificada.
Saramago é da extirpe do casal
existencialista e assim como sua companheira tem uma obra engajada na luta pela
justiça social. Ao escolher um dos escritores lusófonos mais conhecidos de
todos os tempos, o escritor que um dia disse ser um analfabeto a pessoa mais
sábia de sua vida mostrou mais uma vez como fazer da obra de arte um puro
objeto estético não é uma desculpa muito válida quando queremos viver nossas
existências ignorando o que se passa diante de nós. É esse espírito crítico que
permeia toda a sua obra, na qual narrador e autor vivem a se confundir, que
tornou-o um dos maiores escritores de nossos tempos.
Ligações a esta post:
Breve resumo sobre o romance ou as primeiras notas editadas pelo Letras sobre O ano da morte de Ricardo Reis. Acesse aqui.
Comentários